Embargo de quatro anos, sabotagem
dos grandes empresários e erros do governo provocam escassez e alimentam
inflação. Conheça a associação de famílias que dribla a crise praticando
economia sustentável – e debate alternativas ao capitalismo
Michele de Mello, no Brasil de Fato | em Outras Palavras
A associação Alpargatas
Solidárias foi criada há quatro anos como uma forma de evitar a guerra de
preços que atinge a Venezuela, além de organizar os cidadãos do
país em torno de uma nova forma de se relacionar, conviver e produzir.
Para isso, dividem-se em cinco eixos básicos: troca e também venda
direta, formação, produção coletiva e consumo coletivo.
Em 2015, a Venezuela foi
considerada uma ameaça “não usual” pelo presidente estadunidense Barack Obama e
sofreu os efeitos das primeiras sanções emitidas pelos Estados Unidos no
final do ano anterior. Naquele ano começava o desabastecimento e a
especulação nos mercados convencionais.
Como uma resposta, integrantes
dos coletivos Tiuna
El Fuerte e Ateneo Cultural criaram um espaço comum para construir
relações pessoais e económicas alternativas ao sistema capitalista.
“Aqui não é um lugar apenas para
consumir, mas para desenvolver uma forma alternativa de nos relacionarmos.
Seguimos com esse sonho de criar uma humanidade mais humana”, afirma a bióloga
Jaheli Fuenmayor, uma das fundadoras das Alpargatas Solidárias.
O nome é uma referência ao ditado
popular venezuelano “Pónganse las alpargatas que lo que viene es joropo”,
que significa “Coloquem suas alpargatas (calçados de uso comum no campo) porque
a crise vem forte”.
O movimento reúne hoje 181
famílias, divididas em 12 núcleos, ou melhor, “nós”, que se encontram
mensalmente para organizar a compra e a venda de alimentos básicos. Nos últimos
sábados de todos os meses, é realizado um consumo coletivo, que se trata da
distribuição de sacos com cerca de 20kg de legumes, frutas e hortaliças, a uma média
de 40 mil bolívares (cerca de R$ 28). Esse valor é suficiente para comprar os
alimentos e pagar o frete do caminhão.
Isso é possível porque os
alimentos são produzidos por uma cooperativa que há 50 anos aglutina 1300
pequenos e médios produtores dos estados de Lara, Yaracuy, Portugues e
Trujillo, no altiplano venezuelano. O cultivo cooperativo faz com que a venda,
organizada em assembleias e de forma democrática, tenha preços muito mais
baratos que no mercado comum.
Um quilo de cebola comprado na
sede da CECOSESOLA,
em Barquisimeto, capital larense, custa 3 mil bolívares (cerca de R$
2,15), metade do valor cobrado nas feiras em geral. O mesmo acontece com o
tomate, que passa de 4 mil bolívares (R$ 2,80) para 1 mil bolívares (R$
0,70). Ou o quilo da banana que chega a custar 4 mil
bolívares em qualquer supermercado, mas na cooperativa sai por 700 bolívares
(R$ 0,50).
Todos os meses, os núcleos se
revezam nas funções básicas organizativas, que são definidas nas assembleias
operativas. Nesse mês de maio, Meresvice Morán foi a responsável
por comprar os alimentos, junto com três outras pessoas do seu “nó”,
chamado Ubuntu. Depois de passar a madrugada viajando 365 quilómetros com
mais de três toneladas de alimentos, a socióloga não esconde o sorriso de
satisfação. “É trabalhoso, mas é um compromisso, você deve ir e buscar o que há
de melhor, porque o que você escolhe é o que todo mundo vai consumir”.
Graças às escolhas de Meresvice,
cada família voltou para casa, no último sábado (25), com um saco de
18 quilos contendo abóbora, abobrinha, abacate, batata, beterraba, cebola,
cenoura, tomate, banana e abacaxi.
Como formigas carregadeiras, todos
os alpargateiros trabalham em alguma função. Alguns separam as cebolas, cortam
pedaços de abóbora que serão divididos em cada um dos 181 sacos, enquanto outro
“nó” se encarrega da merenda coletiva. Há também quem exponha artigos de
produção própria, como sabonetes, chás, temperos, tortas, que podem ser
vendidos ou trocados; e ainda há uma comissão de recreação das crianças, que
são muitas e, nesse sábado, além de brincar e ganhar pinturas faciais,
receberam formação lúdica sobre educação sexual com integrantes do coletivo
feminista Faldas R.
Consumo e organização política
Além de ser um sistema coletivo
de compra, venda, troca, doação, empréstimo e compartilhamento, as Alpargatas
Solidárias buscam organizar as famílias em torno de um horizonte revolucionário.
“Estamos num contexto de
reconfiguração, de crise económica, de ameaças, de uma reformulação do modo de
fazer política que praticamos há muitos anos na revolução bolivariana. Esse
espaço tem como objetivo unir esforços e ver que, em comunidade e de forma
coletiva, podemos satisfazer necessidades, discutir política e encontrar
soluções também em conjunto. A via para transformar essa sociedade
capitalista, mercantil, que vivemos e construir outra sociedade é essa”, conta
Maria Eugenia Freitez, comunicadora e uma das fundadoras da organização.
Realmente não se trata apenas de
distribuição de alimentos. Em meio a abraços, sorrisos e olhares acolhedores,
andar pelo centro cultural Tiuna El Fuerte, onde se realiza o consumo mensal,
termina sendo um exercício revigorante. Por considerar que as relações que se
estabelecem entre cada membro são centrais, a organização atende um número
limitado de famílias.
“Há duas coisas transversais
nessa iniciativa que são a comunicação e o afeto. Então, à medida que novas pessoas
se somam às Alpargatas, sempre vamos discutindo como manter o intercâmbio, a
proximidade, esse cuidado um com o outro para não deixar que tudo se resuma a
resolução de uma necessidade”, explica Jaheli Fuenmayor.
A solidariedade presente no nome
do movimento também é evidente no diálogo com os alpargateiros. Se um
companheiro não dispõe de 40 mil bolívares, os sacos podem ser divididos, ou
também estão aqueles que dividem o seu consumo mensal com a vizinhança.
“Quando temos um objetivo comum,
uma necessidade comum, que nos mobiliza, que nos toca, é uma motivação enorme
para seguir trabalhando. O fato de poder ver outros companheiros, saber que
estão bem, porque a crise também gera um ambiente hostil, ver que alguns estão
em situação mais sensível economicamente e que podemos ajudar, eu penso que
vale a pena continuar realizando essa batalha até podermos vencer”, finaliza a
alpargateira e comunicadora audiovisual Patrícia Franco.
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