terça-feira, 18 de junho de 2019

Etiópia: a eterna marcha da humanidade


Desde Lucy, homo sapiens caminha da África ao mundo. Agora, é a desigualdade que expulsa populações, vítimas da barbárie colonial, em uma caminhada por outro futuro. Hipócrita Europa reconhecerá responsabilidade pelas migrações?

Fernando Ayala | Outras Palavras | Tradução: Simone Paz e Gabriela Leite

Há 3,2 milhões de anos, Lucy, o primeiro de nossos antepassados do qual temos conhecimento, nascia de uma mãe primata, se diferenciando dela graças à evolução de seus genes. Isto lhe permitiu se erguer sobre dois pés e começar a caminhar pela África, em Hadar, Vale de Awash, a 159 quilómetros de Adis Abeba, na atual Etiópia. Todos nós descendemos de Lucy — inclusive os escravocratas, colonialistas e supremacistas brancos de hoje e de antigamente. Seus restos, encontrados em 1974 pelo paleoantropólogo estadunidense Donald Johansson, são preservados no museu de Adis Abeba, onde tive a oportunidade de conhecer os parentes desta Australophitecus afarensis. Os descendentes de Lucy saíram caminhando, atravessaram continentes, e seus genes evoluíram até virar o que é nossa espécie hoje em dia: o homo sapiens ou “homem sábio”; tão “sábio” que, inclusive, temos a capacidade de eliminar toda a espécie humana e parecemos travar uma luta frenética para destruir o planeta.

Essa história da evolução do ser humano poderia ser muito mais bonita se as diferenças entre os descendentes de Lucy fossem menores. Enquanto hoje, no mundo desenvolvido, são poucos os que precisam caminhar, na maior parte da África, os seres humanos continuam a caminhar enormes distâncias, carregando a água e os cereais nas costas, principalmente por causa da pobreza — fato que encontra explicação na história deste continente subjugado e explorado por poderes coloniais, somado às guerras, aos conflitos étnicos, lutas religiosas, falta de institucionalidade, fragilidade dos sistemas políticos e, ainda por cima, às mudanças climáticas.


Etiópia, com uma superfície de 1.104.300 km², que equivale a 36 vezes a superfície da Bélgica, concentra pouco mais de 100 milhões de habitantes. Segundo projeções demográficas, em 2050 serão 188,5 milhões. A maior parte da população, o 41%, têm menos de 14 anos — percentagem que é de 13% na Alemanha. As quatro etnias principais (oromos, amharas, somalis e Tigray) compõem cerca de 70% de sua população que, ao todo, engloba 140 grupos diferentes, em que se falam 83 línguas e, aproximadamente, 200 dialetos.

Cristãos, muçulmanos e animistas convivem juntos com outras crenças menores. Na realidade, a maioria pratica, além de sua religião, numa forma de sincretismo religioso, o animismo atávico: que é a crença nas almas ou nos espíritos. O cristianismo ortodoxo tewahedo (palavra que significa “unidade”) etíope é a religião oficial desde o ano 330, aproximadamente, desde o reino de Aksum (século IV a.C. até VII d.C.), e, portanto, o segundo mais antigo do mundo, após o arménio. É praticado fervorosamente pelo 61,56% da população e inclui neste número protestantes e católicos, ou seja, mais de 60 milhões de pessoas.

Em Roma, essa vertente cristã é chamada de “cristianismo primitivo” ou paleocristianismo, provavelmente, porque seus ritos estão mais próximos das origens ou porque é praticada uma quaresma de verdade, com jejum desde o jantar até as três da tarde de cada dia, com abstinência absoluta de alimentos de origem animal e de álcool.

Na realidade, devemos nos perguntar se existe alguma religião que não seja primitiva. Qual a explicação que teria nossa avó Lucy cada vez que acordava de algum sonho? Acredito que é ali que nasce o animismo, os espíritos bons e maus que nos ajudavam ou perturbavam na luta diária pela sobrevivência, somado à crença de uma vida após a morte. Com efeito, o mesmo animismo continua presente na atualidade, por meio das tradições e das superstições que acompanham as pessoas no dia a dia.

Muçulmanos sunitas compõem a segunda religião com mais seguidores na Etiópia, com 34,4%. Seguem-nos os animistas, com 3,7%, e outras religiões menores. Vale destacar que 99,8% da população declara ter crenças espirituais. Na Alemanha, essa percentagem chega somente a 67,1%.

Até hoje, existe na Etiópia uma maravilhosa tolerância e convivência religiosa, existente há séculos; sem guetos, ou bairros ou cidades que se identifiquem com uma religião. Os problemas na Etiópia surgem do pertencimento a uma determinada etnia, e é ali que tudo se complica.

As rivalidades entre oromos (maioria) e amharas (minoria) se percebem ciclicamente, provocando enfrentamentos e mortes. As tensões entre a Etiópia e a Eritreia começaram poucos anos depois de que este último país conseguisse sua independência, em 1993. Entre 1998 e 2000, estourou uma guerra que se prolongou até 2018, quando foi assinado um tratado de paz e houve o reconhecimento das fronteiras. Calcula-se ao redor de 100 mil mortos e mais de 600 mil refugiados, entre as vítimas.

Diferentemente de outros países africanos, a Etiópia nunca foi colónia. Na repartição do continente, durante a Conferência de Berlim em 1884-85, este território, conhecido como Abissínia, foi designado como um Protetorado da Itália (que tinha presença ativa na Eritreia). Porém, as forças italianas foram derrotadas pelos etíopes em 1896, na batalha de Adua, o que se comemora a cada ano como uma vitória militar que criou as bases para a sua independência. Mussolini conseguiu ocupar a Etiópia entre 1935 e 1941, para sua efémera glória pessoal, criando a província da África Oriental Italiana, que incluía Etiópia, Eritreia e Somália. Transferiu para Roma o simbólico obelisco de Aksum, datado do século IV, que foi instalado como troféu de guerra na entrada do Ministério das Colónias, atual FAO (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura), até que foi devolvido em 2008 à Etiópia. O imperador Haile Selassie é reconhecido e venerado com tanto respeito que a principal universidade de Addis Abeba porta o seu nome e abriga um museu em sua homenagem.

As odiosas, mas necessárias comparações

A realidade económica e social da Etiópia é dramática, apesar de que as pessoas sinalizam estar melhores e ter confiança no futuro. Pela primeira vez, há uma presidente mulher e um primeiro ministro pacifista, que conta com amplo apoio e está empenhado em criar melhores condições de vida para as pessoas. No entanto, em cada esquina de Addis Abeba, os carros são cercados por mulheres com bebés em seus colos, idosos e crianças pedindo esmola. À noite, é possível ver grupos de pessoas que dormem nas ruas.

Em 2017, 27,3% da população vivia com 1,9 dólares por dia, 23,5% se encontrava abaixo da linha de pobreza e o PIB per capita corrigido (PPP) estava em U$ 1.890. Na Alemanha, o PIB chegava em U$ 51.680. De acordo com o Banco Mundial, 80% da população etíope vive no campo, mas os jovens começam a emigrar das cidades, atraídos pelos celulares e as oportunidades de começar uma nova vida. Em 2017, em torno de 900 mil etíopes viviam fora de seu país, principalmente nos Estados Unidos e na Arábia Saudita, o que representa uma importante fonte de remessas. Da mesma maneira que a maioria dos países africanos, a taxa de mortalidade infantil estimada alcançava 49,6 em cada mil crianças vivas em 2016. Na Alemanha e outros países ditos desenvolvidos, a mesma taxa alcançava 3,4 por mil. A expectativa de vida de um recém nascido etíope é de 65,4 anos, enquanto que a de um alemão chegava a 81 em 2017.

Assim como reconhecemos que aumentaram as diferenças entre ricos e pobres dentro de cada país, vale a pena lembrar que a lacuna entre os países desenvolvidos e os em desenvolvimento também continua aumentando. As comparações dramáticas entre ingressos e qualidade de vida deveriam fazer-nos refletir sobre o que estamos fazendo para reduzir-las de maneira efetiva.

Uma nova Conferência de Berlim

O destino dos africanos foi selado pelas potências na Conferência de Berlim do século XIX. As fronteiras foram criadas de acordo com a força de cada império. Não houve livre-arbítrio para seus povos, nem uma mão divina que os protegesse.

As projeções de crescimento demográfico da ONU para o mundo mostram que enquanto na Europa dos anos 2050 a população diminuirá em 4,3%, a da África aumentará em 1,3 biliões, ou seja, dobrará sua atual população. Que futuro espera a essas gerações que estão por nascer? Seguramente, caminhar, tal como fizeram as gerações posteriores a nossa avó Lucy. O mais provável é que muitos tentarão imigrar, à Europa ou Estados Unidos, para buscar um futuro melhor, a não ser que as condições atuais de países como a Etiópia não melhorem substancialmente. Nem a independência alcançada nos anos 60, nem o fato de nunca ter sido colónia, fizeram diferença em termos reais, em que pese as boas intenções de muitos mandatários.

É hora de uma “nova Conferência de Berlim”, inclusive com as mesmas potências que escravizaram, saquearam e repartiram o continente. Ao revisar a ata de tal conferência, datada de 26 de fevereiro de 1885, se lê: “… Regular as condições mais favoráveis para o desenvolvimento de comércio e a civilização em certas regiões da África, e para assegurar todas as nações as vantagens da livre navegação dos dois principais rios da África, que fluem ao Oceano Atlântico”.

Transcorridos 135 anos, sabemos muito bem quais foram os resultados civilizatórios. Por isso, um sentido de realismo deveria convocar esses mesmos países para buscar soluções globais que vão mais além da ameaça demográfica e desenvolver um grande plano de inversão com responsabilidade compartilhada para evitar o mau uso de recursos e reforçar os organismos multilaterais para que possam acompanhar um processo que será a longo prazo. É hora de investir seriamente para proteger o futuro e, para isso, deveriam reunir-se novamente os participantes da Conferência de Berlim para buscar fazer realidade o sonho de gerações de africanos que esperam uma vida melhor em seus países, sem ter que ir buscá-la nos de seus antigos colonizadores.

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