Ferreira Fernandes | Diário de
Notícias | opinião
Governar de acordo com o povo
governado - a tão famosa democracia - tem algumas especificidades que podem
diferir de país para país. Nos Estados Unidos, por exemplo, quem governa é o
presidente, e este até pode ter tido menos votos do que o outro candidato.
Donald Trump foi eleito com menos votos do que a sua concorrente Hillary
Clinton mas a América não passou os últimos quatro anos a negar-lhe a
legitimidade que a legalidade eleitoral lhe trouxe. Outras legitimidades ele
não tem, tão estúpido, má pessoa e ignorante é. Mas isso é outro assunto, que
não o derivado da escolha do colégio eleitoral, representantes dos 50 estados
americanos, que é quem elege o presidente, não os milhões que vão às urnas.
Portugal também é governado de
acordo com o povo governado - outra vez a tal democracia. E também temos
especificidades. Ao contrário dos EUA, o governo português não é liderado pelo
Presidente (o nosso escrevemos sempre com a letra inicial em maiúscula mas em
descompensação ele não nos governa). O povo vota nas eleições para a Assembleia
da República, o Presidente ouve os partidos que elegeram deputados e convida
uma personalidade para primeiro-ministro. Ora, este para governar precisa de
conseguir condições no parlamento - maiorias, arranjos... Chama-se a isso um
regime semiparlamentar: o Presidente mete o bedelho, mas com a imposição de
escolher alguém que consiga formar um governo que governe. Isto é, que consiga
fazer acordos e constitua maiorias no parlamento.
Em 2015, foi o que aconteceu com
o Presidente de então, Cavaco Silva. Embora reticente, ele convidou António
Costa para formar um governo que fosse aceite. O socialista nem tinha o partido
mais votado, mas era o único a conseguir governar. Disse que faria alianças e
conseguiu fazê-las. Semi, semi é o nosso parlamentarismo, mas isso não o
invalidou de ser parlamentar: quem governa responde no parlamento, a que
chamamos Assembleia da República. Chame-se ao governar o que se quiser, até
geringonça, mas quando se chega ao fim de uma legislatura, há que registar:
governou. Bem, mal, é próprio da democracia haver opiniões diversas, opostas.
Mas na democracia o que vale como consequência cabe aos eleitores decidirem
quando encherem um novo parlamento, a nova fonte do governar. Seja o que
acontecer em 2019, foi porque houve 2015.
Democracia parlamentar acabamos
de ver o que é, aqui tão perto e na mais antiga do mundo. Boris Johnson,
legítimo primeiro-ministro, com maioria inicial e apesar do beneplácito da
rainha de Inglaterra (o presidente de lá), viu-se com o tapete tirado. Por quem
de direito. Os parlamentares, com as suas muito próprias especificidades,
mostraram-lhe o que vale a democracia onde quer que ela exista. E, mais uma
vez, como não se contestou a legalidade do poder de Trump, também a legalidade
do parlamento britânico em se impor a Boris não foi contestada. Quando as
normas do poder são respeitadas, não muito avisado fazer do desagrado, por ter
perdido, um constante e quase único assunto político. Insistir em
"geringonça" paga-se com língua de palmo.
Em 2015, António Costa foi buscar
o PCP e o BE que tinham concorrido, como de costume, para protestar e
transformou-os em dois partidos para governar. A democracia portuguesa deve a
Costa ela ter-se tornado maior. E Costa mostrou que ser semiparlamentar não diminuía
a responsabilidade à nossa democracia. Discutir se isso lhe dará ou não maioria
absoluta não cabe aqui, vai decidir o eleitor. Mas ainda sem resultados já há
uma lição a tirar: semiparlamentar e hemiciclo são evocações de metades falsas.
Quanto mais o parlamento for visto como um todo mais a democracia é forte.
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