Miguel Graça Moura
| Diário de Notícias | opinião
Já o escrevi outras vezes, mas dá
jeito repeti-lo porque se trata de um silogismo simples: 1) a democracia
pressupõe liberdade; 2) a liberdade pressupõe conhecimento e cultura; logo, 3)
a democracia pressupõe conhecimento e cultura. Não é elitismo: é assim mesmo, e
não há volta a dar.
A chave está na alínea 2) do
silogismo: de facto, só com conhecimento e cultura é que posso fazer escolhas
livres e informadas, porque possuirei instrumentos de análise e de crítica que
me permitam separar o trigo do joio, e saber se, ou até que ponto, estou a ser
enganado/ influenciado/ condicionado nas minhas escolhas - o que em política é
determinante.
Ora, é aqui que "a porca
torce o rabo". O que vou dizer a seguir incomodará muita gente, mas
corresponde exactamente ao que penso sobre o assunto e ao que penso que a
realidade mostra cada vez mais, todos os dias. E o que nos mostra ela? Que a
ignorância generalizada cresce e se espalha a um ritmo assustador - e em
particular no domínio mais essencial à democracia: a comunicação.
A maioria dos jovens já não lê
livros, e muito poucos lêem jornais (e quando o fazem é no telemóvel, em cujo
ecrã pouco mais cabem do que os títulos: o texto fica muito pequenino e é uma
chatice estar a aumentá-lo e corrê-lo com os dedos para poder ler um texto
completo); e "informam-se" nas redes sociais - o mais poderoso
veículo de propagação de falsidades e distorções da realidade que alguma vez
conhecemos desde a invenção da escrita.
Não é por acaso que os políticos
cada vez se dedicam mais afincadamente à comunicação através das redes sociais,
contratando especialistas, quando não abertamente hackers e peritos na dark
web, capazes das mais incríveis manipulações da realidade. Se já ouviu falar de
deep fake (vídeos falsos elaborados com recurso à inteligência artificial, tão
perfeitos que parecem absolutamente reais e verdadeiros - eu "vi" um
com o Barak Obama a dizer as maiores barbaridades, feito com tão espantosa
manipulação da cara, boca e expressões faciais dele que torna absolutamente
credíveis aquelas imagens e aquelas palavras), percebe até onde a loucura pode
chegar.
Agora é só imaginar grandes
poderes (Estados Unidos, China, Rúsia) a investirem a fundo nestas formas de
"comunicação" para terem uma ideia do grau que tudo isto pode atingir
- amplificado pela cada vez mais completa informação já existente sobre
praticamente tudo o que nos diz respeito, obtida precisamente através dos
smartphones de uso intensivo e constante. Informação que permite a quem a
controla a concepção de formas de "informação" (falsa) destinada
precisamente a cada um de nós da forma mais eficaz possível, pois corresponde
ao nosso "perfil" exaustivamente traçado e estudado.
Pense ainda no sistema de
"pontuação social" já existente na China (sobre o qual escrevi há
pouco tempo, mas que não parece incomodar por aí além), através do qual o
governo chinês (ou, se preferir, o Partido Comunista Chinês, que é o único
partido permitido naquele país) avalia o comportamento de cada chinês - e até
as suas ideias -, dentro e fora do seu país, precisamente através do seu
smartphone, e lhe atribui uma pontuação que lhe pode dar/retirar passaporte,
acesso a trabalho no Estado, etc., etc., etc., ou penalizá-lo: no limite,
metê-lo na cadeia (por exemplo, se ousar criticar o governo...).
Como se pode perceber tudo isto,
para depois reagir e se necessário lutar em defesa da democracia? Com o
conhecimento e a cultura. Mas, como escreveu o nosso Vergílio Ferreira, «como é
que um tipo que é medíocre há-de saber que é medíocre, se é medíocre?»
Pois. O problema é precisamente esse: os milhões que elegeram Trumps, Bolsonaros, Orbáns, Salvinis e os mais que hão-de vir (e estou só a apontar os que são mais grotescos, e até pareciam fáceis de identificar; mas a lista dos populistas tendencialmente autocráticos, prontinhos para darem a varredela final na democracia, é enorme, e muitos são suficientemente espertos para não se comportarem logo como palhaços), esses milhões não dispõem de ferramentas - lá está: conhecimento e cultura - que lhes permitam perceber como foram enganados/influenciados/condicionados nas suas escolhas. (Mas já o filósofo espanhol Jorge Santayana (1863-1952) alertara para que «a publicidade é o moderno substituto do argumento; a sua função é fazer o pior parecer o melhor».)
Portanto, afinal é muito fácil
matar a democracia: basta deixar a ignorância espalhar-se e, pelo controlo das
redes sociais, levar os eleitores a votarem naqueles que a irão extinguir (já
aconteceu nos anos 1930 com Hitler; e todas as aberrações acima referidas
chegaram ao poder pelo voto).
Haveria maneira de combater isto?
Sim. Com uma revolução radical na educação pública, na televisão pública (por
exemplo: canais temáticos sobre os mais variados temas culturais e de
informação, todos rigorosamente sem nenhuma espécie de publicidade, o que certamente
lhes granjearia alguma simpatia e adesão, e um deles dedicado diariamente a
desmontar as mentiras dos outros, públicos e privados), talvez até uma rede
social pública só dedicada à psicanálise das redes sociais.
O problema é que só teríamos
resultados daqui a uma geração. E infelizmente já não dispomos do tempo de uma
geração para evitar a morte da democracia.
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