José Soeiro | Expresso | opinião
1. Uma das distorções das nossas
representações sobre o que nos rodeia assenta na invisibilidade de grande parte
do trabalho humano, seja na esfera da produção mercantil, seja na esfera
doméstica. Quando vemos as ruas limpas – ou as escolas limpas, os hospitais o
comboio ou a agência bancária – quantas vezes pensamos nos lixeiros e nos
varredores que as limparam durante a noite, quantas vezes vemos, quando
entramos nesses lugares, o trabalho já feito das mulheres que, para os limpar,
ganham uma miséria? Quando pisamos um passeio, conseguimos ver debaixo dos
nossos pés o trabalho de quem cortou a pedra e o de quem a colocou ali? Quando
escolhemos os alimentos na prateleira do supermercado, conseguimos ver o
trabalho, tão desconsiderado, de quem os produziu e transportou? Os exemplos
são incontáveis. Há demasiados trabalhos em que só reparamos quando estão por
fazer, cujo valor só consideramos quando nos confrontamos com as consequências
de não terem sido feitos.
O primeiro mérito de uma greve –
e desta greve dos motoristas de matérias perigosas também – é este. Obrigar-nos
a apercebermo-nos da importância de um trabalho de que ninguém falava, mas que
é afinal tão essencial para que a sociedade funcione. Sem greve, quem teria
essa consciência, além dos próprios? Ao longo dos anos, sem greves, alguém
falou da centralidade deste trabalho e das condições penosas em que é feito?
2. O objetivo de uma greve é sempre perturbar o normal funcionamento do quotidiano da produção e da circulação mercantil. Mostrar que, se os trabalhadores pararem, o mundo pára. Não há verdadeiro exercício do direito à greve se ela não se fizer sentir, em primeiro lugar, nos bolsos dos patrões que precisam do trabalho para o seu negócio e para obterem os seus lucros; e também, secundariamente, no funcionamento da sociedade, que toma com a greve a consciência da falta que aquele trabalho faz. Isto nunca quis dizer, evidentemente, que o exercício do direito à greve seja absoluto. Toda a gente concorda que, mesmo havendo uma greve, as ambulâncias têm de continuar a ser abastecidas e a comida tem de continuar a chegar aos supermercados, por exemplo. Por isso, toda a gente concorda e a lei prevê que, em cada greve, se deve definir serviços mínimos capazes de garantir que a greve se compatibiliza com outros princípios fundamentais da nossa vida coletiva. Nisso, não há polémica: os serviços mínimos existem desde que a Constituição consagrou o próprio direito à greve. Se não há acordo entre patrões e trabalhadores na sua previsão, intervém o Estado, cabendo ao Governo defini-los. Mas também é óbvio que se a definição de serviços mínimos é de tal modo maximalista que torna potencialmente nulos os efeitos de uma greve, isso é uma forma objetiva de esvaziar esse direito. Fez bem o Governo em fixar serviços mínimos nesta greve dos motoristas – e é compreensível que, em alguns casos especiais, eles sejam muito exigentes (exemplo óbvio: para emergências na saúde ou no combate aos fogos...). Mas fez muito mal em abusar dessa prorrogativa para fixar verdadeiros “serviços máximos” em áreas que não são, objetivamente, “necessidades sociais impreteríveis”, que é o termo da lei (desde quando é que, por um exemplo, um vôo comercial Porto-Lisboa pode alguma vez caber no conceito de “necessidade social impreterível”?). Têm inteira razão os sindicatos e os partidos de esquerda que acusaram o Governo de ter aproveitado – com o aplauso e o entusiasmo dos patrões e da Direita – a má condução desta greve para fazer um ataque não apenas aos motoristas, mas ao próprio direito à greve e a todas as futuras lutas em que o problema se coloque. Se se aceita o princípio de que pode haver “serviços mínimos” para todas as situações com percentagens de 75% a 100%, o que restará no futuro do impacto de uma greve, por exemplo, dos estivadores, dos motoristas dos transportes públicos ou das trabalhadoras da limpeza? Há linhas que não devem e não podem ser transpostas. E o Governo quis transpô-las.
3. As greves fazem-se para conquistar melhores condições de trabalho, ou para que um determinado trabalho seja reconhecido. Na disputa de uma greve conta a capacidade de dar corpo a dois princípios fundamentais do movimento sindical: a unidade e a solidariedade. Também por isso, uma greve disputa a relação de forças na própria sociedade. Uma greve de um setor particular é tanto mais forte quanto consegue ganhar apoio em toda a classe (por exemplo, em todos os motoristas e não apenas num subsector) e na maioria da sociedade, que é composta por quem vive do seu trabalho (e que é por isso potencialmente sensível à injustiça da situação e à justiça da reivindicação). Uma greve que se deixa deliberadamente isolar é uma greve condenada a perder, a menos que quem a conduz queira ganhar outra coisa que não direitos para quem trabalha. Já uma greve que tem a solidariedade dos outros trabalhadores tem uma força imparável na sociedade. Para vencer, uma greve – que é um sacrifício do presente e do salário, em nome do salário e do futuro – tem de olhar para além do seu umbigo, tem de dialogar com a sociedade e procurar apoios e solidariedade. Não faltam exemplos recentes de greves que o fizeram com enorme sensibilidade e sucesso. Querem um? Os estivadores.
Há por isso reivindicações
inquestionavelmente justas que têm sido prejudicadas pela forma como todo o
processo foi conduzido. O Governo geriu esta greve a pensar na demonstração
exuberante da autoridade do Estado e na maioria absoluta que pode resultar da
sedução do eleitorado conservador. E o porta-voz sindical geriu-a a pensar
essencialmente na publicidade oportunista ao seu escritório de advogados e na
sua eleição para o Parlamento. As vítimas foram os motoristas.
5. Voltar às negociações e conseguir um acordo capaz de satisfazer os trabalhadores é o único caminho razoável e ainda bem que ele parece ter-se agora imposto. Mas greve e negociação não são antíteses, como sugere o Governo e gritam os patrões. São elementos do mesmo processo. Em relações de força desiguais, como aquela em que decorre qualquer negociação de um contrato coletivo de trabalho, a arma da greve não é um objeto externo às negociações. É um dos instrumentos mais importantes para equilibrar essas negociações para o lado dos trabalhadores. Uma greve ilimitada e que não abre caminhos negociais é uma greve que já fracassou, porque o único caminho que propõe aos trabalhadores é a derrota. Mas uma negociação que não faça valer a disponibilidade de luta dos trabalhadores também está condenada a ter um fraco resultado, porque é sempre a vontade dos patrões que vinga.
5. Voltar às negociações e conseguir um acordo capaz de satisfazer os trabalhadores é o único caminho razoável e ainda bem que ele parece ter-se agora imposto. Mas greve e negociação não são antíteses, como sugere o Governo e gritam os patrões. São elementos do mesmo processo. Em relações de força desiguais, como aquela em que decorre qualquer negociação de um contrato coletivo de trabalho, a arma da greve não é um objeto externo às negociações. É um dos instrumentos mais importantes para equilibrar essas negociações para o lado dos trabalhadores. Uma greve ilimitada e que não abre caminhos negociais é uma greve que já fracassou, porque o único caminho que propõe aos trabalhadores é a derrota. Mas uma negociação que não faça valer a disponibilidade de luta dos trabalhadores também está condenada a ter um fraco resultado, porque é sempre a vontade dos patrões que vinga.
Compreendem-se pois os apelos a
que se retomem as negociações. Já não é aceitável que eles só valham para uma
das partes, e que poupem precisamente as associações patronais que dizem que,
enquanto uma luta decorre, não negoceiam. Quando o Governo canaliza a sua
pressão apenas para uma das partes, torna-se não um mediador em busca de
equilíbrio, mas um mero eco das posições patronais.
O que quero dizer é isto: haver
um memorando para um acordo entre alguns sindicatos e a parte patronal é um bom
sinal, que deve ser aproveitado de imediato por todos os sindicatos. Ao mesmo
tempo, que ninguém esqueça ou omita que este acordo agora anunciado não
existiria sem que tivesse havido uma greve com a força que ela teve entre os
motoristas de matérias perigosas. Ou seja, este acordo é, por mais que isto
possa parecer paradoxal, produto desta greve. O que é matéria de reflexão para
todos, para o conjunto do movimento sindical e é um fator que justifica, desde
logo, que os ganhos que ele possa conter se alarguem a todos os trabalhadores.
1 comentário:
Não quero contudo deixar de estar de acordo com o essencial do artigo, mas se me permite, gostaria de deixar aqui um alerta dado pelo Psiquiatra Júlio Machado Vaz,"O Amor é", no seu programa na Atena 1, de hoje 18 de Agosto 2019 , pelas 10 com a jornalista Inês Menezes... Só para verem o que se esta a passar em Portugal, nestes últimos anos, quando temos um governo de "esquerda", apoiado pelas suas muletas de "esquerda", e tutelado por Marcelo
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