Acordo entre Portugal e Macau
para extraditar fugitivos é “inconstitucional” e “não protege portugueses”
Os juristas em Portugal,
contactados pelo PONTO FINAL, alertam para os perigos do acordo de extradição
assinado com Macau, dado o momento particularmente sensível que se vive na
China. O ex-bastonário da Ordem dos Advogados, Rogério Alves, diz que este documento
“não pode ser abrir uma porta, e abrir sorrateiramente a janela”. Garcia
Pereira afirma que o documento viola a Constituição Portuguesa, e não
salvaguarda a segurança dos cidadãos nacionais. Já Bacelar de Vasconcelos
defende que o texto “se enquadra na prática internacional seguida pelo Estado
português”.
“Quase que diria, como se diz
sobre Las Vegas, que neste caso o acordo com Macau tem de ficar em Macau.
Senão, ao invés de ser ele bom, pode ser mau”, afirma em declarações ao PONTO
FINAL o ex-bastonário da Ordem dos Advogados, Rogério Alves, sobre o recente
texto assinado por Portugal e Macau para a entrega de infractores em fuga, cujo
conteúdo se ficou a conhecer na semana passada. O jurista referia-se à
possibilidade da RAEM celebrar com a China um outro acordo, no mesmo âmbito,
que venha a possibilitar a eventual extradição de suspeitos de crimes a pedido
de Pequim.
Rogério Alves argumenta que, em
teoria, estes acordos “são sempre bons”. “Vale mais haver um instrumento de
regulação de entrega de pessoas solicitadas por um Estado estrangeiro — e
existirem regras claras mediante as quais essa entrega pode ser deferida ou
recusada — do que não haver acordo nenhum”, defende. No entanto, ressalva que
os acordos têm de ser claros “no seu conteúdo e nas suas fronteiras”. “Isto não
pode ser abrir uma porta, e abrir sorrateiramente a janela. Das duas uma: ou o
acordo fica vedado a Macau, e então creio que é potencialmente positivo, mas se
puder viabilizar a entrada de terceiros, então transportará no seu bojo um
risco que não deve ser corrido”, argumenta.
A ameaça está presente para este
advogado, que considera que “Portugal na iminência disso acontecer, findo o
período de transição, e perante uma total diferenciação entre o que acontece na
China e o que acontece em Macau, teria de denunciar o acordo”, explica. Rogério
Alves elucida que isso pode, aliás, ser feito a qualquer momento, tornando-se o
rompimento do acordo efectivo 180 dias depois de ter sido dado conhecimento à
contra-parte.
Contra a Constituição
O advogado António Garcia Pereira
é mais contundente. Defende que este acordo assinado pelo Estado português não
protege os nacionais, e viola “claramente” a Constituição. “Acho que
manifestamente não protege adequadamente os interesses dos cidadãos
portugueses. Antes e acima de qualquer tratado ou qualquer acordo vigora a
Constituição da República Portuguesa, a qual, no artigo 33, estabelece o
princípio que não pode ser derrogado, nem afastado por qualquer Executivo do
momento: o de que um cidadão português não pode ser extraditado de Portugal.
Existem duas únicas excepções”, adverte Garcia Pereira. O mesmo advogado
enumera-as de seguida: “Trata-se do crime de terrorismo, ou criminalidade
organizada internacionalmente, desde que haja reciprocidade, e que a ordem
jurídica do Estado requisitante consagre garantias de um processo justo e
equitativo”.
Este acordo possibilita, na visão
do advogado, a entrega de uma pessoa que a Constituição não permite.
“Naturalmente que esta situação me parece de uma extrema gravidade”, considera.
E alerta ainda que pouco interessa que ‘a posteriori’ se declare a
inconstitucionalidade da “extradição de uma pessoa que não devia ter sido
consumada”.
Apesar de o acordo prever a
possibilidade de Portugal recusar a entrega de nacionais, isso não chega para
sossegar Garcia Pereira. “Ao permitir que a cada altura o Governo decida se
entrega ou não, nós ficamos dependentes dos critérios do Executivo do momento.
A gravidade do problema é essa”, assinala, sobre o documento publicado em
Boletim Oficial na semana passada.
O constitucionalista Pedro
Bacelar de Vasconcelos tem uma opinião completamente diferente. Em respostas
escritas ao PONTO FINAL afirma que, “após uma primeira leitura do texto,
parece-me que o acordo protege adequadamente os interesses dos cidadãos
portugueses e que se enquadra na prática internacional seguida pelo Estado
português, em conformidade com a Constituição em vigor e com as normas
internacionais”.
E acrescenta que só um
estudo mais aprofundado permitiria averiguar se algumas das disposições
previstas comportam eventuais riscos, os designados alçapões legais, “que,
insisto, aparentemente não existem”.
Hong Kong preocupa
O enquadramento actual da
situação na China e os confrontos em Hong Kong por causa da lei de extradição,
levam Rogério Alves a afirmar que um acordo deste género entre Lisboa e Pequim
nunca teria o seu aval. Segundo o ex-bastonário, a China não está ao mesmo
nível de Portugal no que concerne ao respeito pelos direitos humanos. “Isso
faria com que Portugal fosse confrontado com pedidos de entregas de cidadãos,
que teria de analisar mediante a Constituição da República Portuguesa. Essa
entrega é recusada, quando ao crime corresponde à pena de morte, seja aplicada
a prisão perpétua, a conduta em causa não seja considerada crime em Portugal,
ou quando se julgue que, por alguma razão, a pessoa que for entregue não
beneficiará no país de destino das garantias que o Estado português entende que
são inerentes a tramitação e desenvolvimento do processo penal”, evidencia.
Garcia Pereira considera ainda
que, neste caso, não é admissível “o argumento de que mais vale este
acordo do que coisa nenhuma”. “Isto legaliza ou permite legalizar situações que
violam os princípios da nossa lei fundamental”, argumenta. O advogado fala
também da semântica utilizada pelas duas partes, que para ele não é fruto do
acaso. “Tem um nome que não é casual, não se fala de acordo de extradição, mas
antes de acordo relativo à entrega de infractores em fuga, que é uma forma de o
legitimar junto da opinião pública. Isto porque se se falasse abertamente em
extradição, as pessoas reagem menos bem”, observa.
Garcia Pereira considera ainda
“estranho” que um acordo desta importância tenha sido apenas objecto de um
comunicado sucinto da secretaria de Estado da Justiça “que noticia a assinatura
sem nenhuma referenciação ao conteúdo”. “É apresentado como uma coisa muito positiva,
em que os representantes da RAEM e do Governo português rubricaram o acordo,
feito algum tempo antes”, afirma. “Parece-me que tudo foi propositadamente
negociado com grande opacidade e secretismo, o que não augura nada de bom”,
sublinha.
Não está definido o que é um
crime político. Isso interessa?
O presidente da Associação de
Advogados de Macau, Jorge Neto Valente, alertou para os perigos de o acordo não
definir o que é que se considera crime político que valha a extradição. Rogério
Alves diz que isso é algo que em “Portugal não vai criar grande problema”,
porque “somos um país onde a regra é a liberdade de expressão, a liberdade de
opinião”.
Mas olhando para o que se passa
em Hong Kong e para a reacção das autoridades da China, é essa a ameaça que
“tem estado muito presente nas manifestações”. E, neste caso, o ex-bastonário
considera que, mais do que um risco potencial, é um risco “real”. “Mas estou em
crer que Portugal nunca entregará ninguém que tiver praticado o que se chama
genericamente como delito de opinião”, acredita Rogério Alves.
O constitucionalista Bacelar de
Vasconcelos, por seu lado, argumenta “que a identificação dos crimes e das
respectivas penas” são suficientemente claras e respeitam a protecção
internacional dos direitos fundamentais. Garcia Pereira discorda desta
visão, porque são vastos os casos de regimes e governos que misturam os dois
conceitos: crime de delito comum e opositor político. “Ao não se definir o que
é um crime político está-se a abrir o campo, a que, como tem acontecido ao
longo da história, um determinado regime qualifique um opositor político como
criminoso de delito comum, justificando a sua entrega”, sentencia.
E os portugueses de Macau?
Uma outra questão que se pode
levantar, no caso de um possível acordo futuro entre Macau e a China para a
extradição de fugitivos, é o que poderá acontecer aos portugueses que vivem na
RAEM. Rogério Alves ajuda a traçar um cenário hipotético, para dar resposta à
questão. “Podemos imaginar alguém que escreve um artigo que as autoridades
chinesas consideram um crime de acordo com a sua lei. Seguramente que não seria
extraditado nem com este acordo [entre Portugal e Macau], nem sem este acordo”,
assegura.
“Se esse cidadão estivesse em
Macau, nos termos em que este acordo está escrito, não vejo que haja o mínimo
de legitimidade para, com base nele, ser enviado o pedido de extradição do
cidadão português residente em Macau para a China”, explica. As razões para a
impossibilidade, justifica, é a China não ser outorgante deste documento.
Agora, o caso pode mudar de
figura “se com a evolução do sistema em Macau” e com a assinatura de algum
acordo entre a RAEM e a China se abrir essa oportunidade. Para evitar isso,
teriam de ter sido tomadas outras precauções no actual acordo. E essas não
estão lá. “Nesse caso, devia ter sido colocada uma reserva para que o cidadão
português não pudesse ficar abrangido por um acordo futuro entre a China e
Macau”, afirma.
O ex-bastonário acredita que para
este acordo proteger os portugueses do risco de serem enviados para a China
para cumprir pena de cadeia, seria necessário que “houvesse um artigo em que
Macau se recusaria a extraditar cidadãos portugueses por razões políticas, em
quaisquer circunstâncias”, explica, acrescentado que “a definição de razões políticas
seria mediante a Constituição Portuguesa e não tendo por base a lei chinesa”.
Garcia Pereira antevê que, face
aos recentes acontecimentos relacionados com as práticas da República Popular
da China (RPC), em matéria de Direito penal e Direito processual penal, muito
particularmente os acontecimentos verificados em Hong Kong, é de temer que
Macau e a RPC venham a criar um acordo de extradição “que não permita nenhum
controlo efectivo por parte do Estado português”. “É o que se desenha com
acordos de extradição de natureza extremamente ampla”, explica, ao mesmo tempo
que pede à Associação de Advogados de Macau e à Ordem dos Advogados em Portugal
para seguirem esta matéria com preocupação.
Neste aspecto, Rogério Alves não
concorda com a linha de argumentação de Garcia Pereira. Defende que o acordo é
feito com Macau e só com Macau e caso isso mude, Portugal também poderá alterar
a sua posição. “É feito com um determinado parceiro, sendo que uma alteração
das condições, nomeadamente das regras aplicáveis no país subscritor, tem de
fazer repensar o acordo, e levar a respectiva denúncia. Uma coisa é assiná-lo
com um Estado ou com uma região administrativa com determinadas
características, outra coisa é fazê-lo com uma entidade que se transmutou e que
não corresponde às características que estiveram na base do acordo”, reitera.
Acordo com a China passa por cima
O ponto 3 do artigo 14 do acordo
assinado entre Portugal e Macau estabelece que as eventuais negociações
entre Macau e outras regiões da China para a entrega de infractores em fuga
podem sobrepor-se a pedidos feitos por Portugal. Bacelar Vasconcelos
tranquiliza as preocupações que possam surgir, afirmando “que as
autoridades da parte requerida terão sempre a última palavra”. “Além disso, o
acordo prevê uma larga panóplia de argumentos para a recusa e para a ponderação
de pedidos concorrentes”, afirma, para depois argumentar que, por isso, os
cidadãos portugueses estão protegidos. Mas ressalva que na China “a protecção
universal dos direitos humanos tem ainda um longo caminho a percorrer e duros
combates a enfrentar, como ainda recentemente testemunharam as manifestações
democráticas em Hong Kong.”
Garcia Pereira afirma que a
solução plasmada no documento “sustenta os argumentos dos que afirmam que este
acordo não dá segurança e muito menos segurança absoluta”. Para este advogado,
o mecanismo descrito faz com que um Executivo governamental menos respeitador
das condições da constitucionalidade “imponha o facto consumado da entrega de um
determinado cidadão que depois será entregue às autoridades chinesas, e sujeito
a um processo penal que não oferece as garantias mínimas de um processo justo”. “É
gravíssimo que se coloque isso em termos do próprio acordo”, remata.
João Carlos Malta | Ponto Final
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