Relatório da OIT joga novas luzes
sobre a automação. Não é o trabalho que declina, mas extração de mais valia e
desigualdade que disparam. Subcontratados da Apple são 25 vezes mais explorados
que tecelões ingleses do século XIX
Vijay Prashad, do Tricontinental Institute | Outras
Palavras | Tradução: Simone Paz
Um relatório recente
da Organização Internacional do Trabalho (OIT) mostra: há agora 3,5 biliões de
trabalhadores no mundo. Nunca o número foi tão vasto. A conversa sobre “o fim
dos trabalhadores” é prematura, quando confrontada com o peso desses dados.
A OIT reporta que a maior parte
desses 3,5 biliões de trabalhadores “enfrentam ausência de bem-estar material,
segurança económica, igualdade de oportunidades ou possibilidade de
desenvolvimento humano. Estar empregado nem sempre garante uma vida decente.
Muitos trabalhadores precisam aceitar trabalhos pouco atraentes, normalmente
informais (é o chamado trabalho flexível) e caracterizados por baixa
remuneração, além da acesso escasso ou inexistente a proteção social e direitos
trabalhistas”. Embora metade da força de trabalho mundial seja composta por empregados
assalariados, dois milhões de trabalhadores (61% do total) estão no setor
informal.
O relatório da OIT mostra que o
número de trabalhadores pobres diminuiu, em grande parte graças ao abrangente
impacto da China. Há controvérsias nos dados relacionados à pobreza, já que se
desconfia da honestidade das estatísticas apresentadas por muitos governos.
Ainda assim, os dados comprovam que mesmo com os rendimentos dos pobres
aumentando, estes ainda não cresceram o suficiente para tirá-los de fato da pobreza.
Jason Hickel e Huzaifa Zoomkawala expõem como houve poucos
ganhos para a parte mais pobre da humanidade nas últimas décadas. “No interior
do 60% mais pobre da humanidade, o cidadão comum viu sua renda anual crescer
somente 1.200 dólares… ao longo de 36 anos”, escreve Hickel.
Está longe de ser digno de celebração.
Mesmo com os dados evidenciando
que os trabalhadores dentro da força de trabalho global não conseguem encontrar
“trabalho decente”, as taxas de produtividade estão muito mais altas do que
antes. Como o relatório da OIT indica, “espera-se que o crescimento da
produtividade entre 2019 e 2021 alcance o seu pico mais elevado desde 2010,
superando a média histórica de 2,1% para o período de 1992-2018” . A OIT refere-se à
média mundial, visto que em muitos países — incluindo os EUA — o aumento da
produtividade tem se mantido estagnado: ou seja, é o crescimento da
produtividade em países como a China que puxa para cima a média global. Porém,
os benefícios do aumento da produtividade não são satisfatoriamente
distribuídos entre os trabalhadores, em termos de aumento salarial proporcional
às suas contribuições. Os benefícios sobem diretamente para os donos do
capital, o que aumenta a concentração de riqueza. O trabalho está produzindo um
excedente maciço, que poderia muito bem ser usado para melhorar o bem-estar
geral da humanidade. Em vez disso, vai parar nos bolsos dos capitalistas.
* * *
No último ano, o Instituto
de Pesquisa Social Tricontinental tentou encontrar formas de explicar
alguns conceitos-chave equivocados.
1. O de que a força de trabalho
mundial diminuiu. As falas sobre automação e precariedade levaram à suposição
de que haveria um declínio do trabalho, em plano mundial. Não é o caso. Hoje há
mais pessoas trabalhando do que nunca, muitas delas em fábricas — apesar dos
“desertos fabris” e do processo de desindustrialização no Ocidente
2. O de que a pobreza
diminuiu. Se houvesse menos gente trabalhando, haveria menos gente ganhando
dinheiro — logo, haveria maiores taxas de pobreza. O fato é: há mais pessoas
trabalhando, porém, a pobreza continua sendo um problema sério. As pessoas
empregadas aumentaram sua produtividade média e produzem muito mais hoje do que
antigamente. O que as mantém na pobreza, apesar de sua produtividade aumentada
— que vem, em parte, das melhorias tecnológicas — é que não conseguem usufruir
uma parcela maior dos ganhos de produtividade e da mais-valia total produzida.
Mas o que também mantém a taxa de pobreza constante é a destruição do estado de
bem-estar e de uma série de provisões, desde subsídios para habitação até
cestas de alimentos, que tem sido tirados de biliões de pessoas.
Há, de fato, mais pessoas
empregadas, mas elas não são capazes de ganhar a quantia suficiente, do total
da mais-valia que produzem, para superar a linha da pobreza.
O legado da análise marxista nos
fornece um conceito simples: taxa de exploração. Marx, em O Capital (1867),
trata da exploração em duas formas. No plano moral, ele brada contra a
exploração dos trabalhadores, particularmente das crianças. As terríveis
condições de vida e de trabalho desses trabalhadores, enfureceram Marx, assim
como qualquer pessoa sensível. Além disso, no marco de sua ciência, Marx
estudou a forma como os donos do capital contratam trabalhadores comprando sua
força de trabalho. São estes trabalhadores que produzem a mais-valia, cujos
ganhos são expropriados pelos donos do capital graças a seus direitos de
propriedade. Exploração, portanto, é a extração dessa mais-valia pelos donos do
capital aos trabalhadores que a produzem. Marx escreveu que a taxa de
exploração pode ser calculada de forma clara, se usarmos seu aparato conceitual.
* * *
A Apple acabou de lançar o iPhone
11. Poucas características o diferenciam do iPhone X, embora a versão mais cara
do novo telefone celular tenha três câmaras. É importante destacar que a Apple
não fabrica esses aparelhos. Eles são manufaturados em larga escala pela
companhia taiwanesa Foxconn, que emprega mais de 1,3 milhão de trabalhadores
apenas na China. O iPhone é obscenamente caro [R$ 8.999 no Brasil], e a maior
parte dos recursos de sua venda vão parar na Apple, não vai para os trabalhadores
nem para a Foxconn. Como a Apple possui a propriedade intelectual sobre o
telefone, ela delega a produção a companhias como a Foxconn, que fabrica os
telefones para o mercado. A Apple devora o grosso dos lucros graças a este
processo.
Cinco anos atrás, E. Ahmet Tonak
realizou um estudo do
iPhone 6, analisando-o desde o ponto de vista da análise marxista da taxa de
exploração. Como integrante do Instituto de Pesquisa Social Tricontinental,
Ahmet atualizou suas análises para acompanhar o iPhone X. Aproveitamos a
ocasião para produzir o Caderno
nº 2, que explica alguns dos conceitos centrais da teoria marxista e em
seguida utiliza a análise da taxa de exploração para olhar mais de perto para o
iPhone. A taxa de exploração nos permite demonstrar o quanto o trabalhador
agrega valor no processo de produção. Ela demonstra que, mesmo se o trabalhador
recebesse mais, só pela mágica da mecanização e da administração eficiente do
processo de produção a taxa de exploração aumentaria. Sob o sistema
capitalista, é impossível haver liberdade para o trabalhador.
A descoberta mais assombrosa da
análise é que os trabalhadores de nosso tempo, que fabricam iPhones, são 25
vezes mais explorados do que os trabalhadores de fábricas têxteis dos século
19, na Inglaterra. A taxa de exploração dos trabalhadores do iPhone é de 2.458%.
Esse número nos faz lembrar de que apenas uma parte infinitesimal da jornada de
trabalho vai compor o valor do salário que o trabalhador recebe; na quase
totalidade desta jornada, os operários produzindo para ampliar a riqueza do
capitalista. Quanto maior a taxa de exploração, mais cresce a riqueza do dono
do capital, graças ao trabalho assalariado.
O caderno nº 2 foi criado com
enorme cuidado por nossa Tings Chak e Ingrid Neves. Nós o produzimos com a
esperança de que seja amplamente utilizado em diferentes formas de educação —
seja em escolas de política, com fins académicos ou para o estudo independente.
O texto foi escrito numa linguagem clara e precisa, o seu desenho foi formulado
para melhorar o aprendizado.
* * *
Esta semana, a ONU organizou cinco
reuniões de cúpula sobre a catástrofe climática. Antonio Guterres,
secretário-geral das Nações Unidas, diz que duas
palavras resumem estes cinco encontros: ambição e ação. Os protestos mundiais
para defender o planeta ocorreram na última sexta-feira (20), e há ainda mais
atos marcados na sequência. Entretanto, as conversas nos encontros da ONU
permanecem estagnadas pela recusa dos EUA e de outros países ocidentais em
reconhecer sua grande responsabilidade na catástrofe, ao terem ultrapassado os
limites de suas cotas de emissão de carbono. A esperança de que esses países
contribuíssem para o Fundo Global para o Clima desmoronou. A quantia mínima
necessária é da ordem de triliões de dólares, e não os poucos biliões que foram
prometidos. Pouco se fala em mitigar, em transferir tecnologia, em desigualdade
de emissões ou tantas outras soluções substanciais que atacariam a raiz da
crise atual.
Há alguns anos, a Oxfam lançou um
importante estudo que
mostrava como a metade mais pobre do planeta era responsável por apenas 10% das
emissões globais, enquanto os 10% mais rico respondiam por 50% das emissões de
carbono. No entanto, como observa a Oxfam, são as pessoas dos países mais
pobres as mais vulneráveis às mudanças climáticas, muitas vezes erroneamente
culpadas por causá-las. A discussão sobre desenvolvimento não tem ocorrido em
paralelo à discussão sobre mudanças climáticas. Qual o sentido de dizer, para
as biliões de pessoas que produzem mais-valia, mas vivem em pobreza, que devem
reduzir seu consumo? Um estudo recente
da ONU diz que pelo menos 820 milhões de pessoas vivem com fome, e pelo menos
outras 2 biliões de pessoas sofrem de insegurança alimentar.
* * *
Não podemos abordar as mudanças
climáticas sem falar em abolir o sistema que vive da fome e da pobreza da maior
parte das pessoas do mundo, e sem reconhecer as sementes para um futuro melhor
que estão sendo plantadas hoje. A corrente de pensamento crítico latino-americano
nos lembra da importância disso. Num relatório feito recentemente, pelos nossos
escritórios em Buenos Aires e São Paulo, José Seoane escreve: “não se trata
apenas de imaginar esses futuros de forma teórica, baseando-nos em nosso
passado; a questão é também refletir e difundir os projetos populares que estão
se desenvolvendo atualmente e antecipar o futuro que estamos buscando”. Qual o
ponto de salvar o planeta enquanto biliões de trabalhadores morrem de fome?
O sofrimento não é uma mercadoria.
Não existe mercado primário ou secundário para ele. É terra e pedras no
estômago de um ser humano faminto. Um ser humano trabalhador da cadeia de
produção de um iPhone.
Gostou do texto? Contribua para
manter e ampliar nosso jornalismo de profundidade: OUTROS QUINHENTOS
Vijay Prashad é o
diretor do Tricontinental: Institute for Social Research e editor chefe da
LeftWord Books. É chefe de redação do Globetrotter, um projeto do Independent
Media Institute. Ele escreve regularmente para The Hindu, Frontline, Newsclick
e BirGün.
Sem comentários:
Enviar um comentário