Precariado fez, em 8/5, o
primeiro protesto global contra o poder “invisível” das empresas-aplicativos.
Em SP, dois pesquisadores apostam, após dezenas de entrevistas: surgem, em meio
à ultra-exploração, novas formas de resistência
Felipe Moda e Marco
Antonio G. de Oliveira | Outras Palavras
No último dia 8 de maio,
motoristas “parceiros e parceiras” que trabalham nas principais empresas de
transporte de passageiros por aplicativo como Uber, Cabify, 99 e Lyft
realizaram uma grande manifestação global por melhores condições de trabalho. A
data escolhida pela legião de trabalhadores e trabalhadoras para a realização
dos protestos foi um dia antes de a maior empresa do setor, a Uber, estrear
seus papéis na bolsa estadunidense.
As manifestações aconteceram em
cidades dos Estados Unidos, Reino Unido, França, Austrália, Nigéria, Quênia,
Chile, Brasil, Panamá, Costa Rica e Uruguai. Em Nova Iorque, estima-se que 10
mil motoristas participaram da manifestação que contou com carreatas, protestos
do lado de fora dos escritórios tanto da Uber como da Lyft, ambos no mesmo
edifício no Queens, além de outro grupo que protestou em frente a Bolsa de
Valores de Nova York. Em Los Angeles, várias dezenas de carros partiram do
aeroporto internacional para uma carreata pela cidade e inúmeros motoristas
desligaram seus aplicativos por 24h. Na Inglaterra, motoristas de Londres,
Birmingham, Nottingham e Glasgow suspenderam os serviços entre 7h e 16h e os
escritórios da empresa também foram alvos de protestos.
Estivemos presentes na
manifestação que ocorreu na cidade de São Paulo, entrevistando trabalhadores e
trabalhadoras, com o objetivo de compreender um pouco mais sobre as suas
condições de trabalho, suas principais reivindicações e o processo de
organização dos protestos. Os e as motoristas começaram a se concentrar às 8h
no Vale do Anhangabaú e, por volta das 10h, cerca de 200 pessoas caminharam com
faixas e cartazes até a sede da BM&F Bovespa. Após retornarem ao local de
concentração, os motoristas saíram em carreata até o MASP, travando importantes
avenidas da região central da cidade.
Esta manifestação tem grande
relevância em uma conjuntura onde as chamadas empresas-aplicativos ganham
bastante destaque no mundo do trabalho. A relevância se dá pela realização de
uma ação global de trabalhadores e trabalhadoras, fato bastante raro. Apenas os
trabalhadores e trabalhadoras do setor de fast-food têm obtido sucesso em suas
paralisações de apelo global, desde 2014. Estamos presenciando o surgimento de
mais um movimento paredista global?
No Brasil, este foi o maior
protesto realizado até o momento envolvendo reivindicações dos motoristas
contra as empresas. Outras importantes manifestações já ocorreram no país
envolvendo motoristas de aplicativos, porém grande parte delas enfrentaram o
poder público, municipal ou federal, durante processos de regulamentação das
atividades, sendo que desta vez a manifestação foi diretamente ligadas às
reivindicações por melhorias nas condições de trabalho.
Apesar da manifestação ter
contado com cerca de 200 pessoas, é difícil mensurarmos o seu real tamanho
devido a ausência de um espaço fabril físico que permita fazermos uma avaliação
precisa da amplitude do protesto. Uma matéria do jornal Folha de São Paulo constatou
que o preço da corrida subiu durante todo o dia 8 de maio, um possível
indicativo do impacto da paralisação. Porém, diversos motoristas acreditam que
os preços das corridas foram artificialmente inflacionados no dia das
manifestações com o objetivo de persuadir os trabalhadores e trabalhadoras a
não aderirem a paralisação em troca de alguns trocos a mais. A alteração de
tarifas no dia da manifestação também foi percebida em diversas cidades do
mundo onde ocorreram as manifestações.
Desta forma, o binômio
resistência versus cooptação ganha nova roupagem no início do século
XXI, com as empresas de transporte de passageiros por aplicativos aprendendo
estratégias que limitem as manifestações e paralisações. A adoção de preços
flutuantes e a posse, por parte da empresa, dos dados referentes ao
funcionamento da prestação do serviço permitem que as ações de resistência
sejam contidas em tempo real, impondo aos trabalhadores e trabalhadoras a
necessidade de buscar novos repertórios em suas articulações.
A economia não compartilhada
A segunda metade do século XX foi
marcado pelo desmantelamento da fábrica fordista, a partir da adoção das Novas
Tecnologias de Informação e Comunicação (NTIC), baseadas no acesso à internet e
a conexões em rede, nos processos de trabalho. Diferentemente do previsto pelas
chamadas teorias pós-industriais ou do trabalho imaterial, a implementação da
NTIC não serviu para construir uma sociedade onde o trabalho romperia com os
limites do capital e o conhecimento se tornasse a principal força produtiva,
mas para minar a resistência dos trabalhadores e das trabalhadoras,
intensificar o grau de exploração e implementar novas formas de controle sobre
o trabalho, que agora se baseiam em uma aparente dispersão mas que estão
submetidas a uma forte hierarquia.
Com a crise econômica mundial de
2008, novas formas de organização do trabalho, como o trabalho mediado por
aplicativos, passaram a ser testadas e implementadas, tendo em vista a
recuperação da taxa de lucro. Vivenciamos, neste momento, mais um avanço das NTIC
sobre o trabalho, sendo uma marca deste novo cenário a adoção de aplicativos
baseados em cálculos algorítmicos, com enorme capacidade de armazenamento e
análise de dados sobre o cotidiano das tarefas de trabalho.
As empresas de transporte por
aplicativo são representantes maiores do efervescente setor da chamada economia
de compartilhamento, também denominada de economia peer-to-peer, economia
colaborativa, economia de plataforma, economia gig, ou mesmo, economia do
bico. O denominador comum das empresas da economia compartilhada é a plataforma
digital que intermedia a reunião entre um contratante e um trabalhador e, ao
fazê-lo, estabelece uma relação de emprego fora do padrão, em que as relações
de trabalho são mascaradas. Oferecem trabalho intermitente que se propõem
flexível e independente mas que, ao olhar mais crítico, se assemelham a um
assalariamento em massa e informal, camuflado sob o discurso do
empreendedorismo e das benesses do avanço da tecnologia da informação.
As principais empresas de transporte
por aplicativo administram uma enorme massa global de trabalhadores e
trabalhadoras por meio de suas plataformas digitais. Segundo o IBGE, o Brasil
tem cerca de 1 milhão de motoristas por aplicativos e 4 milhões de brasileiros
prestam serviço utilizando plataformas como a iFood, Rappy, Loggi, dentre
outras. Somadas, estas empresas seriam hoje as maiores empregadoras do país.
Do ponto de vista das empresas,
elas são meras intermediadoras entre oferta e demanda, entre duas pessoas
consideradas iguais. Porém, o que temos na prática é um forte gerenciamento,
controle e organização do trabalho por parte das corporações a partir dos
aplicativos. As rotas mais curtas para realização dos trajetos, as ruas com
menores congestionamentos, os locais com maiores clientes em potencial etc.,
saberes que eram de posse dos trabalhadores e trabalhadoras, são agora
objetivados e informados pelo aplicativo.
As empresas-aplicativos
proporcionam experiências relativamente padronizadas aos passageiros, através
de condutores amadores, tratados como empreendedores, responsáveis pelos meios
de produção e pelos serviços prestados. São empresas que se beneficiam dos
avanços tecnológicos, promovidos e guiados pelo capital, para destruir mercados
tradicionais através de estratégias que consideram apenas a ética dos negócios,
sem levar em conta as relações, inclusive legais, que estabelecem com as
comunidades onde estão inseridas. As empresas da economia do compartilhamento
navegam nas oportunidades que a sociedade do trabalho em crise oferece:
consumidores e consumidoras em busca de preços baixos e trabalhadores e
trabalhadoras em situação de desespero.
Os entusiastas da Uber e de suas
congêneres atribuem o sucesso dessas empresas à tecnologia e eficiência em
conectar passageiros e motoristas. No entanto, a luta dos trabalhadores e
trabalhadoras das empresas de transporte de passageiros por aplicativos ao
redor do mundo e suas reivindicações vão de encontro com os resultados de duas
importantes pesquisas, apresentadas em 2018, tanto pelo Massachusetts
Institute of Technology , como pelo The Australia Institute: o
diferencial dessas empresas frente às empresas tradicionais de táxis, que já
possuem tecnologia similar, é o não pagamento — total ou parcial — dos impostos
e encargos, a supressão dos direitos trabalhistas e a intensificação do
trabalho.
A rotina extenuante e a baixa
remuneração do trabalho destes manifestantes são expressas por este relato:
“Eu levanto as 3 e meia da manhã,
15 para as 4h já ligo o carro e 4h já estou saindo. Paro meio dia para almoçar,
descansar um pouco e 2h da tarde volto a trabalhar e vou até 23h ou meia noite,
todo dia. Todo dia para tirar um trocado no final do dia. Porque gasta 100
reais de combustível, gasta mais 20 reais de almoço e fazendo corrida de 7 ou
10 reais não tem como virar, você tem que se matar. Eu faço 300 reais por dia,
mas levo para casa 180 e disso precisa descontar a manutenção do veículo,
depreciação, impostos um monte de coisa” (Entrevistado 2).
Quase todos os entrevistados
relataram trabalhar mais de 12 horas por dia. Uma das três mulheres motoristas
presentes na manifestação diz que 12 horas é a o mínimo de horas trabalhadas
todos os dias, sendo que trabalha até conseguir 250 reais líquidos diários, o
que pode levar a fazer jornadas de trabalho de 16 ou 18h. Um dos entrevistados
diz que já ficou mais de 30 horas seguidas trabalhando.
Outro relato, que dá título a
este texto, também nos ajuda a entender a rotina desses trabalhadores e
trabalhadoras.
“A minha jornada de trabalho é,
na semana, pegar umas 4h da madrugada e ir até as 22h. Nos finais de semana tem
vezes que eu pego na sexta, faço umas pausas, mas só paro mesmo na segunda e
assim vai. A minha meta diária é tentar chegar nos 300 reais, mas raramente
consigo. […] A minha realidade hoje é que eu moro no meu carro e visito minha
casa, esta é a minha realidade” (Entrevistado 5).
Quando contrastamos estes relatos
com os valores movidos pela empresa, conseguimos ver os limite dos discursos de
parceria e compartilhamento realizados por elas. No primeiro dia atuando no
mercado financeiro, a Uber levantou 8,1 bilhões de dólares. Segundo reportagem
da revista Forbes, o valor da empresa, que se manteve próximo a 1 bilhão de
dólares entre 2009 e 2012, alcançou 68 bilhões de dólares no final de 2015, e,
agora, 82 bilhões de dólares. No final de março, a Lyft, uma das maiores
concorrentes da Uber, lançou seus papéis na bolsa e arrecadou 2,3 bilhões de
dólares. As duas ofertas públicas, da Uber e da Lyft, são as maiores
registradas no ano e a Uber a nona da história.
Ou seja, longe de termos
tecnologia neutras de intermediação e troca de serviços, temos empresas que
faturam bilhões explorando de maneira bastante intensificada trabalhadores e
trabalhadoras não protegidos pelas legislações trabalhistas, empresas que estão
servindo para concentração de riqueza e não para a sua democratização.
Reivindicações e formas de
articulação
A organização de trabalhadores e
trabalhadoras das empresas-aplicativos traz novos desafios. Em uma indústria ou
uma grande prestadora de serviço, normalmente, os empregados trabalham lado a
lado e em tempo integral, o que facilita a comunicação e organização da classe.
Uma greve tradicional, mesmo sem a adesão de todos os trabalhadores e
trabalhadoras, normalmente faz com que as empresas interrompam suas atividades.
Além disso, o fato destes trabalhadores e trabalhadoras serem enquadrados como
prestadores de serviços autônomos faz com a própria existência de vínculo
empregatício seja questionada. A ideologia empreendedora construída nos
motoristas dificulta até mesmo a eles se reconhecerem como trabalhadores e
trabalhadoras. Mesmo em uma manifestação por melhores condições de trabalho —
portanto, típica da classe trabalhadora, guardadas as particularidade –,
encontramos motoristas que se dizem empreendedores.
“Eu trabalhava como atendente ao
público. Hoje, eu trabalho como MEI, sou empreendedor, então assim, busco dessa
forma me manter. É possível, sabe? Se mudar a tarifa e obtivermos melhores
valores, tudo começa a caminhar” (Entrevistado 19).
“Como CLT eu não quero mais.
Prefiro tocar meu negócio próprio. (Qual a sua jornada de trabalho?) Eu faço
uns horários meio doidos. Mas digamos que uma média de 60 a 70 horas por semana só na
Uber” (Entrevistado, 18).
As dificuldades encontradas para
superar estes desafios foram sentidas desde o momento em que chegamos na
manifestação, às 8h. A ausência de uma convocatória única para o protesto fez
com que diversos horários e locais fossem divulgados. Alguns motorista que
chegavam ao Vale do Anhangabaú avisaram que um outro protesto havia sido
marcado na Barra Funda e que só iriam chegar no Vale às 10h. Ficou evidente a
falta de organização e experiência da categoria. No entanto, apesar das
inúmeras convocatórias existentes, havia um amplo consenso entre os presentes
sobre as principais reivindicações. Trabalhadores e trabalhadoras reclamavam da
baixa tarifa mínima cobrada pelas empresas, do congelamento do preço da tarifa
ao consumidor — que estava corroendo os lucros devido ao grande aumento dos
preços dos combustíveis –, da elevada taxa cobrada pelas empresas por cada
corrida e da baixa segurança.
No caso da Uber, a tarifa mínima
cobrada pela empresa para uma corrida é menor do que 6 reais. Considerando a
gasolina utilizada para chegar até o passageiro e depois para transportá-lo e a
taxa média de 25% cobrada pela empresa, os ganhos ao realizar este serviço é
praticamente nulo. Além disto, faz três anos que o valor da tarifa não é
atualizado e a política adotada pelos governos Temer e Bolsonaro sobre o preço
dos combustíveis faz com os ganhos dos motoristas seja menor a cada dia,
levando a uma situação desesperadora para muito dos presentes.
“O meu amigo me emprestou um
dinheiro para entrar de entrada no carro e eu dei, 14 mil de entrada e
financiei o resto. Na época que eu entrei, dava para pagar o carro tranquilo,
tudo certinho. Mas de um tempo para cá a gasolina foi aumentando, a inflação
também, e daí já não consigo pagar mais nada, IPVA, multa que a gente toma no
dia a dia por rodar bastante com o veículo. […] Dia 30 de julho já era, acabou
para mim porque preciso pagar o IPVA do carro, a documentação. Então já era
para mim, se eu ficar com o meu carro na rua ele vai ser apreendido. Aí eu vou
tentar fazer… sei lá, vender água no farol, não sei. Eu não vou perder um bem,
que dei 14 mil de entrada, por besteira e eu também não posso ficar parado… Se
não mudar agora, para podermos dar um gás para pagar a documentação do carro,
já era” (Entrevistado 10).
Convocada como manifestação
mundial, não identificamos nenhum tipo de articulação internacional entre os
motoristas — o que notamos foram manifestações locais referenciadas em um
protesto global. Outro fenômeno interessante aconteceu na manifestação de São
Paulo, onde youtubers, sindicalistas e membros de coletivos formados por grupos
de WhatsApp disputavam a liderança do movimento, novidades ocasionadas pela
democratização do acesso a internet e aparelhos celulares no Brasil.
Desta forma, as mesmas
tecnologias que ampliam a capacidade de controle das empresas, através do
fracionamento e da individualização do trabalho, também capacitam e
possibilitam aos trabalhadores e trabalhadoras novas alternativas para romperem
com isolamento característico deste setor e realizarem articulações dos seus
interesses. Os principais meios de comunicação entre motoristas são os
aplicativos de mensagens como WhatsApp e Telegram e redes sociais como Facebook
e Youtube.
Todos os presentes relataram
estar em dezenas de grupos de mensagens instantâneas, sendo que vários dos
motoristas desenvolvem amizades, laços de solidariedade e pensam ações com
outros motoristas a partir destes grupos. Com o grande crescimento dos
aplicativos de transporte e o surgimento destes espaços virtuais, parece que
está sendo revertido um pouco o isolamento dos trabalhadores e trabalhadoras
após o desmantelamento das fábricas fordistas. Evidentemente que o trabalho
segue sendo bastante individualizado, mas a experiência comum de exploração e
um canal de diálogo entre os motoristas parecem estar recriando um sentimento
de identidade.
Em cada um destes grupos foram
articuladas diferentes ações para o dia de protestos. A aparente
horizontalidade do movimento é questionável, pois nas entrevistas realizadas,
lideranças do movimento são apontadas e reivindicadas. A única condição
imposta, por todos, é: “a pessoa tem que correr com nós”. “Correr com nós”, um
jargão da categoria que indica não uma defesa da ausência de lideranças, mas um
embrião de crítica à burocracia do movimento sindical tradicional. Uma pequena
frase, mas um importante sinal de que que os trabalhadores e trabalhadoras do
século XXI estão tirando suas conclusões sobre as lutas do passado.
Gostou do texto? Contribua para
manter e ampliar nosso jornalismo de profundidade: OUTROS QUINHENTOS
Sem comentários:
Enviar um comentário