José Eduardo Agualusa | Expresso
| opinião
É um dos mais conceituados
escritores de língua portuguesa, com vários prémios no currículo. Aceitou o
repto do Expresso e na data em que se assinala o Dia de Portugal, de Camões e
das Comunidades Portuguesas escreve sobre a lusofonia
Testemunhei em diversas ocasiões o
genuíno espanto de cidadãos portugueses, em visita a Angola ou a Moçambique,
quando percebem que a palavra lusofonia está longe de ser consensual, podendo
levantar, pelo contrário, acesa polémica.
Em primeiro lugar, é importante
ter em conta que em todos os países africanos, mas também no Brasil, em
Timor-Leste, e até em Portugal, a língua portuguesa não está sozinha. Em
Portugal o mirandês é a segunda língua oficial do país, desde 1999, lado a lado
com a língua portuguesa. Além disso, há hoje largos milhares de portugueses que
têm como língua materna o crioulo de Cabo Verde. Talvez seja altura de
considerar também esta língua como idioma oficial. No Brasil, são línguas
oficiais, além do português, o nheengatu, o tukano, o baniwa, o macuxi, o
wapixana e o akwê xerente. Muitas outras deveriam beneficiar de idêntico
estatuto.
Temos, portanto, no interior da
lusofonia, inúmeras comunidades linguísticas que se esforçam por preservar
identidades próprias, e que, em alguns casos, olham para a língua portuguesa
como uma ameaça. Não se trata de paranoia. O português já foi língua de
extermínio no Brasil, onde em cinco séculos se perderam muitas centenas de
idiomas indígenas, alguns absolutamente originais, isto é, sem parentesco com
outros. Em Angola, as línguas nacionais resistiram ao colonialismo, mas
enfrentam agora a enorme pressão do português, que teve um crescimento
assombroso nos últimos anos.
Antes da independência, o
português era falado em Angola, enquanto língua materna, por uma percentagem
muito reduzida de angolanos — no máximo cinco por cento. Hoje, mais de metade
dos jovens e crianças já só fala a nossa língua. Creio não existir em África
nenhum outro exemplo de um idioma colonial que se tenha enraizado com tanto
sucesso. O problema é que a expansão do português se fez à custa de outras
línguas, em particular do quimbundo. Hoje, nas ruas de Luanda, é muito mais
fácil encontrar quem tenha o português como língua materna do que quem fale
quimbundo.
Trata-se de um retrocesso imenso,
considerando que no século XIX todos os habitantes de Luanda, fossem eles
angolanos ou portugueses, falavam quimbundo. Naquela época chegaram a ser
publicados jornais escritos inteiramente em quimbundo, e nas restantes
publicações periódicas surgiam com frequência poemas, contos e artigos de
opinião nesta bela e sonora língua.
Nas últimas décadas aumentou
muito o trânsito de pessoas dentro do território da lusofonia. São movimentos
complexos e plurais, que acontecem em todos os sentidos: há portugueses em
Angola e angolanos em Portugal; brasileiros em Portugal e Angola e portugueses
e angolanos no Brasil. Por outro, as novas tecnologias vieram facilitar a troca
de informação em português. Vivendo na ilha de Moçambique, começo o meu dia
lendo jornais angolanos, moçambicanos, brasileiros e portugueses. Nunca como
hoje nos conhecemos (e reconhecemos) tão bem uns aos outros. Nunca houve tanta
gente trabalhando em conjunto na construção de uma identidade comum.
Comparando com a francofonia e a
Commonwealth, há diferenças importantes que explicam o sucesso do caso
lusófono. Um deles é, por paradoxal que pareça, a fragilidade da antiga
potência colonial. A não existência de um centro forte permitiu a emergência e
a afirmação de vários outros núcleos de expansão da lusofonia, num movimento
mais amplo e democrático. Basta pensar, por exemplo, na influência da cultura
angolana em Portugal (e da variante do português angolano), através, sobretudo,
da música popular urbana.
Estamos criando um espaço de
língua portuguesa em que todas as partes participam de forma livre, em situação
de relativa igualdade, sem dominados nem dominadores. Uma lusofonia horizontal,
que não se esgota, longe disso, na língua comum. Uma irmandade autêntica.
O principal desafio que
enfrentamos na construção desta irmandade passa pela forma como a língua
portuguesa é percebida no espaço lusófono. O português tem de avançar em
conjunto com as restantes línguas nacionais de cada país. Não pode ser
percebido como inimigo, mas como parceiro. Apoiar a língua portuguesa em
Angola, Timor-Leste, Guiné-Bissau ou Moçambique significa reconhecer a
dignidade dos restantes idiomas nacionais e criar políticas para que essas
línguas ganhem força e recuperem o prestígio. O desafio, portanto, é conseguir
que a lusofonia seja encarada como uma dinâmica positiva em todos os
territórios de língua portuguesa, pelas diferentes comunidades linguísticas que
neles vivem.
Há que lutar também pela livre
circulação de pessoas e ideias em todo o espaço da lusofonia. Precisamos forçar
os nossos governos a instituir o tão falado “passaporte lusófono”. Parece-me
igualmente importante facilitar a circulação do livro em português. Portugal,
que foi capaz de desenvolver uma excelente rede de bibliotecas públicas,
poderia ajudar os países africanos (e até o Brasil) a fazer o mesmo.
A língua portuguesa é uma
construção conjunta de todos aqueles que a falam — e é assim desde há séculos.
A minha língua — aquela de que me sirvo para escrever —, não se restringe às
fronteiras de Angola, de Portugal ou do Brasil. A minha língua é a soma de
todas as suas variantes. É plural e democrática. A sua imensa riqueza está
nessa diversidade e na capacidade de se afeiçoar a geografias diversas, na
forma como vem namorando outros idiomas, recolhendo deles palavras e emoções.
Aprisionar a língua portuguesa às fronteiras de Portugal (ou de Angola ou do
Brasil) seria mutilá-la, roubar-lhe memória e destino.
Com o colapso do Império, o
português libertou-se. É nessa língua livre que eu me reconheço, e é por ela
que luto.
Sem comentários:
Enviar um comentário