terça-feira, 21 de maio de 2019

UMA LUTA SOBRE BRASAS III - Martinho Júnior


HOJE JÁ É TARDE DEMAIS


EM SAUDAÇÃO AO 25 DE MAIO, DIA DE ÁFRICA, QUANDO HÁ 56 ANOS, EM GRANDE PARTE EM FUNÇÃO DA LUTA DE LIBERTAÇÃO, SE CRIOU A ENTÃO “OUA”, ORGANIZAÇÃO DA UNIDADE AFRICANA (https://www.officeholidays.com/countries/africa/african_unity_day.php)!

No Cunene, de há pouco mais de 100 anos a esta parte, estão-se jogando algumas das sagas mais decisivas do povo angolano e da África Austral.

Forçosamente os povos que habitavam além Cunene teriam de oferecer resistência ao colonialismo português, aos prussianos e por fim aos ingleses (provenientes do Cabo na África do Sul, os ocupantes do Sudoeste Africano até praticamente ao fim do “apartheid”), pois as leis da expansão e domínio colonial punham em causa o seu modo de vida de pastores seminómadas, que tinham no gado os motivos culturais para a sua própria sobrevivência e com eles o habitat do seu espaço vital centrado no acesso á água e ao pasto.

No seu espaço vital, esses povos dominavam os circuitos de água, ao longo da bacia do Cuvelai e Sudoeste Africano adentro até ao lago Etosha.


Assim o expansionismo colonial ameaçou sua sobrevivência e compeliu-os à resistência contra uns e outros, ou jogando com as contradições entre os invasores redundantes da Conferência de Berlim, apesar de sua desestruturação, pois comércio algum era suficientemente aliciante para os poder convencer e moldar, até por que souberam jogar com muitos dos contraditórios coloniais em regiões transfronteiriças!

O rei Mandume haveria de ser o chefe emblemático dessa resistência e as campanhas do expansionismo colonial não foram fáceis, só conseguindo avançar pouco apouco e com muitos reveses pelo meio…

Essa situação agravou-se com a Iª Guerra Mundial, consequência da competição entre os império colonial britânico e o alemão, que levou o subalterno colonialismo português a aliar-se uma vez mais aos britânicos.

O colonialismo português a sofrer reveses como o de Naulila, em finais de 1914, face a uma incursão prussiana…

Essa incursão acabou por ser um antecedente remoto à “border war” que o “apartheid” levaria a cabo na 2ª metade do século XX já com Angola independente, precisamente no mesmo espaço territorial de alguns dos episódios finais da batalha do Cuito Cuanavale.

O próprio expansionismo foi um revés para Angola em relação ao acesso à água e à determinação da necessidade duma geoestratégia (servindo como alienação, inibição e um travão propício à formação da mentalidade de feição) e seria determinante nos atrasos que advêm até hoje, em relação às possibilidades de desenvolvimento sustentável respeitando e em função do controlo e gestão da água interior!

Hoje já é tarde demais, por que o possível esforço de luta contemporânea, o esforço angolano de hoje, só pôde ser realizado depois de vencido o colonialismo, depois de vencido o “apartheid”, depois de vencidas algumas de suas sequelas e ganhando consciência crítica e de vanguarda face ao capitalismo neoliberal que tem sido inculcado em África formatando mentalidades nas elites servis, quando tudo se deveria ter iniciado em tempo oportuno precisamente há pouco mais de 100 anos!

Também por esta razão tenho considerado que Angola tem apenas (sobre)vivido (?) em “séculos de solidão”!


05- De meados do século XIX até ao início da Iª Guerra Mundial, o colonialismo português e o prussiano (https://www.youtube.com/watch?v=gX8itgI9s80&feature=youtu.be), cada um em seu território, desenrolaram com geometrias muito similares a respectiva expansão em Angola e no Sudoeste Africano, para entrar em combate entre si no período da Iª Guerra Mundial, facto que não foi alheio à entrada dos sul-africanos provenientes do território inglês do Cabo (África do Sul).

Em Naulila manifestou-se a fragilidade da tentativa de ocupação colonial portuguesa a leste do rio Cunene (http://www.momentosdehistoria.com/MH_05_01_01_Exercito.htm), o que espevitou ainda mais a resistência dos humbes, cuamatos e cuanhamas (https://pt.wikipedia.org/wiki/Combate_de_Naulila).

No espaço do sudoeste e sul angolano essa expansão sendo difícil para o colonialismo português, havia sido sustido desde logo no passo do rio Cunene, nos Gambos (de 1855 a 1866) e intermitentemente no Humbe (de 1867 a 1898).

Os então Governadores de Angola, Francisco Joaquim Ferreira do Amaral (1882 a 1886) e Guilherme Augusto de Brito Capelo (1886 a 1892), foram os reorganizadores da expansão para leste do colonialismo português no espaço angolano, conjuntamente, na frente sul-sudeste, com o mando militar de Artur de Paiva Couceiro que em 1889 haveria de chegar e ultrapassar o Cubango, consolidando as posições a partir da região central das grandes nascentes (Bié) e em direcção ao Cuando Cubango (o que deu azo ao imenso “distrito” do Bué e Cuando Cubango).

O Governador Brito Godins teve no entanto pela frente uma das sucessivas revoltas do Humbe, junto ao rio Caculuvar afluente ocidental do Cunene (reforçados pelos cuamatos e pelos cuanhamas): a primeira entre 1885 e 1886, a segunda em 1891 e a terceira entre 1897 e 1898.


No Cunene os cuamatos e os cuanhamas percebiam que a tentativa de expansão do colonialismo português para leste do rio Cunene iria pôr em causa o seu modo de vida de criadores seminómadas de gado e o domínio sobre a água interior…

Os portugueses além do mais, não haviam definido as fronteiras com o Sudoeste Africano ocupado primeiro pelos prussianos (https://www.revistamilitar.pt/artigo/921), depois pelos ingleses provenientes do Cabo (África do Sul).

No planalto a Huila, um paraíso para a migração dos boeres, estes tornaram-se aliados incondicionais importantes, por que eram dos poucos a saberem movimentar-se nos ambientes do sul de Angola e Sudoeste Africano (http://tudosobreangola.blogspot.com/2018/12/a-colonizacao-das-terras-altas-da-huila.html).

Na primeira tentativa de vencer os humbes, a conclusão de René Pélissier não deixa margem para dúvidas: “a chaga fechou-se de novo, mas em falso e tudo leva a crer que certos oficiais ou certas ajutoridades tentaram escamotear esta guerra que nem foi gloriosa, nem rendosa, nem sequer marcial. Fixaremos que os portugueses não só não puderam atravessar o Cunene contra os cuamatos, mas ainda que os humbes se revelaram uns difíceis vassalos. A missão foi encerrada. O sul de Angola entrava na história como o quebra-cabeças da administração portuguesa” (História das campanhas de Angola – IIº volume, página 159 – https://www.amazon.com/Hist%C3%B3ria-Campanhas-Angola-1845-1941-Portuguese/dp/9723326965).

As resistências que se sucederam foram as dos Gambos, as do Humbe, as do Cuamato e por fim as do Cuanhama/Ovambo em 1915 cujo colapso ocorreu em Môngua (Omongwa), entre 12 e 24 de Agosto.

A heroicidade do rei dos cuanhamas, Mandume ya Ndemufayo (https://mandumekwanhama.wordpress.com/historia-de-mandume-o-rei-dos-kwanhamas/ - http://cdn1.portalangop.co.ao/angola/pt_pt/noticias/educacao/2017/1/6/Huila-Rei-Mandume-considerado-simbolo-resistencia-colonial,5d2b2407-d410-4210-8f26-805a6dfce9f1.html), representou um climax de resistência à penetração colonial portuguesa e inglesa (esta proveniente do Cabo, África do Sul, sucedendo ao poder prussiano derrotado)… o seu colapso influenciou desde então no atraso das medidas que deveriam ter sido tomadas evitando a expansão dos desertos do Namibe e do Kalahári, território da Província do Cunene adentro.

A própria batalha de Môngua (https://www.revistamilitar.pt/artigo/1243) foi uma disputa de espaço vital que integrou o controlo das chimpacas (cacimbas) de toda a região onde ocorreu o embate e os cuanhamas não foram só militarmente derrotados, como sua cultura foi severamente atingida e desestruturada, apesar do heroísmo das hostes do Rei Mandume ya Ndemufayo, acossadas em Angola e no norte do Sudoeste Africano.

No Sudoeste Africano (https://wacka.fandom.com/pt-br/wiki/Partilha_da_%C3%81frica) o poder prussiano foi também pelo menos uma vez derrotado na batalha de Namutoni a 28 de Janeiro de 1904, pelos ondongas, próximos dos cuanhamas; nessa altura o forte de Namutoni, situado a leste junto ao lago Etosha, foi destruído (https://en.wikipedia.org/wiki/Battle_of_Namutoni)!

Também aí era uma luta de resistência, pela sobrevivência cultural, pelo espaço vital e pela escassa água do interior àquela latitude, que iria inspirar as sagas que foram ocorrendo durante o século XX, mas atrasaram as respostas face aos desafios da seca que se foram acumulando até aos nossos dias, agravadas agora com os fenómenos globais do aquecimento.

É evidente que a ocupação colonial, impondo parâmetros de domínio próprios, iria trazer consequências de atraso em relação ao espaço vital e à água, inibindo qualquer processo de desenvolvimento sustentável para os povos africanos, no Cunene para o povo angolano (http://paginaglobal.blogspot.pt/2018/01/o-deserto-do-namibe-tende.html).


06- Os historiadores mais atentos evidenciam desde logo as questões históricas e antropológicas nas disputas pelo espaço vital e pela água interior, em especial quando o colonialismo português começou as guerras de expansão a leste do rio Cunene.

No seu IIº volume sobre a História das campanhas de Angola e referindo-se à conquista do cuanhama (página 245), René Pélissier considera assim:

“No cuanhama, Mandume reunira a hoste e batera com tal violência que Pereira de Eça, pregado ao chão, chamou em seu socorro a coluna do cuamato.

Que se passara?

Mandume como bom ovambo, preparara a sua cilada no fundo-do-saco, deixando avançar o general com os seus 2.700 homens e a sua coluna de carros ao longo da linha das chanas.

Mas estas estavam secas e foi necessário abastecer de água o pessoal com camiões que iam andando numa roda viva entre a coluna e o Cunene.

Mandume deixou estender o cordão umbilical fazendo o vazio à sua frente.

Em 1915, no sul de Angola, quem tivesse a água tinha a vida e, naquele momento, tinha nas mãos a sorte do cuanhama”…

No artigo “Os portugueses no mundo cuanhama”, da autoria de José Carlos de Oliveira, publicado na Revista Militar (https://www.revistamilitar.pt/artigo.php?art_id=601&fbclid=IwAR0JoQxDPhOV0oFEANK5mDi6Idf9qFavlgWcMBq2Fpsf72wudCoL0sy9kNU), o autor considerou a propósito de Môngua:

“Pereira D´Eça estava absolutamente consciente da situação aflitiva da falta de água, os cuanhamas ainda mais.

Quem se apoderasse das Mulolas (poços de água) sairia vencedor.

As mulheres cuanhamas ajudavam freneticamente, mesmo em fúria, os seus homens municiando-os com constantes idas e voltas aos Ehumbo e este aspecto da batalha desorientava as tropas da expedição portuguesa que, em desespero de causa, famintas e extenuadas terão ouvido a ordem de carregar do comandante: Se querem matar a sede, então avancem para as cacimbas.

Soldados e marinheiros embrenham-se pelo mato em direcção às cacimbas novas, perseguidos de perto pelo tiroteio dos inimigos que, rastejando, pelos mutiatis atingiam as tropas.

Os cuanhamas surpresos com o ataque, apesar de circunstancialmente disporem de superioridade em homens e armamento, obedeceram à ordem final de Mandume de incendiarem a Embala e partirem para o Ihole a dez quilómetros de Namakunde, na zona considerada neutra.

A 5 de Setembro a expedição de Pereira D’Eça avistava os restos da embala ainda a arder, bem como o que sobrou da missão alemã que havia educado Mandume, que usufruía das maiores honrarias e conforto, porque o destinavam a seu vassalo instalando-o no trono do cuanhamas”...

No Sudoeste Africano, com o advento da Iª Guerra Mundial, foram os sul-africanos a conquistar o território, algo que desde logo agradou ao colonialismo português, também ele envolvido.

Os cenários africanos da Iª Guerra Mundial confluíram para que o colonialismo português se viesse aliar ao “apartheid” dado o papel de conquista do Sudoeste Africano por parte da África do Sul (https://www.revistamilitar.pt/artigo/1234).


Eis como a Prússia perdeu o Sudoeste Africano (https://www.revistamilitar.pt/artigo/921):

“A rendição no Sudoeste Africano.

A campanha no Sudoeste Africano foi uma questão de brancos, pois nem os sul-africanos nem os alemães queriam fazer participar os negros nos combates.

Em agosto de 1914, o primeiro-ministro sul-africano Louis Botha, ex-general boer que emergira como líder político dos africâneres moderados, assegurou a Londres que a África do Sul tinha meios para se defender, permitindo que a guarnição britânica partisse para a França, e também se comprometeu-se a invadir o Sudoeste Africano Alemão.

Uma vez que, em setembro, a esquadra alemã do almirante Maximilian von Spee ainda navegava com liberdade, a Marinha Real Britânica bombardeou e destruiu as estações de rádio alemãs em Swakopmund e na baia de Luderitz.

No terreno, esta ação teve o apoio da Força de Defesa da União, liderada por Botha, porque, entre os oficiais sul-africanos, os “velhos boer” viram na iniciativa britânica uma oportunidade para reafirmar a sua independência. No entanto, as forças sul-africanas, que iniciaram as hostilidades, em 13 de setembro de 1914, com um ataque ao posto policial de Ramansdrift, na fronteira sul, ainda tiveram o contratempo de debelar a revolta «afrikander», liderada pelo general Manie Maritz, que teve o apoio de forças alemãs, entre 15 de setembro de 1914 e 4 de fevereiro de 1915.

Continuando a progressão para norte, os sul-africanos, com esmagadora superioridade, foram ganhando terreno aos alemães que apenas ofereciam resistência, como retardamento tático, pois não estavam em condições de complementar as suas unidades europeias nem mobilizar soldados africanos, dado que a população indígena tinha sido significativamente reduzida, uma década antes, com o genocídio dos «herero». Depois dos sul-africanos terem tomado WindhoeK, em 12 de maio de 1915, Erich Victor Carl August Franke, o último comandante da «kaiserliche schutztruppe», rendeu-se perto de Knorab, a 9 de julho seguinte48, tendo os prisioneiros alemães sido transportados para campos de concentração perto de Pretória e, depois, transferidos para Pietermaritzburg, na região oriental, a 80 km de Durban.

Até outubro de 1914, dadas as boas relações entre as guarnições dos postos de Angola e da Damaralândia, embora os alemães receassem que os portugueses os poderiam atacar por causa da aliança luso-britânica, não existiam medidas especiais de segurança na fronteira, o que facilitou o episódio de Naulila (19 de outubro), o massacre em Cuangar (31 de outubro) e o ataque alemão a Naulila (18 de dezembro).

A 19 de dezembro, perante a ameaça vinda do território alemão, as forças portuguesas abandonaram o Humbe, depois do paiol do Forte Roçadas ter explodido, e retiraram para norte, para Gambos, com intenção de defender Lubango. Motivados pelos combates entre forças europeias, as populações africanas da Huila, tinham-se revoltado, chefiadas pelo soba Mandume, do povo cuanhama.

A chegada a Angola das expedições militares portuguesas, no final de 1915 e em março seguinte, tinha por missão fazer frente ao ataque alemão vindo do sul da colónia.

Em face dos desenvolvimentos na Damaralândia, a missão das forças portuguesas foi reformulada, pelas necessidades de acabar com a revolta das populações da Huíla e reocupar o Forte do Cuamato.

Foi neste contexto que se deu o Combate da Mongua (18, 19 e 20 de agosto de 1915) e a consequente ocupação da embala de Mandume, em 4 de setembro”...

A partir das campanhas além Cunene o colonialismo português valorizou a água interior como nunca, apesar de ocultarem os conceitos lógicos sobre o fulcro da região central das grandes nascentes no que diz respeito ao seu valor geoestratégico, começando aliás por votar ao ostracismo a leitura de Silva Porto, instalado na sua embala no que é hoje a cidade do Cuito, capital do Bié.

As lutas que se iriam seguir ao longo de todo o século XX (http://paginaglobal.blogspot.pt/2018/05/os-punhais-sangrentos-de-trotta-e.html) confirmariam essa regra e o atraso provocado pela conquista expansionista do colonialismo português, começou por impôr ausência de geoestratégia em função da rosa-dos-rios angolana por que manteve a visão da colonização, conforme um povo de marinheiros que deu à costa a partir do mar onde semeou os padrões de sinalização.

Essa mentalidade foi a que foi absorvida até hoje pelas próprias elites angolanas, mais agora no momento da formatação mental dessas elites nos processos do corrente capitalismo neoliberal que impacta sobre Angola!

Lembra-se o exemplo de Mandume (http://info-angola.ao/index.php?option=com_content&view=article&id=2650:popula-do-cunene-recorda-rei-mandume&catid=687&Itemid=1727), que aliás serviu de inspiração na luta contra o “apartheid”  entre 1975 e 1991, mas sua resistência interior não foi devidamente digerida sob os pontos de vista antropológico e histórico e a prova está no pouco relevo que os angolanos têm dado ao papel decisivo sob o ponto de vista de lógica com sentido de vida, à região central das grandes nascentes até ao momento, contrariando as minhas abordagens nesse sentido de há cerca de 10 anos a esta parte, em particular a necessidade da luta contra o subdesenvolvimento seguindo a perspectiva duma geoestratégia para um desenvolvimento sustentável (https://paginaglobal.blogspot.com/2018/08/luanda-em-desastre-ambiental.html)!

Martinho Júnior | Luanda, 17 de Maio de 2019

Ilustrações:
01- Foto atribuída ao Rei Mandume ya Ndemufayo e suas tropas;
02- O túmulo do Rei Mandume ya Ndemufayo no Cunene;
03- Mapa étnico do sudoeste e sul de Angola, segundo o colonialismo português;
04- Foto de guerreiros cuanhamas;
05- Uma embala cuanhama vista do ar.

VER VÍDEO - Alberto Oliveira Pinto - Angola na Grande Guerra

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