Desde Lucy, homo
sapiens caminha da África ao mundo. Agora, é a desigualdade que expulsa
populações, vítimas da barbárie colonial, em uma caminhada por outro futuro.
Hipócrita Europa reconhecerá responsabilidade pelas migrações?
Fernando Ayala | Outras Palavras | Tradução: Simone
Paz e Gabriela Leite
Há 3,2 milhões de anos, Lucy, o
primeiro de nossos antepassados do qual temos conhecimento, nascia de uma mãe
primata, se diferenciando dela graças à evolução de seus genes. Isto lhe
permitiu se erguer sobre dois pés e começar a caminhar pela África, em Hadar,
Vale de Awash, a 159 quilómetros de Adis Abeba, na atual Etiópia. Todos nós
descendemos de Lucy — inclusive os escravocratas, colonialistas e supremacistas
brancos de hoje e de antigamente. Seus restos, encontrados em 1974 pelo
paleoantropólogo estadunidense Donald Johansson, são preservados no museu de
Adis Abeba, onde tive a oportunidade de conhecer os parentes desta Australophitecus
afarensis. Os descendentes de Lucy saíram caminhando, atravessaram continentes,
e seus genes evoluíram até virar o que é nossa espécie hoje em dia: o homo
sapiens ou “homem sábio”; tão “sábio” que, inclusive, temos a capacidade de
eliminar toda a espécie humana e parecemos travar uma luta frenética para
destruir o planeta.
Essa história da evolução do ser
humano poderia ser muito mais bonita se as diferenças entre os descendentes de
Lucy fossem menores. Enquanto hoje, no mundo desenvolvido, são poucos os que
precisam caminhar, na maior parte da África, os seres humanos continuam a
caminhar enormes distâncias, carregando a água e os cereais nas costas,
principalmente por causa da pobreza — fato que encontra explicação na história
deste continente subjugado e explorado por poderes coloniais, somado às
guerras, aos conflitos étnicos, lutas religiosas, falta de institucionalidade,
fragilidade dos sistemas políticos e, ainda por cima, às mudanças climáticas.
Etiópia, com uma superfície de
1.104.300 km², que equivale a 36 vezes a superfície da Bélgica, concentra pouco
mais de 100 milhões de habitantes. Segundo projeções demográficas, em 2050
serão 188,5 milhões. A maior parte da população, o 41%, têm menos de 14 anos — percentagem que é de 13% na Alemanha. As quatro etnias principais (oromos,
amharas, somalis e Tigray) compõem cerca de 70% de sua população que, ao todo,
engloba 140 grupos diferentes, em que se falam 83 línguas e, aproximadamente,
200 dialetos.
Cristãos, muçulmanos e animistas
convivem juntos com outras crenças menores. Na realidade, a maioria pratica,
além de sua religião, numa forma de sincretismo religioso, o animismo atávico:
que é a crença nas almas ou nos espíritos. O cristianismo ortodoxo tewahedo (palavra
que significa “unidade”) etíope é a religião oficial desde o ano 330,
aproximadamente, desde o reino de Aksum (século IV a.C. até VII d.C.), e,
portanto, o segundo mais antigo do mundo, após o arménio. É praticado
fervorosamente pelo 61,56% da população e inclui neste número protestantes e
católicos, ou seja, mais de 60 milhões de pessoas.
Em Roma, essa vertente cristã é
chamada de “cristianismo primitivo” ou paleocristianismo, provavelmente, porque
seus ritos estão mais próximos das origens ou porque é praticada uma quaresma
de verdade, com jejum desde o jantar até as três da tarde de cada dia, com
abstinência absoluta de alimentos de origem animal e de álcool.
Na realidade, devemos nos
perguntar se existe alguma religião que não seja primitiva. Qual a explicação que teria nossa avó Lucy cada vez que acordava de algum sonho? Acredito que é ali
que nasce o animismo, os espíritos bons e maus que nos ajudavam ou perturbavam
na luta diária pela sobrevivência, somado à crença de uma vida após a morte.
Com efeito, o mesmo animismo continua presente na atualidade, por meio das
tradições e das superstições que acompanham as pessoas no dia a dia.
Muçulmanos sunitas compõem a
segunda religião com mais seguidores na Etiópia, com 34,4%. Seguem-nos os
animistas, com 3,7%, e outras religiões menores. Vale destacar que 99,8% da
população declara ter crenças espirituais. Na Alemanha, essa percentagem chega
somente a 67,1%.
Até hoje, existe na Etiópia uma
maravilhosa tolerância e convivência religiosa, existente há séculos; sem
guetos, ou bairros ou cidades que se identifiquem com uma religião. Os
problemas na Etiópia surgem do pertencimento a uma determinada etnia, e é ali
que tudo se complica.
As rivalidades entre oromos
(maioria) e amharas (minoria) se percebem ciclicamente, provocando
enfrentamentos e mortes. As tensões entre a Etiópia e a Eritreia começaram
poucos anos depois de que este último país conseguisse sua independência, em
1993. Entre 1998 e 2000, estourou uma guerra que se prolongou até 2018, quando
foi assinado um tratado de paz e houve o reconhecimento das fronteiras.
Calcula-se ao redor de 100 mil mortos e mais de 600 mil refugiados, entre as
vítimas.
Diferentemente de outros países
africanos, a Etiópia nunca foi colónia. Na repartição do continente, durante a
Conferência de Berlim em 1884-85, este território, conhecido como Abissínia,
foi designado como um Protetorado da Itália (que tinha presença ativa na
Eritreia). Porém, as forças italianas foram derrotadas pelos etíopes em 1896,
na batalha de Adua, o que se comemora a cada ano como uma vitória militar que
criou as bases para a sua independência. Mussolini conseguiu ocupar a Etiópia entre
1935 e 1941, para sua efémera glória pessoal, criando a província da África
Oriental Italiana, que incluía Etiópia, Eritreia e Somália. Transferiu para
Roma o simbólico obelisco de Aksum, datado do século IV, que foi instalado como
troféu de guerra na entrada do Ministério das Colónias, atual FAO (Organização
das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura), até que foi devolvido em
2008 à Etiópia. O imperador Haile Selassie é reconhecido e venerado com tanto
respeito que a principal universidade de Addis Abeba porta o seu nome e abriga
um museu em sua homenagem.
As odiosas, mas necessárias
comparações
A realidade económica e social da
Etiópia é dramática, apesar de que as pessoas sinalizam estar melhores e ter
confiança no futuro. Pela primeira vez, há uma presidente mulher e um primeiro
ministro pacifista, que conta com amplo apoio e está empenhado em criar
melhores condições de vida para as pessoas. No entanto, em cada esquina de
Addis Abeba, os carros são cercados por mulheres com bebés em seus colos,
idosos e crianças pedindo esmola. À noite, é possível ver grupos de pessoas que
dormem nas ruas.
Em 2017, 27,3% da população vivia
com 1,9 dólares por dia, 23,5% se encontrava abaixo da linha de pobreza e o PIB
per capita corrigido (PPP) estava em U$ 1.890. Na Alemanha, o PIB chegava em U$
51.680. De acordo com o Banco Mundial, 80% da população etíope vive no campo,
mas os jovens começam a emigrar das cidades, atraídos pelos celulares e as
oportunidades de começar uma nova vida. Em 2017, em torno de 900 mil etíopes
viviam fora de seu país, principalmente nos Estados Unidos e na Arábia Saudita,
o que representa uma importante fonte de remessas. Da mesma maneira que a
maioria dos países africanos, a taxa de mortalidade infantil estimada alcançava
49,6 em cada mil crianças vivas em 2016. Na Alemanha e outros países ditos
desenvolvidos, a mesma taxa alcançava 3,4 por mil. A expectativa de vida de um
recém nascido etíope é de 65,4 anos, enquanto que a de um alemão chegava a 81
em 2017.
Assim como reconhecemos que
aumentaram as diferenças entre ricos e pobres dentro de cada país, vale a pena
lembrar que a lacuna entre os países desenvolvidos e os em desenvolvimento
também continua aumentando. As comparações dramáticas entre ingressos e
qualidade de vida deveriam fazer-nos refletir sobre o que estamos fazendo para
reduzir-las de maneira efetiva.
Uma nova Conferência de Berlim
O destino dos africanos foi
selado pelas potências na Conferência de Berlim do século XIX. As fronteiras
foram criadas de acordo com a força de cada império. Não houve livre-arbítrio
para seus povos, nem uma mão divina que os protegesse.
As projeções de crescimento
demográfico da ONU para o mundo mostram que enquanto na Europa dos anos 2050 a população diminuirá
em 4,3%, a da África aumentará em 1,3 biliões, ou seja, dobrará sua atual
população. Que futuro espera a essas gerações que estão por nascer?
Seguramente, caminhar, tal como fizeram as gerações posteriores a nossa avó
Lucy. O mais provável é que muitos tentarão imigrar, à Europa ou Estados
Unidos, para buscar um futuro melhor, a não ser que as condições atuais de
países como a Etiópia não melhorem substancialmente. Nem a independência
alcançada nos anos 60, nem o fato de nunca ter sido colónia, fizeram diferença
em termos reais, em que pese as boas intenções de muitos mandatários.
É hora de uma “nova Conferência
de Berlim”, inclusive com as mesmas potências que escravizaram, saquearam e
repartiram o continente. Ao revisar a ata de tal conferência, datada de 26 de
fevereiro de 1885, se lê: “… Regular as condições mais favoráveis para o
desenvolvimento de comércio e a civilização em certas regiões da África, e para
assegurar todas as nações as vantagens da livre navegação dos dois principais
rios da África, que fluem ao Oceano Atlântico”.
Transcorridos 135 anos, sabemos
muito bem quais foram os resultados civilizatórios. Por isso, um sentido de
realismo deveria convocar esses mesmos países para buscar soluções globais que
vão mais além da ameaça demográfica e desenvolver um grande plano de inversão
com responsabilidade compartilhada para evitar o mau uso de recursos e reforçar
os organismos multilaterais para que possam acompanhar um processo que será a
longo prazo. É hora de investir seriamente para proteger o futuro e, para isso,
deveriam reunir-se novamente os participantes da Conferência de Berlim para
buscar fazer realidade o sonho de gerações de africanos que esperam uma vida
melhor em seus países, sem ter que ir buscá-la nos de seus antigos
colonizadores.
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