Daniel Deusdado | Jornal de Notícias
| opinião
Posta numa só linha, a notícia é
um dos maiores golpes perpetrado contra a democracia planetária e irreversível.
"Rainha de Inglaterra aprova a suspensão do Parlamento a pedido do
primeiro-ministro".
Esqueça as razões, a
constitucionalidade ou a legitimidade formal. Mantenhamos o foco no conteúdo.
Não há uma guerra, não há a morte do primeiro-ministro, não há uma hecatombe
global. A Rainha tinha de decidir se alinhava com um golpe de teatro promovido
por um pequeno génio do mal ou se mantinha a voz dos cidadãos no mais nobre
fórum, criado há muitos séculos, pelos seus antecessores: o Parlamento. Ambas
as decisões eram possíveis. O que fez? Tacitamente manteve o jogo a favor do
Brexit e quase permitiu o silenciamento, durante cinco semanas, dos deputados
eleitos.
Ora, quando a mais experiente
regente do mundo toma uma decisão destas, resta-nos chorar e perguntar se o
mundo está perdido. O mais antigo Parlamento em funcionamento podia, de facto
ser suspenso, sem mais, num momento transcendente da História do Reino Unido,
porque Boris Johnson pretendia centrar a ação do novo Governo nos assuntos
internos do país...
Milhões de pessoas conheceram esta
notícia, numa qualquer rádio ou em formato "última hora" de
telemóveis, numa só linha, com esta simplicidade. "Parlamento britânico
suspenso". Isso é possível? No Reino Unido? Se é possível lá, então é
possível em todo o mundo. O que intuem as pessoas que ouvem uma notícia destas
na Rússia? E na Turquia? E em tantos países de África ou Ásia? E nos ex-países
de Leste com a tendência para o autoritarismo?
Tal como Trump decretou que
deixou de haver verdade ou História, e passaram a existir apenas circunstâncias
ou interesses, Boris Johnson filiou-se nesta mesma linha de autocracia. Tudo é
tático e os fins justificam os meios. Ontem foi clamorosamente chumbado, não
sabendo nós se nas próximas eleições (seja qual for a data) não tirará os
dividendos certos destas manobras sinistras.
Uma coisa sabemos, irreversível:
o nacionalismo está a corroer os povos e uma enorme maioria de ingleses,
sobretudo com mais idade, detesta a Europa. O Brexit vai mesmo acontecer e,
numa vã ideia de saudoso império, os súbditos de Sua Majestade preferem ficar
sozinhos. Quem quer que se oponha a este processo vai perder.
Trump detesta os chineses, Boris
os europeus, e podemos continuar por aí fora - todos detestam alguém. Como
dizia Sartre, o inferno são os outros. E como, pelo voto, preferimos os nossos
ódios aos nossos afetos, estamos a construir todos os dias os caminhos das
guerras. Nas ruas do Reino Unido, no entanto, há quem não se renda a esta
fatalidade. O que sucedeu esta semana é uma esperança para a democracia.
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