segunda-feira, 24 de junho de 2019

Portugal | Gula, obesidade e vaidade na TQT


A Televisão Que Temos é exatamente assim: abusadora e malcriada, pesporrente e peneirenta, sobranceira e metediça.

Alfredo Barroso  | jornal i | opinião

1. Cozinha e comida para o povo são o cimento que liga de cabo a rabo o famoso Programa da Cristina, nas manhãs da SIC, por entre os risos escancarados e os silvos estridentes da exibicionista, que adora provar de tudo - por exemplo, ao cheirar uma receita de bacalhau antes de enfiar o “fiel amigo” num orifício bocal tão franzido como um chocho, mas ainda ocluso... É certo, porém, que cozinha e comida para o povo são também a argamassa de outros programas mexerucos e mariolas (nomeadamente o do Goucha, na TVI) que preenchem manhãs, tardes e noites de vários canais de TV, quer generalistas quer do cabo, que as operadoras nos oferecem ad nauseam, ou seja, até ao enjoo e ao vómito... Isto mereceria um estudo aprofundado sobre o génio dos orifícios - e são muitos! - para entendermos melhor a sua utilidade cívica, já nem direi cultural, pelo menos antes que tais programas comecem a ir ainda mais longe, optando por orifícios porventura mais excitantes e passando, por exemplo, a surpreender as audiências com cenas de sexo ao vivo… E porque não, se tal já se viu em camaratas do big brother embora a coberto de lençóis?! E viva a SIC, viva a TVI e viva a CMTV!


2. No hilariante filme dos Monty Python The Meaning Of Life (O Sentido da Vida), realizado em 1983 pelo Terry Jones e o Terry Gilliam - com John Cleese, Michael Palin, Graham Chapman, Eric Idle e os dois realizadores, entre tantos outros - constatamos o que pode suceder a um grotesco lambão, como o que é interpretado pelo Terry Jones, que ingurgita comida desalmadamente até inchar como um balão e acabar por rebentar como um fogo-de-artifício de apertar o nariz tal o pivete exalado pelo lambão feito em “merda”... Será que a histérica Cristina, o histórico Goucha, a evanescente Fátima “Bomba” Lopes e outros entertainers já terão visto o filme dos Monty Python ou, pelo menos, a cena do grande lambão?

3. Curioso. Há poucos dias vi - num dos canais privados que impingem ao povo, diariamente, doses massivas de comida em programas mexerucos e mariolas - uma reportagem sobre a obesidade que ataca implacavelmente os portugueses desde as mais tenras idades - tão tenras como um bife à Chateaubriand ou um tournedó à Rossini - e causa muitas maleitas que dão cabo de tudo, mormente das vísceras, e não só do coração e dos dedos dos pés... Em suma: o frívolo e o sério, a gula gargantuesca e a adiposidade excessiva, a garfada e o dulcolax, coexistem na programação dos canais de TV fatalmente popularuchos, nos quais se comete diariamente o pecado da gula, para depois a denunciarem com toda a seriedade e compostura do jornalismo hipócrita, reclamando, então, as curas de emagrecimento e a redenção dos pecadores, que se impõem. Amen... 
4. Passemos à vaidade propriamente dita. Agora, na TVI, quando se trata de “jornalismo de investigação” - seja lá isso o que for, e hoje é, preferencialmente, espectáculo e entertainement - o que se promove não é tanto o tema de cada investigação mas, sobretudo, a jornalista que investiga, elevada à condição de heroína, de amazona, de Florence Nightingale do jornalismo pós-moderno, que anda à cata de escândalos e os vasculha sem parar, chame-se ela Fulana de Tal ou Beltrana de Tal, já que são duas, à compita... A jornalista-vedeta é que é, na TVI, o espectáculo, porque é ela que “descobre as carecas”, que aponta o dedo acusador, que fala aos visados com arrogância e desdém, que lhes perfura os bestuntos, que os julga como se fosse juíza, e que os condena sem apelo nem agravo... Fulana de Tal e Beltrana de Tal abundam em arrogância e estoiram de vaidade. Desconfia-se que nenhuma delas terá cometido, alguma vez na vida, pequenos, médios ou grandes pecados. São santas criaturas - aliás, todos os jornalistas em Portugal são criaturas santas! - sem sombra de pecado e, por isso mesmo, puras e virginais - não no sentido bíblico, presumo! - elevando-se no firmamento da comunicação social lusitana como jornalistas não menos do que geniais, viragos excepcionais, exemplos a imitar, cuja autoridade profissional e ética lhes consente que espreitem, esgravatem, escarafunchem, escavaquem, perfurem e denunciem o que topam logo como sendo trafulhices, sujeiras, fraudes - de alto, médio e baixo coturnos - grandes e pequenas sacanices inadmissíveis e vigarices intoleráveis, em suma: as “merdices” de todo o tipo, verdadeiras ou nem por isso, que preenchem o quotidiano a que as audiências da TV têm direito, faça sol na eira ou chuva no nabal... Mas a TQT (Televisão Que Temos) é exactamente assim: abusadora e malcriada, pesporrente e peneirenta, sobranceira e metediça, voyeurista e desprezível, histérica e estúpida, comilona e lambareira, clamorosa e voraz! Eis a triste sina de quem vê TV... 

* TQT é o acrónimo de “Televisão Que Temos”, que utilizei sistematicamente nas minhas crónicas sobre TV publicadas no semanário O Independente em meados dos anos 1990.

O autor escreve sem adopção das regras  do acordo ortográfico de 1990

Sem comentários:

Mais lidas da semana