Na sociedade dele, fraqueza é
morte. Virtude é ganância, frieza e vaidade. Ninguém sente nada. Afastam com
medicação a dor de viver sem dinheiro, dignidade, tempo ou sentido. Temem a
menina que se tornou adulta antes do tempo
Umair Haque | Outras Palavras | Tradução: Inês
Castilho
Houve na ONU um momento histórico,
capturado por fotografias, que me tocou e provavelmente tocou você, por ser
memorável e especial.
O fascista pavão que encabeça o
império capitalista mundial em desagregação – arrogante no brilho das câmeras.
E atrás dele a colegial humilde e desafiadora, tentando salvar o mundo. Que
momento! Mas o que há de tão impressionante nisso? Por que toca tanto as
pessoas sensatas e conscientes?
Como todos os momentos
históricos, um paradoxo – ou vários deles – revelou-se claramente. Um conflito
épico entre o passado e o futuro. O presente e a possibilidade. Entre o velho
mundo, que morre – e o novo lutando para nascer.
O primeiro paradoxo é entre poder e falta de poder – mas não de modo simplista. De um lado, a estudante mais adulta que o normal. Repreendendo os governantes do mundo reunidos. Sem se deter em nenhum momento. Vocês fracassaram conosco, diz ela. Vocês roubaram minha infância e agora estão roubando meu futuro. Por dinheiro. Vocês não ligam? Para nós? Para o planeta? Os governantes aplaudem, desconfortáveis. Foram pegos, chamados, flagrados, questionados, desafiados – por uma garota. Como chegaram aqui os sem-poder, por um momento que seja? Como uma estudantezinha … está desafiando a força congregada dos poderosos do planeta Terra?
O primeiro paradoxo é entre poder e falta de poder – mas não de modo simplista. De um lado, a estudante mais adulta que o normal. Repreendendo os governantes do mundo reunidos. Sem se deter em nenhum momento. Vocês fracassaram conosco, diz ela. Vocês roubaram minha infância e agora estão roubando meu futuro. Por dinheiro. Vocês não ligam? Para nós? Para o planeta? Os governantes aplaudem, desconfortáveis. Foram pegos, chamados, flagrados, questionados, desafiados – por uma garota. Como chegaram aqui os sem-poder, por um momento que seja? Como uma estudantezinha … está desafiando a força congregada dos poderosos do planeta Terra?
O mundo parece estar virando de
cabeça pra baixo diante de nossos olhos. A criança que se tornou adulta antes
do tempo está repreendendo os adultos mais poderosos do mundo por estar agindo…
como crianças mimadas! È algo bizarro, surreal, inebriante. Vemos revelado, em
termos absolutos, o quão terrivelmente os governantes falharam. Uma
estudantezinha está chamando-os ao dever – literalmente. Pode haver acusação
maior do que essa? Quando uma menina expõe quão viciadas são suas prioridades,
moralidade, ética, atitudes … quem é a criança de fato ? A pequena estudante
está desafiando o poder formal, institucional com o poder moral, o social e
cultural. Ela vencerá?
Isso me traz ao segundo paradoxo
– entre o que você pode denominar ego e alma. Greta, como todas as grandes
figuras da história, maneja a vergonha. Pense em Martin Luther King, Gandhi,
Mandela, Malala. Todas elas são titãs do poder moral. O que dá a este sua força
demolidora? Ao nos converter em testemunhas, apela para o que há de melhor em nós.
Nossa alma moral, nossa consciência. Isso nos envergonha, provoca em nós a
culpa por pequenas cumplicidades e cegueiras voluntárias. Fustiga com um
chicote de tristeza e arrependimento. Devemos ser melhores que isso, ela nos
lembra. Então talvez desafiemos as ordens dos homens insensatos e violentos que
transformaram a humanidade em servos e escravos por milênios. Talvez então haja
revolução.
Há um homem impermeável à
mensagem de Greta. O líder – não ria – do “mundo livre”. Ele atravessa o palco,
presunçoso como uma … criança mimada. Só dá ele, você vê. Ora, é ele quem
merece o Prêmio Nobel da Paz. Por construir campos de concentração, prender
crianças em gaiolas, separar famílias e deixar crianças pequenas morrer de fome
– aquilo que o último promotor vivo de Nuremberg chamou de crimes contra a
humanidade.
A mensagem de Greta não o atinge
– ou aos seus seguidores, que começaram a atacá-la por ser diferente, por ser
jovem, por ser desafiadora, por não obedecer. Ele a xinga. O que isso nos diz?
O poder moral da mensagem de Greta vem de uma terrível vergonha. Mas esse homem
– o fascista que lidera o “mundo livre” – não tem vergonha. Muito naturalmente,
tudo que ele sente é ódio e fúria. Por que?
Porque ele é um narcisista
infantil. Ele literalmente vive no mundo emocional e das experiências de uma
criança pequena. Está para sempre buscando poder total, onipotência, provar a
si mesmo que tem valor, tendo sido desamado por pais distantes. Ele vai
fracassar – porque nesta vida ninguém pode ter poder absoluto. Ele já é motivo
de ridículo no mundo. Não importa – ele duplica a dose. Impõe mais violência,
faz mais xingamentos. O mundo ri um pouco mais. O ciclo vicioso continua. O que
mais um narcisista infantil pode fazer? Ele não tem vergonha – só o desejo
desesperado de ser poderoso, mesmo que isso signifique … transformar o mundo
inteiro em cinzas, desde que ele possa ficar no topo disso.
É possível perceber como a
pequena estudante representa um nível radicalmente mais alto de consciência do
que a maioria dos governantes do mundo… mas especialmente do líder fascista do
“mundo livre”?
Isso me leva ao próximo paradoxo.
O líder do “mundo livre” é um fascista, com arsenais de máquinas que assassinam
por controle remoto. Sua mentalidade atrofiada e reduzida – a razão de sua
existência é conquistar mais poder e riqueza por meio da violência – está sendo
desafiada por uma menininha de uma social-democracia suave, com vergonha, culpa
e humanidade. Como?
Por que todos os que atacam
Greta, ou ao menos a maioria deles, vêm do país deste homem – o império
capitalista que implodiu em fascismo? Não é natural que aqueles que não têm
vergonha venham do império capitalista da violência e da voracidade? Naquela
sociedade, vulnerabilidade é fraqueza, e fraqueza é morte. Virtude é, portanto,
ganância, desumanidade, crueldade, frieza, egoísmo, vaidade. O que é valorizado
acima de tudo é a capacidade de impor violência – não apenas física mas social,
emocional, cultural. Você pode destruir uma cidade sem sentir nada? Você pode
vender a um país inteiro pílulas ou armas que matam? Impressionante! Aqui está
um bilhão de dólares! A vergonha não é permitida no império de violência do
capitalismo. Como poderia?
Os sentimentos simplesmente não
são permitidos. Ninguém mais sente nada. Eles aprenderam a expulsar com
medicação a dor terrível de ser explorado sem piedade por seus senhores
capitalistas, que os deixam sem dinheiro, dignidade, tempo, sentido. E os donos
de escravos, por sua vez, estão muito ocupados transformando-os em commodities para
vender e comprar, de modo que possam comprar coisas brilhantes para gabar-se e
exibir-se. No império em ruínas do capitalismo, ninguém mais está autorizado a
sentir, razão por que este império é conhecido mundialmente por sua
frivolidade, superficialidade, falta de sentido. As pessoas foram desumanizadas
– mas não sabem disso, porque ninguém vai lhes contar. O que pessoas
desumanizadas podem fazer para salvar um planeta moribundo? Elas não conseguem
sequer se salvar.
Mas o país de onde vem a
estudante é o oposto. As pessoas não parecem presas numa disputa por uma fatia
cada vez menor de poder, como no Império capitalista em colapso. Por que? As
pessoas são cuidadas. Não perfeitamente – alguma sociedade será perfeita algum
dia? Simplesmente de um modo mais humano. Seguro-saúde, aposentadoria, renda,
transporte, educação – essas coisas são direitos humanos básicos. As pessoas
são portanto mais livres – porque, em vez de competir pelo poder, elas se
fortalecem umas às outras. Para quê? Para viver mais plenamente. Para serem
felizes, questionarem, conhecerem, entenderem, desafiarem, resistirem,
pensarem, raciocinarem, serem humanos e decentes e saudáveis. E assim,
finalmente – isso é crucial – sentirem. Isso é o que lhes foi ensinado.
Quando sua vida não é uma competição
sem fim, desumanizadora, brutalizadora, pela sobrevivência – perdeu aquele
emprego, lá se vai seu seguro saúde, bang, uma pequena emergência e todo mundo
está à beira da ruína – então sua vida também não é um contínuo sentimento de
pavor, ansiedade e desespero. Você não tem que medicar esses sentimentos para
espantá-los – do modo como as pessoas fazem no império capitalista, seja com
comprimidos, dinheiro ou posses. Você está livre para sentar-se e refletir,
para sentir profundamente o pesar, a alegria, a dor e a beleza de simplesmente
estar aqui. Existir por meio apenas alguns atos de respirar, neste oásis azul
girando através da escuridão infinita.
Mas o capitalismo matou a
habilidade de sentir. De conectar-se de verdade com a própria vida. A pequena
estudante sente, e sente profundamente, a ponto de sofrer pela morte do planeta
e da vida nele. Não é coincidência que ela venha de um tipo de sociedade
diferente. Ela certamente não poderia ter vindo do império capitalista. Quem
pode sofrer pelo fim do mundo na terra do sorriso de plástico? E esse sorriso
de escárnio não é o que está estampado na cara do fascista?
Isso me leva ao próximo paradoxo.
Uma pequena estudante – ensinando a todos nós como sofrer pelo fim do mundo.
Enquanto o líder fascista do mundo livre apoia e aprende e nos ensina apenas o
que é ser o tipo de tolo violento que acaba com os mundos.
Vamos colocar desta forma. O que
a pequena estudante está de fato nos ensinando? O valor da raiva? Isso é o que
pensam as pessoas – os bem-intencionados – no império capitalista. Elas agora
só podem ver violência, por isso pensam que a lição é a raiva. Mas não é. A
lição é esta. Para enfrentar o fim do mundo, e lutar contra ele, precisamos
sentir, realmente sentir, dentro dos nossos ossos. Se não podemos sentir – que
razão haverá para agir?
Pense no fascista que atravessa o
palco, que zomba da pequena estudante. Por que ele não liga para o fim do
mundo? Por que seus seguidores não ligam? Bem, porque eles não podem sentir
nada, de fato. É por isso que estão tentando vencer, por meio de todo tipo de
abuso, toda a violência, todo o dinheiro e poder e sexo que exigem. Eles querem
sentir algo, qualquer coisa, menos o vazio. Estão muito ocupados esperando
tirar vantagem do fim do mundo, da vida que morre no planeta Terra. O que isso
nos diz? Emocionalmente, eles estão numa disputa interminável pela
sobrevivência. Qualquer coisa menos que onipotência, estar acima de todos os
outros, dominá-los – carece de valor. Do que mais o líder fascista do mundo
livre estaria atrás … de ainda mais dinheiro e poder? Pelo que mais seus
seguidores insultariam e zombariam da estudante?
Não sobraram sentimentos
verdadeiros. Somente a sensação de raiva por ter direito, mas ter negados o
poder e a fortuna merecidos. O velho sentimento de amargura – esses escravos me
pertencem! Esses subumanos deveriam estar em campos de concentração! Não há
sentimentos genuínos – apenas o desejo ardente de provocar violência. Os
sentimentos morrem todo dia um pouco no império em ruínas do capitalismo.
Mas aqueles que não podem sentir
nada não podem também enfrentar o fim do mundo – muito menos lutar contra ele.
Pense na pequena estudante. Ela é divergente. Ela não tem a cabeça normal.
Dizem que pessoas como ela não deveriam ser capazes de sentir muita coisa –
este é o mito. Mas é ela a incandescente. Aquela que repreende os governantes
do mundo com uma espécie de fúria abrasadora. Ela é quem chora lágrimas. É dela
que a tristeza explode como um inverno sem fim.
A pequena estudante está nos
ensinando como chorar pelo fim do mundo. Dessa maneira, ela também nos ensina a
lutar pelo futuro. Mas o fascista que lidera o “mundo livre” só está nos
ensinando como zombar e desdenhar da morte. Da democracia, do planeta, da vida
que há nele, da história, da decência.
A pequena estudante está nos
ensinando que a capacidade de desafiar vem não apenas da irritação ou da fúria
– ou mesmo da “esperança” e “otimismo” perfeitamente empacotados pelo império
capitalista – mas de um sentimento de tristeza profundo e devastador, de um
sentimento de desespero existencial de parar o coração. Da náusea de Sartre, do
desespero de Camus, do terror de Kierkegaard. Sem essas emoções vivificantes
irradiando de nossos centros morais como grandes ondas de transformação – não
apenas a interminável fome de mais poder, mais dinheiro, mais posses – não há
absolutamente razão para fazer outra coisa senão submeter-se aos homens
violentos que sempre governaram o mundo. Mesmo que o mundo, desta vez, esteja
acabando.
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