quarta-feira, 26 de junho de 2019

Acordo entre Portugal e Macau para extraditar fugitivos é “inconstitucional”...


Acordo entre Portugal e Macau para extraditar fugitivos é “inconstitucional” e “não protege portugueses”

Os juristas em Portugal, contactados pelo PONTO FINAL, alertam para os perigos do acordo de extradição assinado com Macau, dado o momento particularmente sensível que se vive na China. O ex-bastonário da Ordem dos Advogados, Rogério Alves, diz que este documento “não pode ser abrir uma porta, e abrir sorrateiramente a janela”. Garcia Pereira afirma que o documento viola a Constituição Portuguesa, e não salvaguarda a segurança dos cidadãos nacionais. Já Bacelar de Vasconcelos defende que o texto “se enquadra na prática internacional seguida pelo Estado português”.

“Quase que diria, como se diz sobre Las Vegas, que neste caso o acordo com Macau tem de ficar em Macau. Senão, ao invés de ser ele bom, pode ser mau”, afirma em declarações ao PONTO FINAL o ex-bastonário da Ordem dos Advogados, Rogério Alves, sobre o recente texto assinado por Portugal e Macau para a entrega de infractores em fuga, cujo conteúdo se ficou a conhecer na semana passada. O jurista referia-se à possibilidade da RAEM celebrar com a China um outro acordo, no mesmo âmbito, que venha a possibilitar a eventual extradição de suspeitos de crimes a pedido de Pequim.

Rogério Alves argumenta que, em teoria, estes acordos “são sempre bons”. “Vale mais haver um instrumento de regulação de entrega de pessoas solicitadas por um Estado estrangeiro — e existirem regras claras mediante as quais essa entrega pode ser deferida ou recusada — do que não haver acordo nenhum”, defende. No entanto, ressalva que os acordos têm de ser claros “no seu conteúdo e nas suas fronteiras”. “Isto não pode ser abrir uma porta, e abrir sorrateiramente a janela. Das duas uma: ou o acordo fica vedado a Macau, e então creio que é potencialmente positivo, mas se puder viabilizar a entrada de terceiros, então transportará no seu bojo um risco que não deve ser corrido”, argumenta.

A ameaça está presente para este advogado, que considera que “Portugal na iminência disso acontecer, findo o período de transição, e perante uma total diferenciação entre o que acontece na China e o que acontece em Macau, teria de denunciar o acordo”, explica. Rogério Alves elucida que isso pode, aliás, ser feito a qualquer momento, tornando-se o rompimento do acordo efectivo 180 dias depois de ter sido dado conhecimento à contra-parte.


Contra a Constituição

O advogado António Garcia Pereira é mais contundente. Defende que este acordo assinado pelo Estado português não protege os nacionais, e viola “claramente” a Constituição. “Acho que manifestamente não protege adequadamente os interesses dos cidadãos portugueses. Antes e acima de qualquer tratado ou qualquer acordo vigora a Constituição da República Portuguesa, a qual, no artigo 33, estabelece o princípio que não pode ser derrogado, nem afastado por qualquer Executivo do momento: o de que um cidadão português não pode ser extraditado de Portugal. Existem duas únicas excepções”, adverte Garcia Pereira. O mesmo advogado enumera-as de seguida: “Trata-se do crime de terrorismo, ou criminalidade organizada internacionalmente, desde que haja reciprocidade, e que a ordem jurídica do Estado requisitante consagre garantias de um processo justo e equitativo”.

Este acordo possibilita, na visão do advogado, a entrega de uma pessoa que a Constituição não permite. “Naturalmente que esta situação me parece de uma extrema gravidade”, considera. E alerta ainda que pouco interessa que ‘a posteriori’ se declare a inconstitucionalidade da “extradição de uma pessoa que não devia ter sido consumada”.

Apesar de o acordo prever a possibilidade de Portugal recusar a entrega de nacionais, isso não chega para sossegar Garcia Pereira. “Ao permitir que a cada altura o Governo decida se entrega ou não, nós ficamos dependentes dos critérios do Executivo do momento. A gravidade do problema é essa”, assinala, sobre o documento publicado em Boletim Oficial na semana passada. 

O constitucionalista Pedro Bacelar de Vasconcelos tem uma opinião completamente diferente. Em respostas escritas ao PONTO FINAL afirma que, “após uma primeira leitura do texto, parece-me que o acordo protege adequadamente os interesses dos cidadãos portugueses e que se enquadra na prática internacional seguida pelo Estado português, em conformidade com a Constituição em vigor e com as normas internacionais”.

E acrescenta que só um estudo mais aprofundado permitiria averiguar se algumas das disposições previstas comportam eventuais riscos, os designados alçapões legais, “que, insisto, aparentemente não existem”.

Hong Kong preocupa

O enquadramento actual da situação na China e os confrontos em Hong Kong por causa da lei de extradição, levam Rogério Alves a afirmar que um acordo deste género entre Lisboa e Pequim nunca teria o seu aval. Segundo o ex-bastonário, a China não está ao mesmo nível de Portugal no que concerne ao respeito pelos direitos humanos. “Isso faria com que Portugal fosse confrontado com pedidos de entregas de cidadãos, que teria de analisar mediante a Constituição da República Portuguesa. Essa entrega é recusada, quando ao crime corresponde à pena de morte, seja aplicada a prisão perpétua, a conduta em causa não seja considerada crime em Portugal, ou quando se julgue que, por alguma razão, a pessoa que for entregue não beneficiará no país de destino das garantias que o Estado português entende que são inerentes a tramitação e desenvolvimento do processo penal”, evidencia.

Garcia Pereira considera ainda que, neste caso, não é admissível “o argumento de que mais vale este acordo do que coisa nenhuma”. “Isto legaliza ou permite legalizar situações que violam os princípios da nossa lei fundamental”, argumenta. O advogado fala também da semântica utilizada pelas duas partes, que para ele não é fruto do acaso. “Tem um nome que não é casual, não se fala de acordo de extradição, mas antes de acordo relativo à entrega de infractores em fuga, que é uma forma de o legitimar junto da opinião pública. Isto porque se se falasse abertamente em extradição, as pessoas reagem menos bem”, observa. 

Garcia Pereira considera ainda “estranho” que um acordo desta importância tenha sido apenas objecto de um comunicado sucinto da secretaria de Estado da Justiça “que noticia a assinatura sem nenhuma referenciação ao conteúdo”. “É apresentado como uma coisa muito positiva, em que os representantes da RAEM e do Governo português rubricaram o acordo, feito algum tempo antes”, afirma. “Parece-me que tudo foi propositadamente negociado com grande opacidade e secretismo, o que não augura nada de bom”, sublinha.

Não está definido o que é um crime político. Isso interessa?

O presidente da Associação de Advogados de Macau, Jorge Neto Valente, alertou para os perigos de o acordo não definir o que é que se considera crime político que valha a extradição. Rogério Alves diz que isso é algo que em “Portugal não vai criar grande problema”, porque “somos um país onde a regra é a liberdade de expressão, a liberdade de opinião”.

Mas olhando para o que se passa em Hong Kong e para a reacção das autoridades da  China, é essa a ameaça que “tem estado muito presente nas manifestações”. E, neste caso, o ex-bastonário considera que, mais do que um risco potencial, é um risco “real”. “Mas estou em crer que Portugal nunca entregará ninguém que tiver praticado o que se chama genericamente como delito de opinião”, acredita Rogério Alves.

O constitucionalista Bacelar de Vasconcelos, por seu lado, argumenta “que a identificação dos crimes e das respectivas penas” são suficientemente claras e respeitam a protecção internacional dos direitos fundamentais. Garcia Pereira discorda desta visão, porque são vastos os casos de regimes e governos que misturam os dois conceitos: crime de delito comum e opositor político. “Ao não se definir o que é um crime político está-se a abrir o campo, a que, como tem acontecido ao longo da história, um determinado regime qualifique um opositor político como criminoso de delito comum, justificando a sua entrega”, sentencia.

E os portugueses de Macau?

Uma outra questão que se pode levantar, no caso de um possível acordo futuro entre Macau e a China para a extradição de fugitivos, é o que poderá acontecer aos portugueses que vivem na RAEM. Rogério Alves ajuda a traçar um cenário hipotético, para dar resposta à questão. “Podemos imaginar alguém que escreve um artigo que as autoridades chinesas consideram um crime de acordo com a sua lei. Seguramente que não seria extraditado nem com este acordo [entre Portugal e Macau], nem sem este acordo”, assegura.

“Se esse cidadão estivesse em Macau, nos termos em que este acordo está escrito, não vejo que haja o mínimo de legitimidade para, com base nele, ser enviado o pedido de extradição do cidadão português residente em Macau para a China”, explica. As razões para a impossibilidade, justifica, é a China não ser outorgante deste documento.

Agora, o caso pode mudar de figura “se com a evolução do sistema em Macau” e com a assinatura de algum acordo entre a RAEM e a China se abrir essa oportunidade. Para evitar isso, teriam de ter sido tomadas outras precauções no actual acordo. E essas não estão lá. “Nesse caso, devia ter sido colocada uma reserva para que o cidadão português não pudesse ficar abrangido por um acordo futuro entre a China e Macau”, afirma. 

O ex-bastonário acredita que para este acordo proteger os portugueses do risco de serem enviados para a China para cumprir pena de cadeia, seria necessário que “houvesse um artigo em que Macau se recusaria a extraditar cidadãos portugueses por razões políticas, em quaisquer circunstâncias”, explica, acrescentado que “a definição de razões políticas seria mediante a Constituição Portuguesa e não tendo por base a lei chinesa”. 

Garcia Pereira antevê que, face aos recentes acontecimentos relacionados com as práticas da República Popular da China (RPC), em matéria de Direito penal e Direito processual penal, muito particularmente os acontecimentos verificados em Hong Kong, é de temer que Macau e a RPC venham a criar um acordo de extradição “que não permita nenhum controlo efectivo por parte do Estado português”. “É o que se desenha com acordos de extradição de natureza extremamente ampla”, explica, ao mesmo tempo que pede à Associação de Advogados de Macau e à Ordem dos Advogados em Portugal para seguirem esta matéria com preocupação.

Neste aspecto, Rogério Alves não concorda com a linha de argumentação de Garcia Pereira. Defende que o acordo é feito com Macau e só com Macau e caso isso mude, Portugal também poderá alterar a sua posição. “É feito com um determinado parceiro, sendo que uma alteração das condições, nomeadamente das regras aplicáveis no país subscritor, tem de fazer repensar o acordo, e levar a respectiva denúncia. Uma coisa é assiná-lo com um Estado ou com uma região administrativa com determinadas características, outra coisa é fazê-lo com uma entidade que se transmutou e que não corresponde às características que estiveram na base do acordo”, reitera.

Acordo com a China passa por cima

O ponto 3 do artigo 14 do acordo assinado entre Portugal e Macau estabelece que as eventuais negociações entre Macau e outras regiões da China para a entrega de infractores em fuga podem sobrepor-se a pedidos feitos por Portugal. Bacelar Vasconcelos tranquiliza as preocupações que possam surgir, afirmando “que as autoridades da parte requerida terão sempre a última palavra”. “Além disso, o acordo prevê uma larga panóplia de argumentos para a recusa e para a ponderação de pedidos concorrentes”, afirma, para depois argumentar que, por isso, os cidadãos portugueses estão protegidos. Mas ressalva que na China “a protecção universal dos direitos humanos tem ainda um longo caminho a percorrer e duros combates a enfrentar, como ainda recentemente testemunharam as manifestações democráticas em Hong Kong.” 

Garcia Pereira afirma que a solução plasmada no documento “sustenta os argumentos dos que afirmam que este acordo não dá segurança e muito menos segurança absoluta”. Para este advogado, o mecanismo descrito faz com que um Executivo governamental menos respeitador das condições da constitucionalidade “imponha o facto consumado da entrega de um determinado cidadão que depois será entregue às autoridades chinesas, e sujeito a um processo penal que não oferece as garantias mínimas de um processo justo”. “É gravíssimo que se coloque isso em termos do próprio acordo”, remata.

João Carlos Malta | Ponto Final

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