Um estudo divulgado pelo Centro
Europeu de Relações Externas revela uma absoluta falta de sintonia entre a
prática das instituições de Bruxelas e Estrasburgo e a opinião dos cidadãos.
A esmagadora maioria dos cidadãos europeus
defende a neutralidade da União Europeia no caso de deflagrarem conflitos
armados entre os Estados Unidos e a Rússia ou a China. Esta não é a única
matéria em que existe dissonância absoluta entre as políticas de Bruxelas e a
vontade dos cidadãos, mas revela até que ponto as instâncias não-eleitas da
União Europeia estão distantes da opinião dos cidadãos e, por consequência, do
respeito pela democracia.
Um estudo publicado pelo Conselho
Europeu de Relações Externas, um think tank com escritórios em sete
capitais europeias vocacionado para o reforço do «europeísmo», não deixa
dúvidas quanto às desconfianças que a maioria dos cidadãos europeus têm em
relação não tanto à União mas, sobretudo, quanto às políticas que aplica em
termos de posicionamento internacional, segurança, opções militares e até
comércio.
Os dados provam claramente: as
pessoas desejam uma coisa, Bruxelas dá-lhes outra. Isto é verdade para as
relações externas, militares e de segurança, comerciais e até quanto ao
comportamento da União em relação à guerra contra a Síria e as ameaças ao Irão.
O estudo comprova que a tão falada empatia e fraternidade entre os europeus e
os Estados Unidos da América não passa de um mito inscrito forçadamente na
efabulação histórica com a colaboração dos dirigentes políticos e militares e
ampliado pelos megafones mediáticos. Nada pode estar mais longe da realidade –
testemunham as opiniões dos cidadãos.
O trabalho do Conselho de
Relações Externas, assinado por Susi Dennison, resulta de dados obtidos junto
de 60 mil eleitores de 14 países da União Europeia, entre eles os mais
populosos e influentes – uma amostra que tem um significado muito relevante.
Nem Washington nem Moscovo,
neutralidade
Os dados que mais traduzem a
clivagem entre o comportamento das instituições europeias e a opinião dos
cidadãos relacionam-se com o posicionamento internacional, especialmente em
hipóteses de conflitos de grande envergadura.
Quando convidados a sugerir a
atitude da União Europeia perante uma eventual guerra entre os Estados Unidos e
a Rússia ou entre os Estados Unidos e a China, a resposta é tão esmagadora que
não deixa margem para dúvidas: nem Washington nem Moscovo, uma estrita
neutralidade.
A opinião manifestada tem
graduações conforme os países e as suas posições geográficas e geoestratégicas,
mas caracteriza-se por uma indubitável particularidade: a neutralidade está
sempre acima dos 50% dos inquiridos, excepto no caso da Polónia, perante
hipótese de conflito entre Washington e Moscovo; nesta eventualidade são 45% os
polacos que defendem a neutralidade, ainda assim muito à frente dos que se
declaram pela parte norte-americana, 33%.
No caso de conflito entre Estados
Unidos e a Rússia a neutralidade varia entre os citados 45% da Polónia e os 85%
da Áustria, com destaque ainda para os 81% da Grécia, os 70% da Alemanha, os
63% da França, os 65% da Itália – valores idênticos aos registados na Holanda,
Espanha e Suécia.
Em 11 dos 14 países a maioria dos
cidadãos preferem os Estados Unidos à Rússia, mas sempre em percentagens
ínfimas perante a neutralidade. São relevantes os 33% da Polónia favoráveis a
Washington e os 28% da Dinamarca, mas os restantes são sempre abaixo dos 20%,
como a França e a Holanda (18%), sendo que na Alemanha não passam de 12%,
contra 7% que preferem o lado russo.
Há ainda três casos especiais que
são de ter em conta porque reforçam a preferência pelo distanciamento da
política oficial actual e a falsidade da pretensa fraternidade europeia com os
Estados Unidos da América. Gregos, eslovacos e austríacos pronunciaram-se
favoravelmente a Moscovo em relação a Washington. E se a diferença é apenas de
dois pontos percentuais na Grécia e na Áustria – onde apenas 4% apoiam os
Estados Unidos – torna-se abissal na Eslováquia: 6% contra 20% caindo para o
lado russo, sendo 65% a aposta na neutralidade. Lá terão as suas razões.
Os resultados são do mesmo tipo
em caso de conflito entre os Estados Unidos e a China, com reforço da posição
de neutralidade – todos os países acima dos 54% - resultante de um ainda menor
apoio à parte norte-americana.
Há também dois casos particulares
a registar, e também eles com características idênticas. Na Eslováquia, a
percentagem dos que apoiam Moscovo e Pequim é a mesma (8%), numa situação de
73% de neutralidade; na Áustria, porém, são mais (6%) os que apoiam Pequim do
que Washington (4%), sendo 83% os partidários da neutralidade.
A Áustria é, como se percebe pela
leitura conjugada dos dados, um país com escassas simpatias pelos Estados
Unidos embora com uma assinalável vocação europeia em termos de confiança,
optimismo e neutralidade. Viena afirma-se como um pilar da União Europeia, mas
certamente uma União muito diferente da que é formatada em Bruxelas.
Muita desconfiança
Um dos dados em que estas opções
austríacas são mais visíveis extraem-se do apuramento dos índices de confiança
na União Europeia, nos Estados Unidos ou em nenhum deles, segundo as opções
apresentadas pelos responsáveis do estudo. Apenas 3% dos austríacos confiam nos
Estados Unidos contra 60% identificando-se com uma ideia virtual de União
Europeia.
Neste painel da confiança são
quatro os países – dois deles pilares estruturais - onde a maioria dos
eleitores se recusam a escolher entre Washington e Bruxelas, preferindo a
alternativa «nenhum». Trata-se da Grécia (58%), da República Checa (54%), da França
e da Itália, respectivamente com 41% e 37%.
A União Europeia, através das
suas políticas, mina até as próprias estruturas.
Os eleitores europeus desconfiam
também da capacidade da União Europeia em poder garantir a sua própria
segurança, por estar dependente dos Estados Unidos (e da NATO), uma situação
que, no mínimo, a maioria dos inquiridos não pretende que seja alargada.
Se passarmos dos domínios da
segurança aos do comércio a desconfiança é a mesma, ou até mais profunda.
Apenas os cidadãos de um entre os
14 países, a Roménia, consideram que as negociações comerciais internacionais
estão mais bem entregues à União Europeia do que ao governo nacional. Em todos
os outros casos os eleitores preferem os governos dos seus países, com
percentagens que vão dos 26% da França e da Hungria aos 46% da República Checa.
Em relação à França, porém, a confiança na União não vai além dos 12%,
preferindo a hipótese mista governo/União (27%).
A Alemanha confia muito mais no
próprio governo (29%) do que na União Europeia (12%), apesar de a política de
Bruxelas não passar de um instrumento de germânico. Berlim prefere apostar pela
certa mesmo que a outra face da moeda exponha uma profunda ingratidão.
A própria Áustria, com o seu
«optimismo» europeísta, confia muito mais nas negociações comerciais conduzidas
pelo governo de Viena (41%) do que por Bruxelas (17%).
A União Europeia de um lado, os
cidadãos do outro
Contas feitas e provas aferidas,
o estudo divulgado pelo Centro Europeu de Relações Externas revela uma absoluta
falta de sintonia entre a prática das instituições não-eleitas de Bruxelas (e
mesmo a eleita de Estrasburgo) e a opinião dos cidadãos.
A uma União Europeia que age na
total dependência dos Estados Unidos em termos económicos, militares e de
segurança, esmagadoras maiorias de eleitores europeus contrapõem um
comportamento de neutralidade nas questões internacionais e um distanciamento –
quando não rejeição – em relação a Washington e respectiva influência.
Nenhuma das posições que a
maioria dos eleitores europeus expressaram no estudo sustenta a política
assumida por Bruxelas correspondendo aos interesses internacionais e
expansionistas norte-americanos. Logo, a política da União Europeia é
autocrática em relação aos seus cidadãos.
Exemplos práticos?
Enquanto os Estados Unidos
continuam a inventar pretextos para uma guerra contra o Irão
– sem que a União
Europeia se distancie credivelmente desse crime militarista – esmagadoras
maiorias dos cidadãos em todos os países europeus abrangidos pelo estudo
defendem a manutenção do acordo nuclear com Teerão.
Em 12 dos 14 países a maioria dos
cidadãos consideram que a União Europeia não fez o suficiente para acabar com a
guerra contra a Síria. Apenas a Dinamarca e a Holanda acham que sim.
Sobre este assunto, o
estudo/inquérito teria sido mais profundo se pedisse aos inquiridos para se
pronunciarem sobre a participação da União Europeia no lançamento e no
desenvolvimento da própria guerra em território sírio, mas a autora e os
mentores do projecto entenderam que não seria conveniente seguirem por esse
caminho.
Mesmo sem esse importante item,
sobejam elementos, neste estudo, para se concluir que a democracia é um mito
cultivado pela União Europeia à altura de outros, como a suposta admiração dos
cidadãos europeus pelos Estados Unidos.
Através destes jogos de
mistificação não surpreende que as respostas sobre temas como as sanções contra
a Rússia e a «protecção» que os governos europeus deverão montar contra a China
sejam dispersas e sem coerência interna.
A conjugação destes enviesamentos
com a comunicação social dominante transformada em propaganda, principalmente
em matérias de política internacional e geoestratégia, proporciona magmas
inconclusivos como os observados no estudo. Sendo que o modo como estes temas
foram abordados na construção do estudo também não ajuda – dir-se-ia haver
receio de usar vias de inquirição mais objectivas.
Independente disto, o estudo do
Centro Europeu de Relações Externas1 é
um importantíssimo documento sobre o que é a União Europeia e o que deveria ser
– nos antípodas – segundo a opinião da maioria dos seus cidadãos.
E se a União faz uma coisa e os
cidadãos eleitores desejam outra, bem diferente, podem extrair-se conclusões
objectivas:
- os eleitores votam, pensam, dão
opiniões mas as instituições de Bruxelas, que já de si não são eleitas, decidem
por livre arbítrio;
- para a União Europeia a
democracia é um conceito vazio, utilizado para florear discursos e programas;
- a «inalienável» e «fraternal»
aliança entre a União Europeia e os Estados Unidos da América é uma mistificação
que já não ilude a maioria dos europeus.
Mas que arrasta o risco de criar
situação dramáticas de que as principais vítimas serão esses mesmos europeus.
Nota:
O estudo pode ser lido em linha aqui ou importado em formato pdf aqui.
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