segunda-feira, 12 de agosto de 2019

Porque já é imparável a morte da Democracia


Miguel Graça Moura | Diário de Notícias | opinião

Já o escrevi outras vezes, mas dá jeito repeti-lo porque se trata de um silogismo simples: 1) a democracia pressupõe liberdade; 2) a liberdade pressupõe conhecimento e cultura; logo, 3) a democracia pressupõe conhecimento e cultura. Não é elitismo: é assim mesmo, e não há volta a dar.

A chave está na alínea 2) do silogismo: de facto, só com conhecimento e cultura é que posso fazer escolhas livres e informadas, porque possuirei instrumentos de análise e de crítica que me permitam separar o trigo do joio, e saber se, ou até que ponto, estou a ser enganado/ influenciado/ condicionado nas minhas escolhas - o que em política é determinante.

Ora, é aqui que "a porca torce o rabo". O que vou dizer a seguir incomodará muita gente, mas corresponde exactamente ao que penso sobre o assunto e ao que penso que a realidade mostra cada vez mais, todos os dias. E o que nos mostra ela? Que a ignorância generalizada cresce e se espalha a um ritmo assustador - e em particular no domínio mais essencial à democracia: a comunicação.

A maioria dos jovens já não lê livros, e muito poucos lêem jornais (e quando o fazem é no telemóvel, em cujo ecrã pouco mais cabem do que os títulos: o texto fica muito pequenino e é uma chatice estar a aumentá-lo e corrê-lo com os dedos para poder ler um texto completo); e "informam-se" nas redes sociais - o mais poderoso veículo de propagação de falsidades e distorções da realidade que alguma vez conhecemos desde a invenção da escrita.


Não é por acaso que os políticos cada vez se dedicam mais afincadamente à comunicação através das redes sociais, contratando especialistas, quando não abertamente hackers e peritos na dark web, capazes das mais incríveis manipulações da realidade. Se já ouviu falar de deep fake (vídeos falsos elaborados com recurso à inteligência artificial, tão perfeitos que parecem absolutamente reais e verdadeiros - eu "vi" um com o Barak Obama a dizer as maiores barbaridades, feito com tão espantosa manipulação da cara, boca e expressões faciais dele que torna absolutamente credíveis aquelas imagens e aquelas palavras), percebe até onde a loucura pode chegar.

Agora é só imaginar grandes poderes (Estados Unidos, China, Rúsia) a investirem a fundo nestas formas de "comunicação" para terem uma ideia do grau que tudo isto pode atingir - amplificado pela cada vez mais completa informação já existente sobre praticamente tudo o que nos diz respeito, obtida precisamente através dos smartphones de uso intensivo e constante. Informação que permite a quem a controla a concepção de formas de "informação" (falsa) destinada precisamente a cada um de nós da forma mais eficaz possível, pois corresponde ao nosso "perfil" exaustivamente traçado e estudado.

Pense ainda no sistema de "pontuação social" já existente na China (sobre o qual escrevi há pouco tempo, mas que não parece incomodar por aí além), através do qual o governo chinês (ou, se preferir, o Partido Comunista Chinês, que é o único partido permitido naquele país) avalia o comportamento de cada chinês - e até as suas ideias -, dentro e fora do seu país, precisamente através do seu smartphone, e lhe atribui uma pontuação que lhe pode dar/retirar passaporte, acesso a trabalho no Estado, etc., etc., etc., ou penalizá-lo: no limite, metê-lo na cadeia (por exemplo, se ousar criticar o governo...).

Como se pode perceber tudo isto, para depois reagir e se necessário lutar em defesa da democracia? Com o conhecimento e a cultura. Mas, como escreveu o nosso Vergílio Ferreira, «como é que um tipo que é medíocre há-de saber que é medíocre, se é medíocre?»

Pois. O problema é precisamente esse: os milhões que elegeram Trumps, Bolsonaros, Orbáns, Salvinis e os mais que hão-de vir (e estou só a apontar os que são mais grotescos, e até pareciam fáceis de identificar; mas a lista dos populistas tendencialmente autocráticos, prontinhos para darem a varredela final na democracia, é enorme, e muitos são suficientemente espertos para não se comportarem logo como palhaços), esses milhões não dispõem de ferramentas - lá está: conhecimento e cultura - que lhes permitam perceber como foram enganados/influenciados/condicionados nas suas escolhas. (Mas já o filósofo espanhol Jorge Santayana (1863-1952) alertara para que «a publicidade é o moderno substituto do argumento; a sua função é fazer o pior parecer o melhor».)

Portanto, afinal é muito fácil matar a democracia: basta deixar a ignorância espalhar-se e, pelo controlo das redes sociais, levar os eleitores a votarem naqueles que a irão extinguir (já aconteceu nos anos 1930 com Hitler; e todas as aberrações acima referidas chegaram ao poder pelo voto).

Haveria maneira de combater isto? Sim. Com uma revolução radical na educação pública, na televisão pública (por exemplo: canais temáticos sobre os mais variados temas culturais e de informação, todos rigorosamente sem nenhuma espécie de publicidade, o que certamente lhes granjearia alguma simpatia e adesão, e um deles dedicado diariamente a desmontar as mentiras dos outros, públicos e privados), talvez até uma rede social pública só dedicada à psicanálise das redes sociais.

O problema é que só teríamos resultados daqui a uma geração. E infelizmente já não dispomos do tempo de uma geração para evitar a morte da democracia.

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