Há uma guerra global pelo
controle de informações. Divulgá-las provoca fissuras no sistema, como já
fizeram Assange e Greenwald. O direito a saber é a batalha do século. É por
isso que governos declaram cruzada contra dissidentes
John Pilger entrevistado por Dennis J. Bernstein e
Randy Credico | Outras Palavras | Tradução: Gabriela Leite e Simone
Paz
O cineasta John Pilger, cujo
trabalho é afiado e digno de prémios como o Oscar e o Emmy, é reverenciado e
celebrado por jornalistas e editores em todo o mundo. Quando ainda estava em
seus vinte anos, Pilger se tornou o jornalista mais jovem a receber o principal prémio britânico da categoria, o “Jornalista do Ano”, o qual também foi o
primeiro a ganhá-lo duas vezes. Após se mudar para os Estados Unidos, relatou
as revoltas do final dos anos 1960 e dos 1970. Pilger estava na sala no momento
em que Robert Kennedy, então candidato presidencial, foi assassinado em junho
de 1968.
Sua reportagem sobre o sudeste
asiático e o documentário que veio depois, Ano Zero: A Morte Silenciosa do
Camboja, levantou quase 50 milhões de dólares (193 mil reais) para as pessoas
daquele país atingido. De maneira semelhante, seu documentário de 1994 e o
relatório de despachos do Timor Leste, para onde viajou secretamente, ajudou a
estimular apoio aos timorenses, cujo território estava então ocupado pela Indonésia.
Na Grã-Bretanha, sua investigação de quatro anos em nome de um grupo de
crianças debilitadas ao nascer pela droga Talidomida, e deixadas de fora do
acordo com a farmacêutica, teve, como resultado, um acordo especial. Em 2009,
foi agraciado com o prémio de direitos humanos da Austrália, o Sydney Peace
Prize. Recebeu títulos de doutorado honorários de universidades no Reino Unido
e outros países. Em 2017, a
Biblioteca Britânica anunciou um Arquivo John Pilger de todos os seus trabalhos
em texto e filme.
Nessa entrevista com Dennis J.
Bernstein e Randy Credico, Pilger fala sobre o que está acontecendo com seu
amigo e colega Julian Assange, fundador e editor do WikiLeaks, e como sua
perseguição pode ser o começo do fim da reportagem investigativa moderna como a
conhecemos. Desde sua alardeada encarceramento em prisão de segurança máxima,
jornalistas e whistleblowers [indivíduos que denunciam más condutas
de governos e instituições] têm sido perseguidos, presos e seus documentos e
discos rígidos apreendidos em países como os EUA, França, Grã Bretanha e
Austrália.
Bernstein: É bom falar com você
de novo, John. Obrigado por conversar connosco. Isso que está acontecendo — não
apenas com Julian Assange — mas com o futuro do jornalismo, é perturbador.
Agora, temos visto ataques a jornalistas na Austrália, França e aqui nos EUA em
São Francisco, onde a polícia algemou um repórter enquanto vasculhava sua casa
e apreendia seu HD. Sabemos que Julian Assange está em uma prisão de segurança
máxima e Chelsea Manning também está encarcerado. São tempos terríveis para o
fluxo livre de informação.
Pilger: Bem, isso agora está
acontecendo em todo o mundo, inclusive em toda a parte daquele mundo que se
gaba de ser “iluminado”. Estamos presenciando a represália aos whistleblowers e
jornalistas que se atrevem a dizer a verdade. Há uma guerra global contra o
jornalismo. Mais do que isso, há uma guerra global contra os dissidentes. A
velocidade com que esses eventos acontecem está bem acentuada desde 11 de
abril, quando Julian Assange foi arrastado pela polícia para fora da embaixada
equatoriana em Londres. Desde então, a polícia tem se voltado contra
jornalistas nos Estados Unidas, na Austrália e, de maneira mais espetacular, na
América Latina. É como se tivesse sido acionado um sinal verde para eles.
Credico: Eu achava que a essa
altura Assange já estaria solto. Você também não pensou que chegaria um momento
em ele estaria livre da situação terrível que estava quando o vi, há dois anos
atrás?
Pilger: Estou relutante em fazer
futurologia. Realmente pensei que um acordo político teria sido feito. Olhando
para trás, isso era extremamente ingénuo porque o extremo oposto tinha sido
planejado para Julian Assange. Há um “precedente Assange” funcionando em todo o
mundo. Na Austrália, houve um ataque a uma emissora pública, a Australian
Broadcasting Corporation, onde a polícia federal entrou com mandados, um dos
quais os dava permissão para deletar, alterar e se apropriar do material de
jornalistas. Foi um dos ataques mais estrondosos à liberdade jornalística e
inclusive à liberdade de expressão de que tenho lembrança. Vimos até a News
Corporation de Rupert Murdoch ser atacada.
A editora de política de um dos
jornais de Murdoch, o The Sunday Telegraph, viu sua casa ser saqueada e seus
pertences pessoais, íntimos, pilhados. Ela havia feito uma reportagem sobre a
extensão da espionagem oficial dos australianos realizada por seu governo. Algo
similar aconteceu na França, onde a polícia do [presidente Emmanuel] Macron
moveu uma ação contra jornalistas da revista Disclose.
Assange previu isso enquanto
estava sofrendo acusações e abusos. Ele dizia que o mundo estava mudando e que
as chamadas democracias liberais estavam se tornando autocracias. Uma
democracia que põe sua polícia contra jornalistas e confisca suas notas e
computadores, simplesmente porque revelaram algo que o governo não queria que o
povo soubesse, não é uma democracia.
Credico: Sabe, John, alguns
representantes da mídia empresarial aqui nos EUA e, acredito, no Reino Unido,
agora que perceberam que o tiro, possivelmente, saiu pela culatra, subitamente
saíram em defesa de Assange, particularmente quanto ao uso do Ato de Espionagem
e ao recolhimento de informação. Não quero denunciá-los por terem esperado
tanto tempo, mas porque eles esperaram tanto e que tipo de ajuda podem oferecer
a essa altura? E o que eles deveriam fazer, já que também estão na mira?
Pilger: Vamos ver quem está
realmente na mira. O WikiLeaks copublicou os registros das guerras do
Afeganistão e do Iraque em 2010, em colaboração com várias organizações de
mídia: Der Spiegel na Alemanha, The New York Times nos EUA, The Guardian no
Reino Unido e Espresso na Itália. Quem mais publicou o material do Iraque foram
Al Jazeera, Le Monde, o Bureau of Investigative Journalism de Londres, o
programa Dispatches do Channel 4 em Londres, o projeto britânico Iraq
Body Count, o RUF (Islândia), o SVT (Suécia) e por aí vai.
Existe uma lista de jornalistas
que relataram esses fatos e trabalharam com Assange. Isso fez seu trabalho
ecoar; eram colaboradores no sentido literal. Estou com uma lista agora mesmo:
no The New York Times tem Mark Mazzetti, Jane Perlez, Eric Schmitt, Andrew W.
Lehren, C. J. Chivers, Carlotta Gall, Jacob Harris, Alan McLean. Do The
Guardian são Nick Davies, David Leigh, Declan Walsh, Simon Tisdal… e a lista
continua. Todos esses jornalistas estão na mira. Eu não acredito que muitos vão
acabar entrando em apuros como Julian Assange porque não representam um perigo
ao sistema que reagiu contra Assange e Chelsea Manning; mas eles, prima
facie, cometeram os mesmos “crimes”. Em outras palavras, são tão “culpados”
quanto Assange de cometer jornalismo.
Isso se aplica a centenas, se não
milhares, de jornalistas ao redor do mundo. As divulgações do WikiLeaks, se não
copublicadas, foram ignorados por jornais, revistas e programas investigativos
de televisão em todas as partes. Isso faz com que todos os jornalistas estejam
envolvidos, todos os produtores, todos os apresentadores, todos eles são
cúmplices. E, é claro, a perseguição de Assange e a intimidação de alguns
outros representa um escárnio à Primeira Emenda da Constituição dos Estados
Unidos, que diz que você tem todo o direito de publicar; você tem todo o
direito de “publicar e ser amaldiçoado”. É um dos mais nobres e demonstráveis
princípios da constituição norte-americana que está sendo jogado no lixo. E a
ironia é que os jornalistas que olharam de forma enviesada para Assange, ainda
alegando que ele não era jornalista, estão agora correndo para cobrir, não
porque ele é um jornalista da mais alta grandeza, mas porque ele é um
jornalista com mais consciência do que muitos deles mesmos. Ele — e os outros
em sua sombra — estava fazendo um trabalho básico do jornalismo. É por isso que
chamo isso de guerra global contra o jornalismo — e o precedente aberto por
Julian Assange não se parece em nada com o que vimos antes.
Bernstein: John, quero pegar o
ponto de onde você estava, na pergunta de Randy, e esmiuçar e aprofundar o
entendimento das pessoas sobre quem exatamente é Julian Assange e, se me
permite, o ritmo que ele escolheu para seu trabalho. Como você descreve esse
ritmo de Julian Assange e as pessoas que escolheu para trabalhar com ele?
Pilger: Quando conheci Julian
Assange, perguntei a ele: “De que se trata, afinal, o WikiLeaks, e o que você
está fazendo aqui?”. Ele descreveu muito claramente o princípio da
transparência. Na verdade, estava descrevendo o princípio da liberdade de
expressão: que temos o direito de saber. Temos o direito de ter conhecimento
sobre o que nossos governos estão fazendo em nosso nome. Ele não estava dizendo
que há um direito de pôr as pessoas em perigo. Estava dizendo que no jogo
normal das democracias liberais temos o direito de saber o que o governo está
fazendo por nós, às vezes até conspirando contra nós e em nosso nome. Temos o
direito de saber a verdade sobre o que eles dizem em privado, o que tão
frequentemente é traduzido em inverdades em público. Essa transparência, ele
disse, era um princípio moral. Essa é a “razão” do WikiLeaks. Ele acredita
nisso fervorosamente e, claro, isso deveria tocar em todos os jornalistas
autênticos, porque é isso que nós todos deveríamos acreditar.
O que o caso Assange nos mostrou
é que essa guerra contra o jornalismo, essa guerra contra o dissidente, ainda
tem que entrar na corrente sanguínea da política. Nenhum dos candidatos que
concorre à presidência dos Estados Unidos chegou a mencionar o assunto. Nenhum
dos Democratas proferiu uma palavra. Não esperamos que a gangue de Trump fale
sobre princípios como esses, mas há alguns ingénuos que acreditam que talvez
alguns dos democratas deva fazer. Nenhum deles fez.
Bernstein: [O que significa quando]
Julian Assange e Chealsea Manning, um editor e um dos mais importantes whistleblowers militares
de nosso tempo, estão na prisão e encarcerados?
Pilger: Eles querem pôr suas mãos
em Julian Assange porque ele protegeu sua fonte e eles querem pôr as mãos em
Chelsea Manning porque ela, sendo a fonte, se recusou a mentir sobre Julian
Assange. Ela recusou-se a implicá-lo. Recusou-se a dizer que há uma conspiração
entre eles. Esses dois exemplificam o que é a mais pura alegação da verdade na
era moderna. Fomos desprovidos de duas pessoas como Assange e Chelsea Manning.
Sim, houve excelentes reportagens
investigativas e revelações, mas temos que voltar ao nível de Daniel Ellsberg
[militar que, em 1971, forneceu ao The New York Times o Pentagon Papers] para
apreciar o que Chelsea e Julian, essas duas figuras heróicas, o que elas nos
deram, e por que estão sendo perseguidas.
Se permitimos essas perseguições,
tudo está perdido… A intimidação e a supressão vão agir em toda nossa vida. Na
mídia que outrora abusou de Assange, eu vejo medo. Você lê alguns desses
editoriais escritos por aqueles que uma vez atacaram Julian Assange e
acusaram-no, tais como o The Guardian, e você os percebe temendo ser os
próximos. Você lê colunistas famosos como Katie Benner, no The New York Times,
que atacou Assange e agora vê uma ameaça de seus algozes a todos os
jornalistas. O mesmo é verdade para David Corn [da Mother Jones], que agora vê
a ameaça para todo o jornalismo. E eles têm razão em estarem assustados.
Credico: Qual era o medo que se
tinha de Assange? Que ele continuaria a trabalhar em novos métodos de
exposição? Por que estão tão assustados com Assange?
Pilger: Bem, acredito que estavam
preocupados — estão preocupados — que entre os dois milhões de pessoas nos EUA
que têm uma autorização de segurança nacional estejam entre aqueles que Assange
chamou de “objetores conscienciosos”. Uma vez pedi a ele para descrever as
pessoas que estavam usando o WikiLeaks para liberar informações importantes.
Ele os comparou aos objetores conscienciosos nos tempos de guerra, pessoas de
princípios e de paz, e eu acho que é uma descrição bem apropriada. As
autoridades estão preocupadas com a possibilidade de que haja algumas outras
Chelseas por aí. Talvez não tão corajosas ou ousadas como Chelsea, mas que
podem começar a soltar informações que enfraqueçam todo o sistema da máquina de
guerra.
Credico: Sim, falei com Julian
sobre isso mais ou menos um ano atrás, quando estava em Londres, sobre tentar
fazer uma comparação com o sul norte-americano na guerra de secessão e
jornalistas como Elijah Lovejoy e David Walker, que foram assassinados por
expôr a brutalidade e o destino da escravidão. Eu disse: “Sabe, nós precisamos
começar a te mostrar desse ponto de vista”, ao que ele respondeu: “há uma
grande diferença, Randy”. Ele disse isso: “veja, aqueles homens só tiveram que
lidar com um dos lados, e foi isso; as pessoas no sul e algumas de suas
colaboradoras em Nova York, que foram parte dos negócios de transporte de
algodão. Mas o resto do norte estavam praticamente todo do lado dos
abolicionistas. Eu expus crimes de guerra e isso fez com que os conservadores
se irritassem. E então expus o mal comportamento e a prevaricação no Partido
Democrata. Então, todos eram meu alvo, eu não poupo ninguém, então isso não se
aplica a mim”.
E foi isso que aconteceu aqui.
Você enxerga isso pelo reduzido número de protestos em seu nome. Eu fui a uma manifestação
outro dia, um pequeno protesto por Assange em frente à embaixada britânica, e
apenas meia dúzia de pessoas estavam lá, um pouco mais do que na semana
anterior. Ele não está gerando esse tipo de interesse até agora. E você via
pessoas que passavam por lá e diziam “Assange é um traidor”. Quer dizer, estão
tão desinformadas, e agora tenho que usar a citação que você usou, de Vandana
Shiva, em seu livro Freedom Next Time, que trata da “insurreição do
conhecimento subjugado”. Você pode falar sobre isso?
Pilger: Vandana Shiva é uma
grande ambientalista e ativista política indiana, cujos livros sobre a ameaça
da monocultura são referência, especialmente a ameaça de empresas
multinacionais de agroenergia que se impõe em sociedades vulneráveis e rurais
como a Índia. Ela descreve uma “insurreição do conhecimento subjugado”. É um
ótimo truísmo. Eu por muito tempo acreditei que a verdade reside em um mundo
metaforicamente subterrâneo e sobre isso está todo o ruído: o ruído dos
políticos credenciados, o ruído da mídia credenciada, aqueles que parecem estar
falando por quem está abaixo deles. De vez em quando, contadores de verdade
emergem de baixo. Pegue, por exemplo, o correspondente de guerra australiano,
Wilfred Burchett, que foi o primeiro a ir a Hiroshima depois do bombardeio
atômico. Seus relatos foram capa de seu jornal The Daily Express, em Londres,
nos quais dizia “eu escrevo isso como um alerta ao mundo”. Estava alertando
sobre armas nucleares. Tudo foi jogado contra Burchett para acusá-lo e
desacreditá-lo. O correspondente do New York Times liderava esse movimento: a
mesma pessoa que negou que as pessoas estavam sofrendo efeitos da
radioatividade: que pessoas tinham morrido apenas na explosão. Depois,
descobriu-se que ele estava mancomunado com autoridades norte-americanas.
Wilfred Burchett sofreu acusações ao longo de toda sua carreira. Todos os whistleblowers passam
por isso — aqueles que são afrontados pela indecência de algo que descobrem,
talvez em uma empresa para a qual trabalham ou dentro de um governo — eles
acreditam que o público tem o direito de saber a verdade.
O Guardian, que atacou Julian
Assange com tanta crueldade, tendo sido um dos parceiros de mídia do WikiLeaks,
nos anos 1980 publicou documentos de um oficial do Ministério das Relações Exteriores
que relatava planos dos EUA de instalarem mísseis de cruzeiro de médio alcance
ao longo da Europa. O Guardian publicou isso e foi devidamente elogiado em um
documento de divulgação e princípio. Mas quando o governo foi à justiça e um
juiz exigiu que o jornal entregasse os documentos que revelariam quem era o
denunciante — ao invés do editor fazer o que editores devem fazer, defender os
princípios e dizer “não, não vou revelar minha fonte” — o jornal traiu sua
fonte. Seu nome é Sarah Tisdall e ela acabou presa. Então, whistleblowers tem
que ser pessoas extraordinariamente corajosas e heróicas. Quando você olha para
tipos como Julian Assange e Chelsea Manning é como se toda a força da segurança
de Estado nacional norte-americana, apoiada por seus chamados aliados, tenha
sido imposta a eles. Julian representa um exemplo de que eles têm que fazê-lo,
porque se não transformá-lo em um exemplo, jornalistas podem ser encorajados a
fazer seu trabalho, e esse trabalho significa contar ao público o que ele tem direito
de saber.
Credico: Muito bem dito. No
prefácio ou introdução de seu livro, Freedom Next Time, você também cita
Harold Pinter e seu discurso vencedor do Prémio Nobel, no qual ele fala sobre a
vasta tapeçaria de mentiras que alimentamos, e ele segue adiante e diz que os
crimes norte-americanos foram superficialmente registados, que dirá
documentados, que dirá conhecidos. Julian Assange quebrou essa conduta pra
valer, expôs crimes de guerra cometidos pelos EUA e todo tipo de travessuras
que o Departamento de Estado tenha perpetrado. Você fala de Harold Pinter, da
grande influência que ele foi.
Pilger: Sim, eu recomendo aos
seus ouvintes o discurso de recebimento
do Prêmio Nobel de Harold Pinter. Acredito que foi em 2015. Foi um
testamento eloquente e magnífico sobre como e porque a verdade precisa ser
contada e também por quê não deveríamos mais tolerar a hipocrisia dos políticos
de duas caras.
Harold Pinter fez um paralelo
entre nossa visão sobre a União Soviética e os crimes de Stalin, comparada com
a dos crimes dos Estados Unidos; ele disse que a maior diferença é que nós
temos ciência da magnitude dos crimes de Stalin, mas que sabemos muito pouco
sobre os crimes de Washington. Ele comentava que o ensurdecedor silêncio que
envolve nossos crimes — quando digo “nossos”, me refiro àqueles dos Estados
Unidos — significam, como ele disse memoravelmente: “estes crimes nunca
ocorreram, não aconteceram nem quando estavam ocorrendo, eles não são de
interesse público e não têm a menor importância”.
Nos livramos desse duplo padrão,
com certeza. Acabamos de ter uma celebração escorregadia do 6 de junho, o
Dia-D. Essa foi uma invasão extraordinária na qual muitos soldados tomaram
parte e deram suas vidas, mas isso não fez com que a guerra fosse vencida. A
União Soviética na verdade ganhou a guerra, mas os russos não eram nem
representados, não eram nem convidados a falar sobre isso. Isso não aconteceu,
como Pinter costumava dizer. Isso não importou. Mas Donald Trump estava lá,
palestrando ao mundo sobre guerra e paz. É uma sátira horrível. Esse silêncio,
essas omissões, correm em todos os nossos jornais, como se fosse mesmo uma
aparência de verdade, e não é.
Bernstein: Quero voltar ao ponto
de Wilfred Burchett e a enorme responsabilidade que esses grandes jornalistas
têm de permitir que coisas terríveis continuem acontecendo sem serem
noticiadas, baseados em questões de patriotismo e alegações de segurança
nacional. Estou pensando, tiveram que calar Wilfred Burchett porque aquilo
poderia ter aberto a porta toda de como são perigosas as armas nucleares e o
poder nuclear, detonando o mito da paz atómica.
Pilger: Isso é totalmente
verdade, Dennis, e isso também mina os planos morais da “Guerra Boa”, a Segunda
Guerra Mundial que acabou com esses dois grandes crimes: o bombardeio atómico de Hiroshima e de Nagasaki em um momento em que o Japão não representava
nenhuma ameaça. Historiadores confiáveis agora não nos contam os contos de
fadas de que essas bombas atómicas eram necessárias no fim da guerra. Então,
isso destruiu em muitos aspectos a grande missão moral da guerra.
Não apenas fez isso, como
declarou no bombardeio atómico que uma nova guerra estava começando, uma
“Guerra Fria”, apesar da possibilidade de se tornar rapidamente uma “guerra
quente” com a União Soviética. E com isso estava dizendo que “nós” — ou seja,
os Estados Unidos e aliados como os britânicos — temos armas nucleares e
estamos prontos para usá-las. Essa é a chave: estamos preparados para usá-las.
E os Estados Unidos foram os únicos que já chegaram a usá-las contra outro
país.
Claro que, depois, isto foi
testado nos Territórios de Confiança da ONU. Era para ser mantido em confiança
pela ONU nas Ilhas Marshall e acabou dando início a várias Hiroshimas ao longo
de 12 anos. Naquele tempo, nós não sabíamos nada disso. Mas e quanto sabemos
sobre as ogivas nucleares (tipo de míssil) que o Presidente Obama solicitou e
que comprometeram cerca de um trilião de dólares? — às quais, certamente, o
presidente Trump deu continuidade.
E aqueles tratados que ofereciam
uma defesa precária contra um holocausto nuclear, tratados com a União
Soviética, como o de armas de médio alcance, que foi rasgado por esta
administração? Uma coisa leva à outra. Isto é contar a verdade.
Bernstein: quero voltar e lembrar
as pessoas que tipo de estrutura Julian Assange criou com o WikiLeaks para
proteger whistleblowers. Esse é um ponto crucial porque temos visto agora
outros jornalistas sendo mais cuidadosos e vemos fontes sendo rastreadas,
presas, e enfrentando grandes tempos de cadeia. E acredito que foi assim que
Julian Assange honrou os whistleblowers, protegê-los é uma parte crucial
de quem ele é e o que ele fez.
Pilger: Ele inventou um sistema
através do qual é impossível dizer quem foi a fonte e isso permitiu pessoas
usarem algo como um buraco de caixa de correio para vazar materiais sem terem
sua identidade divulgada. É provavelmente isso que enraiveceu aqueles que estão
perseguindo Assange. Significa que pessoas de consciência dentro dos governos,
dentro de sistemas, que ficam incomodadas como Chelsea Manning, que ficou
profundamente perturbada com o que viu, tenham a oportunidade de contar ao
mundo, sem temer que tenham sua identidade exposta. Infelizmente, Chelsea
revelou sua identidade a alguém que a traiu. É um meio sem precedentes de
descobrir a verdade.
Bernstein: John, conte-nos sobre
sua visita recente a Assange no presídio de segurança máxima de Belmarch, na
Grã-Bretanha. Como ele está?
Pilger: Eu gostaria de dizer uma
coisa sobre Julian, pessoalmente. Eu vi Julian na prisão de Belmarsh e eu tive
uma sensação vivida do que ele tem que suportar. Eu vi a resiliência e coragem
que conheço há tantos anos, mas agora ele está indisposto. A pressão sobre ele
é inimaginável, a maior parte de nós teria se curvado diante disso. Mas há uma
questão aqui de justiça por esse homem e o que ele teve que enfrentar; não apenas
as mentiras que foram contadas sobre ele na embaixada e as grandes farsas que
buscavam assassinar sua reputação. A chamada mídia respeitável, do New York
Times ao The Guardian, todos caíram na lama e a jogaram nele; e hoje ele está
muito vulnerável e eu vou dizer isso aos ouvintes: ele precisa de nosso apoio e
solidariedade. Mais importante, ele merece.
Bernstein: Fale um pouco mais
sobre as condições do lugar e por que é tão significativo que o deixem por um
ano numa prisão como essa.
Pilger: Bom, eu suponho que por
causa da ameaça que ele significa. Mesmo com Julian preso, o WikiLeaks segue.
Essa é uma prisão de segurança máxima. Qualquer um preso por infração de
fiança, antes de mais nada, não teria sido condenado a 50 semanas, como ele
foi. Poderiam receber uma multa ou um mês, no pior dos casos. Mas é claro que
isto, agora, significou uma extradição, um caso com todos esses encargos
ridículos vindos de uma acusação na Virgínia. Mas Julian, como indivíduo, o que
sempre me chocou, é que ele é exatamente o oposto da imagem que seus detratores
relatam. Ele tem um intelecto aguçado, então é muito inteligente,
evidentemente.
Ele é muito engraçado e
divertido. Sempre dou risadas com ele. Nós, inclusive, conseguimos rir da última
vez em que o vi na embaixada, quando tinha um monte de câmeras na sala, e
trocamos anotações em que tínhamos que cobrir o que aquilo que estávamos
escrevendo.
Ele deu um jeito de rir disso.
Então ali você tem um tipo de humor seco, quase humor negro, ao mesmo tempo em
que ele é uma pessoa muito apaixonada; mas sua resiliência é o que sempre me
deslumbrou. Já tentei me imaginar no lugar dele, e não consegui. Quando o vi na
cadeia, e tivemos que nos sentar na frente um do outro, eu estava com mais um
casal. Um de nós deu a volta ao redor da mesa, só para ficar mais perto dele,
quando foi impedido pelos seguranças. Esse tipo de situação é o que uma pessoa
que não cometeu nenhum crime — sim, ele cometeu o crime do jornalismo — tem que
aturar.
Ouça a entrevista (em inglês), aqui.
Gostou do texto? Contribua para
manter e ampliar nosso jornalismo de profundidade: OUTROS QUINHENTOS
Sem comentários:
Enviar um comentário