segunda-feira, 20 de maio de 2019

UMA LUTA SOBRE BRASAS II – Martinho Júnior

HOJE JÁ É TARDE DEMAIS

 Martinho Júnior, Luanda 

EM SAUDAÇÃO AO 25 DE MAIO, DIA DE ÁFRICA, QUANDO HÁ 56 ANOS, EM GRANDE PARTE EM FUNÇÃO DA LUTA DE LIBERTAÇÃO, SE CRIOU A ENTÃO “OUA”, ORGANIZAÇÃO DA UNIDADE AFRICANA (https://www.officeholidays.com/countries/africa/african_unity_day.php)!

No Cunene, de há pouco mais de 100 anos a esta parte, estão-se jogando algumas das sagas mais decisivas do povo angolano e da África Austral.

Quando fundaram a cidade de Moçâmedes, (em 1855 Moçâmedes foi elevada à categoria de vila), os horizontes continentais do colonialismo português no sudoeste angolano não iam além do rio Cunene, pela via da Huila e não por via do paralelo da nova localidade.

Essa inoperância em relação ao interior era um indicador que os processos coloniais ainda não haviam despertado suficientemente para o fenómeno da importância da água interior do continente africano, algo que aliás nem com a Conferência de Berlim haveria de ocorrer.

Na Conferência de Berlim, em que o chanceler Bismarck foi anfitrião, o que seria lógico na partilha de África seria a Prússia ficar com a parte mais suculenta, a matriz da água num continente em que existiam os maiores desertos quentes do globo e não foi isso que aconteceu…

Não só não aconteceu assim como entregaram o Congo, praticamente de bandeja, à cabeça coroada da Bélgica, o Rei Leopoldo II, um senhor feudal que iria em poucos anos mostrar seu bárbaro despotismo genocida, similar aliás aos próprios prussianos…



Impedidos de expansionismo nas Américas, as potências coloniais europeias aplicaram a partir da Conferência de Berlim, uma saga expansionista em África que adoptou o critério dos genocídios que acompanharam a tipologia da expansão nas Américas, com uma questão prévia: a escravatura (e o tráfico de escravos transatlântico para as Américas) que em África havia durado mais de 4 séculos, em nome da “civilização judaico-cristã ocidental”!

No fundo a Conferência de Berlim foi não só uma conferência de genocidas: foi uma conferência de poderosos europeus, emanação de suas elites e oligarquias, ignorantes entre ignorantes em relação às conjunturas africanas e ávidos de poder colonial, sangue e rapina!

Foi no ambiente colonial em expansão na 2ª metade do século XIX que as disputas entre colonialismo português e prussiano chegariam ao Cunene, terra de pastores cuanhamas e ovambos que garantiam a transumância do seu gado de chimpaka em chimpaka, desequilibrando o secular ambiente humano local e atrasando África na sua necessidade de domínio próprio e consciente sobre a água interior.

Hoje já é tarde demais, por que o possível esforço de luta contemporânea, o esforço angolano de hoje, só pôde ser realizado depois de vencido o colonialismo, depois de vencido o “apartheid”, depois de vencidas algumas de suas sequelas e ganhando consciência crítica e de vanguarda face ao capitalismo neoliberal que tem sido inculcado em África formatando mentalidades nas elites servis, quando tudo se deveria ter iniciado em tempo oportuno precisamente há pouco mais de 100 anos!

Também por esta razão tenho considerado que Angola tem apenas (sobre)vivido (?) em “séculos de solidão”!


03- Em 1849, poucos anos depois da construção da fortaleza de São Fernando na baía que antes fora chamada de Angra dos Negros (identificação que tinha a ver com o embarque de escravos) a pequena localidade passou a ser chamada de Mossâmedes, em honra ao Barão do mesmo nome que havia decidido a implantação humana na costa do sudoeste de Angola.

A localidade, um caso único para Angola colonizada, veio a integrar três pequenos contingentes migratórios provenientes da cidade do Recife no Brasil e com o reforço populacional passa à categoria de vila, a cidade que é hoje capital da Província do Namibe, encravada entre o deserto do Namibe (o mais antigo do mundo) e o mar (https://torredahistoriaiberica.blogspot.com/2010/08/fundacao-de-mocamedes-namibe-no-sul-de.html).

A vila, circundada por um cinturão de hortas nos vales do Bero (que foi por alguns desses povoadores considerado de Nilo de Moçâmedes) e do Giraul, iria permitir a criação dum ponto de apoio na costa apto para se prepararem as acções de penetração no interior a partir duma nova linha de acção a sul do ainda por definir território angolano sob domínio do colonialismo português.

Conforme escreveu René Pélissier a página 177 da “História das campanhas em Angola – I” (https://www.amazon.com/Hist%C3%B3ria-Campanhas-Angola-1845-1941-Portuguese/dp/9723326965), “a fronteira do que em Abril de 1849 passou a ser o distrito de Moçâmedes sofreu, durante o período que estamos a considerar, uma evolução paralela àquela que registou o distrito de Luanda: um impulso expansionista iniciado em 1856 iria afundar-se em dificuldades levantadas pela manutenção de guarnições ao longo de mais de 500 km numa região que, excepto na costa e no planalto da Huila, era insalubre.

Em contrapartida, se o avanço inicial para o Cunene e a região dos Ovambos foi de pouca dura, houve um elemento capital na política portuguesa do sul, se é que se pode chamar política ao que não passava de uma sucessão de medidas tomadas uma a uma.

Sob o ponto de vista económico o sul de Angola oferecia, decerto, perspectivas aliciantes a comerciantes natos como os portugueses; mas o interesse que ele apresentava estava, antes de mais, nas suas possibilidades de receber uma população rural branca que se dedicasse mais à agricultura, à pesca e à criação de gado do que ao grande comércio internacional.

A imagem das colónias brancas, agrícolas ou piscícolas, perseguia já nessa época as autoridades de Lisboa e de Luanda que julgavam ter encontrado nas partes salubres do sul o terreno de uma regeneração colonial, de um micro-Brasil em gestação”…

As autoridades coloniais portuguesas, nas linhas de expansão para o interior, tinham desde logo, integradas nas motivações de conquista, a visão da necessidade do controlo da água interior e do espaço vital, o que por si significava ter de vencer todas as resistências que viessem a encontrar pelo caminho.

O acesso à água era indispensável para a conquista, mas também para os primeiros assentamentos humanos dela redundantes, nas pretensões de fazer agricultura e criação de gado, pelo que o expansionismo implicou uma autêntica guerra da água, numa intensa luta pela sobrevivência entre interesses contraditórios.

A leste da penetração colonial portuguesa no sudoeste, com apoio das fortalezas da costa, o poder colonial esbatia-se no “aquém” Cunene (ocidente do Cunene) só superado pela conquista em regime de expansão a partir de 1907, há apenas 112 anos!...

Com a fundação de Moçâmedes, o colonialismo português evitou penetrar num dos desertos mais antigos do globo (http://m.portalangop.co.ao/angola/pt_pt/mobile/noticias/lazer-e-cultura/2013/7/32/Mitos-deserto-rota-Atlantico,a9792a80-1b5c-4d93-aefe-291d39ee8b0b.html?version=mobile) e para progredir para leste, teve de ocupar a ocidente do rio Cunene, para disputar com os prussianos a leste, durante a Iª Guerra Mundial, na direcção das “terras do fim do mundo”!


04- No Sudoeste Africano, colónia da Prússia, passava-se depois da Conferência de Berlim algo semelhante: o poder colonial prussiano esmagava a resistência herero e nama numa conquista brutal pelo espaço vital (o primeiro grande genocídio do século XX – https://paginaglobal.blogspot.com/2018/09/os-crimes-compensam.html) e junto ao lago Etosha (na língua ovambo, trata-se do grande lago branco), no norte do território, fundava uma fortaleza em Namutoni, que servia de garantia a esse domínio, ressalvado aliás pelo Parque no seu entorno (https://www.britannica.com/place/Etosha-Pan).

O lago Etosha (https://whc.unesco.org/en/tentativelists/6095/) foi conhecido pela primeira vez por europeus em 1851 (Sir Francis Galton e Charles Anderson), quando o colonialismo português estava empenhado em fundar Moçâmedes…

A fortaleza prussiana de Namutoni foi construída em 1901, destruída em 1904 pelos guerreiros Ondonga (https://en.wikipedia.org/wiki/Battle_of_Namutoni) e reconstruída no traçado que subsiste entre 1905 e 1907.

Essa fortaleza foi indispensável para os prussianos, no território do Sudoeste Africano, vencerem a simultânea resistência cuanhama-ovambo, precisamente na mesma altura da progressão colonial portuguesa a leste do rio Cunene…

Formado sobre uma placa tectónica o lago Etosha antes recebia as águas do Cunene (até há 16.000 anos), mas posteriormente o fluxo desse rio mudou de direcção e o lago passou a ser alimentado pela bacia subterrânea do Cuvelai e por pequenos cursos efémeros como o Ekuma, o Oshigambo e Omurambo Ovambo (https://www.etoshanationalpark.org/etosha-pan).

Se os processos coloniais luso-prussianos foram praticamente simultâneos no seu desenvolvimento e conquista do interior, o destino histórico e antropológico de Angola e da Namíbia ficaram indelevelmente associados desde então, algo que permite soluções comuns para as questões que se prendem ao controlo e gestão da água interior, agora mais que nunca, pois torna-se inadiável avançar no sentido do desenvolvimento sustentável e recuperando o tempo perdido durante os domínios coloniais e logo de seguida do “apartheid” tal como de suas sequelas.

O que se conseguir realizar na e a partir da região central das grandes nascentes em Angola (http://paginaglobal.blogspot.pt/2018/01/acordar-o-homem-angolano.html), afectando todo o triângulo sul do quadrilátero angolano e todo o norte da Namíbia (cujo centro se pode considerar o lago Etosha), será determinante, sobretudo nas bacias do Cunene, do Cubango e do Cuando, tal como na bacia subterrânea do Cuvelai.

Determinante também será para o combate à seca, em Angola na Província do Cunene e na Namíbia na Ovambolândia!

Quando tenho chamado a atenção para imediatamente se controlar as grandes nascentes da região central angolana, planalto do Bié (http://paginaglobal.blogspot.pt/2018/04/colocar-nossas-pernas-titubeantes-no.html), avalio quanto é tarde demais para se recuperar um atraso imposto pelos colonialismos português e prussiano, assim como pelo “apartheid”, não só um atraso que leva pouco mais de 100 anos, mas também o atraso da falta de consciência sobre a conjugação dos fenómenos que estão a conduzir à expansão da desertificação na África Austral afectando já todo o sul de Angola, por que a mentalidade que prevalece foi a “semeada” pelo processo colonial e pela antropologia africana dos ancestrais e é urgente, em nome das futuras gerações, romper-se definitivamente com esse passado que abre espaço a uma luta sobre brasas!

Martinho Júnior - Luanda, 15 de Maio de 2019

Imagens:
01- Formações geológicas em torno de Moçâmedes;
02- Fotografia antiga do fulcro da vila de Moçâmedes;
03- O fugidio órix, um dos maiores antílopes, é uma espécie original do deserto do Namibe (espécie com risco de extinção);
04- A fortaleza de Namutoni construída junto ao lago etosha pelo colonialismo prussiano (alemão);
05- O lago Etosha, anomalia da natureza no norte do deserto do Namibe, recebe água subterrânea da bacia do Cuvelai.

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