Pedro Tadeu | Diário de Notícias
| opinião
Um exército de comentadores,
jornalistas, economistas e políticos rasga as vestes pela falta de respeito de
Joe Berardo, pela desfaçatez de Joe Berardo, pela petulância de Joe Berardo,
pelo riso alarve de Joe Berardo.
E o que é que Joe Berardo, tal
como Ricardo Salgado, tal como Zeinal Bava, tal como tantos outros que passaram
pelas várias comissões de inquérito que já escalpelizaram os vários escândalos
financeiros do país, acabaram por tornar claro nas declarações que fizeram aos
deputados da Nação? É que aquilo que agora lhes é apontado como condenável e
criticável foi, simplesmente, a normalidade do funcionamento do regime: foi a
normalidade do regime político/jornalístico, foi a normalidade do regime
económico/financeiro e foi a normalidade do regime jurídico/legislativo.
Quando Joe Berardo responde
"perguntem aos bancos..." à questão sobre como conseguiu receber
milhões de euros em créditos sem ter de entregar garantias, está a explicar aos
deputados como era a normalidade do funcionamento do regime
económico/financeiro.
Quando Ricardo Salgado justificou
com um parecer de três reputados juristas a legalidade do recebimento de 14
milhões de euros a título de "liberalidade" de um empresário
agradecido, estava a demonstrar ao país como era a normalidade do funcionamento
do regime jurídico/legislativo.
Quando Ramalho Eanes e Jorge
Sampaio condecoraram Joe Berardo; quando Cavaco Silva condecorou Zeinal Bava;
quando a maioria dos políticos e tantos jornalistas portugueses de economia e
política, com bravas exceções (que as houve e, a alguns, prejudicou-lhes mesmo
as carreiras) disseram e escreveram, anos e anos a fio, toneladas de elogios a
estas pessoas; quando competiram num frenesim de bajulice a estas pessoas;
quando esconderam as notícias negativas, mesmo as mais insignificantes, sobre
estas pessoas; estava a decorrer em velocidade de cruzeiro a normalidade do
funcionamento do regime político/jornalístico.
A direita adora dizer que são
filhos dos desmandos do antigo primeiro-ministro, suspeito de corrupção, José
Sócrates, os escândalos que levaram Joe Berardo a ir pavonear graçolas ao
parlamento, Ricardo Salgado a altivar-se ofendido pelas suspeitas dos deputados
e Zeinal Bava a magicar graves falhas de memória durante o interrogatório da
comissão de inquérito. É mentira.
Os escândalos financeiros que
causaram prejuízos de milhares de milhões de euros, que os portugueses estão a
pagar e vão continuar a pagar durante muitos anos, são filhos de décadas de
construção de um Estado onde a promiscuidade entre a política e a finança
passou a ser regra.
Essa promiscuidade começou com a
recuperação dos grupos económicos destruídos no período revolucionário do pós
25 de Abril, aprofundou-se com a privatização da banca e dos seguros, mecanizou-se
com a chegada dos fundos europeus e a cultura de fraudes que lhes atrelaram,
agravou-se com os negócios do euro e do crédito barato.
Essa promiscuidade
institucionalizou-se com a utilização das empresas públicas, das fundações, das
financeiras e dos institutos como porta de traficância de gente que produziu a
técnica, a legislação, as políticas, o pathos, a ética e a consolidação do novo
regime, a que chamaram "democracia ocidental" e hoje, mais
globalizados, apelidam de "democracia liberal".
Durante dezenas e dezenas de
anos, muitos e muitos viveram à conta desta ecologia da esperteza saloia, do
favor trapaceiro, da aldrabice caucionada com carimbo jurídico, mediático,
técnico e político.
Durante dezenas e dezenas de anos
os protagonistas desta revolução que se seguiu ao fim da Revolução dos Cravos
dominaram o poder com a legitimação do jornalismo de influência e a adoração
das revistas cor-de-rosa a construírem, em torno desta gente, uma nova
aristocracia para o país.
Agora, para surpresa dos que
implantaram e se alimentaram do sistema durante mais de 30 anos, dizem que é
crime. Agora, face à revolta generalizada, alertam contra os populismos.
Sócrates poderá vir a ser
condenado em tribunal por corrupção mas não é pai da corrupção.
Sócrates é filho da natureza do
regime que muitos dos nossos líderes construíram, tal como Salgado, Berardo e
Bava. Para eles, tudo o que fizeram, os mil e um esquemas que inventaram para
sacar dinheiro, os abusos que, aparentemente, tanta irritação provocam hoje em dia
nos que antes os veneravam, não eram mais do que a evolução lógica e natural do
funcionamento banal da politica e dos negócios.
Ao ver os mesmos políticos,
jornalistas, juristas e economistas, que foram campeões na proteção e promoção
da imagem dos "Donos Disto Tudo", a competirem agora por um lugar na
primeira fila no linchamento de Berardo, Salgado, Bava e de todos os outros,
faço apreciações de caráter cheias de onomatopeias e palavrões mas fico seguro
de uma coisa: rapidamente, quando as coisas acalmarem, depois da necessária
limpeza pela Justiça, esta gente irá arranjar um "gestor genial", um
"empresário de sucesso", um "banqueiro talentoso" a quem se
apresentarão para prestar o mesmo serviço que prestaram aos homens que
colocaram Portugal à beira da ruína. Porquê? Porque o regime não mudou e,
apesar deste abalo, não vai mudar e tudo voltará, lamento, à habitual
normalidade.
Sem comentários:
Enviar um comentário