sexta-feira, 27 de setembro de 2019

Sobre iPhone11, tecnologia e “fim do trabalho”


Relatório da OIT joga novas luzes sobre a automação. Não é o trabalho que declina, mas extração de mais valia e desigualdade que disparam. Subcontratados da Apple são 25 vezes mais explorados que tecelões ingleses do século XIX

Vijay Prashad, do Tricontinental Institute | Outras Palavras | Tradução: Simone Paz

Um relatório recente da Organização Internacional do Trabalho (OIT) mostra: há agora 3,5 biliões de trabalhadores no mundo. Nunca o número foi tão vasto. A conversa sobre “o fim dos trabalhadores” é prematura, quando confrontada com o peso desses dados.

A OIT reporta que a maior parte desses 3,5 biliões de trabalhadores “enfrentam ausência de bem-estar material, segurança económica, igualdade de oportunidades ou possibilidade de desenvolvimento humano. Estar empregado nem sempre garante uma vida decente. Muitos trabalhadores precisam aceitar trabalhos pouco atraentes, normalmente informais (é o chamado trabalho flexível) e caracterizados por baixa remuneração, além da acesso escasso ou inexistente a proteção social e direitos trabalhistas”. Embora metade da força de trabalho mundial seja composta por empregados assalariados, dois milhões de trabalhadores (61% do total) estão no setor informal.

O relatório da OIT mostra que o número de trabalhadores pobres diminuiu, em grande parte graças ao abrangente impacto da China. Há controvérsias nos dados relacionados à pobreza, já que se desconfia da honestidade das estatísticas apresentadas por muitos governos. Ainda assim, os dados comprovam que mesmo com os rendimentos dos pobres aumentando, estes ainda não cresceram o suficiente para tirá-los de fato da pobreza. Jason Hickel e Huzaifa Zoomkawala expõem como houve poucos ganhos para a parte mais pobre da humanidade nas últimas décadas. “No interior do 60% mais pobre da humanidade, o cidadão comum viu sua renda anual crescer somente 1.200 dólares… ao longo de 36 anos”, escreve Hickel. Está longe de ser digno de celebração.


Mesmo com os dados evidenciando que os trabalhadores dentro da força de trabalho global não conseguem encontrar “trabalho decente”, as taxas de produtividade estão muito mais altas do que antes. Como o relatório da OIT indica, “espera-se que o crescimento da produtividade entre 2019 e 2021 alcance o seu pico mais elevado desde 2010, superando a média histórica de 2,1% para o período de 1992-2018”. A OIT refere-se à média mundial, visto que em muitos países — incluindo os EUA — o aumento da produtividade tem se mantido estagnado: ou seja, é o crescimento da produtividade em países como a China que puxa para cima a média global. Porém, os benefícios do aumento da produtividade não são satisfatoriamente distribuídos entre os trabalhadores, em termos de aumento salarial proporcional às suas contribuições. Os benefícios sobem diretamente para os donos do capital, o que aumenta a concentração de riqueza. O trabalho está produzindo um excedente maciço, que poderia muito bem ser usado para melhorar o bem-estar geral da humanidade. Em vez disso, vai parar nos bolsos dos capitalistas.

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No último ano, o Instituto de Pesquisa Social Tricontinental tentou encontrar formas de explicar alguns conceitos-chave equivocados.

1. O de que a força de trabalho mundial diminuiu. As falas sobre automação e precariedade levaram à suposição de que haveria um declínio do trabalho, em plano mundial. Não é o caso. Hoje há mais pessoas trabalhando do que nunca, muitas delas em fábricas — apesar dos “desertos fabris” e do processo de desindustrialização no Ocidente

2. O de que a pobreza diminuiu. Se houvesse menos gente trabalhando, haveria menos gente ganhando dinheiro — logo, haveria maiores taxas de pobreza. O fato é: há mais pessoas trabalhando, porém, a pobreza continua sendo um problema sério. As pessoas empregadas aumentaram sua produtividade média e produzem muito mais hoje do que antigamente. O que as mantém na pobreza, apesar de sua produtividade aumentada — que vem, em parte, das melhorias tecnológicas — é que não conseguem usufruir uma parcela maior dos ganhos de produtividade e da mais-valia total produzida. Mas o que também mantém a taxa de pobreza constante é a destruição do estado de bem-estar e de uma série de provisões, desde subsídios para habitação até cestas de alimentos, que tem sido tirados de biliões de pessoas.

Há, de fato, mais pessoas empregadas, mas elas não são capazes de ganhar a quantia suficiente, do total da mais-valia que produzem, para superar a linha da pobreza.

O legado da análise marxista nos fornece um conceito simples: taxa de exploração. Marx, em O Capital (1867), trata da exploração em duas formas. No plano moral, ele brada contra a exploração dos trabalhadores, particularmente das crianças. As terríveis condições de vida e de trabalho desses trabalhadores, enfureceram Marx, assim como qualquer pessoa sensível. Além disso, no marco de sua ciência, Marx estudou a forma como os donos do capital contratam trabalhadores comprando sua força de trabalho. São estes trabalhadores que produzem a mais-valia, cujos ganhos são expropriados pelos donos do capital graças a seus direitos de propriedade. Exploração, portanto, é a extração dessa mais-valia pelos donos do capital aos trabalhadores que a produzem. Marx escreveu que a taxa de exploração pode ser calculada de forma clara, se usarmos seu aparato conceitual.

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A Apple acabou de lançar o iPhone 11. Poucas características o diferenciam do iPhone X, embora a versão mais cara do novo telefone celular tenha três câmaras. É importante destacar que a Apple não fabrica esses aparelhos. Eles são manufaturados em larga escala pela companhia taiwanesa Foxconn, que emprega mais de 1,3 milhão de trabalhadores apenas na China. O iPhone é obscenamente caro [R$ 8.999 no Brasil], e a maior parte dos recursos de sua venda vão parar na Apple, não vai para os trabalhadores nem para a Foxconn. Como a Apple possui a propriedade intelectual sobre o telefone, ela delega a produção a companhias como a Foxconn, que fabrica os telefones para o mercado. A Apple devora o grosso dos lucros graças a este processo.

Cinco anos atrás, E. Ahmet Tonak realizou um estudo do iPhone 6, analisando-o desde o ponto de vista da análise marxista da taxa de exploração. Como integrante do Instituto de Pesquisa Social Tricontinental, Ahmet atualizou suas análises para acompanhar o iPhone X. Aproveitamos a ocasião para produzir o Caderno nº 2, que explica alguns dos conceitos centrais da teoria marxista e em seguida utiliza a análise da taxa de exploração para olhar mais de perto para o iPhone. A taxa de exploração nos permite demonstrar o quanto o trabalhador agrega valor no processo de produção. Ela demonstra que, mesmo se o trabalhador recebesse mais, só pela mágica da mecanização e da administração eficiente do processo de produção a taxa de exploração aumentaria. Sob o sistema capitalista, é impossível haver liberdade para o trabalhador.

A descoberta mais assombrosa da análise é que os trabalhadores de nosso tempo, que fabricam iPhones, são 25 vezes mais explorados do que os trabalhadores de fábricas têxteis dos século 19, na Inglaterra. A taxa de exploração dos trabalhadores do iPhone é de 2.458%. Esse número nos faz lembrar de que apenas uma parte infinitesimal da jornada de trabalho vai compor o valor do salário que o trabalhador recebe; na quase totalidade desta jornada, os operários produzindo para ampliar a riqueza do capitalista. Quanto maior a taxa de exploração, mais cresce a riqueza do dono do capital, graças ao trabalho assalariado.

O caderno nº 2 foi criado com enorme cuidado por nossa Tings Chak e Ingrid Neves. Nós o produzimos com a esperança de que seja amplamente utilizado em diferentes formas de educação — seja em escolas de política, com fins académicos ou para o estudo independente. O texto foi escrito numa linguagem clara e precisa, o seu desenho foi formulado para melhorar o aprendizado.

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Esta semana, a ONU organizou cinco reuniões de cúpula sobre a catástrofe climática. Antonio Guterres, secretário-geral das Nações Unidas, diz que duas palavras resumem estes cinco encontros: ambição e ação. Os protestos mundiais para defender o planeta ocorreram na última sexta-feira (20), e há ainda mais atos marcados na sequência. Entretanto, as conversas nos encontros da ONU permanecem estagnadas pela recusa dos EUA e de outros países ocidentais em reconhecer sua grande responsabilidade na catástrofe, ao terem ultrapassado os limites de suas cotas de emissão de carbono. A esperança de que esses países contribuíssem para o Fundo Global para o Clima desmoronou. A quantia mínima necessária é da ordem de triliões de dólares, e não os poucos biliões que foram prometidos. Pouco se fala em mitigar, em transferir tecnologia, em desigualdade de emissões ou tantas outras soluções substanciais que atacariam a raiz da crise atual.

Há alguns anos, a Oxfam lançou um importante estudo que mostrava como a metade mais pobre do planeta era responsável por apenas 10% das emissões globais, enquanto os 10% mais rico respondiam por 50% das emissões de carbono. No entanto, como observa a Oxfam, são as pessoas dos países mais pobres as mais vulneráveis às mudanças climáticas, muitas vezes erroneamente culpadas por causá-las. A discussão sobre desenvolvimento não tem ocorrido em paralelo à discussão sobre mudanças climáticas. Qual o sentido de dizer, para as biliões de pessoas que produzem mais-valia, mas vivem em pobreza, que devem reduzir seu consumo? Um estudo recente da ONU diz que pelo menos 820 milhões de pessoas vivem com fome, e pelo menos outras 2 biliões de pessoas sofrem de insegurança alimentar.

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Não podemos abordar as mudanças climáticas sem falar em abolir o sistema que vive da fome e da pobreza da maior parte das pessoas do mundo, e sem reconhecer as sementes para um futuro melhor que estão sendo plantadas hoje. A corrente de pensamento crítico latino-americano nos lembra da importância disso. Num relatório feito recentemente, pelos nossos escritórios em Buenos Aires e São Paulo, José Seoane escreve: “não se trata apenas de imaginar esses futuros de forma teórica, baseando-nos em nosso passado; a questão é também refletir e difundir os projetos populares que estão se desenvolvendo atualmente e antecipar o futuro que estamos buscando”. Qual o ponto de salvar o planeta enquanto biliões de trabalhadores morrem de fome?

O sofrimento não é uma mercadoria. Não existe mercado primário ou secundário para ele. É terra e pedras no estômago de um ser humano faminto. Um ser humano trabalhador da cadeia de produção de um iPhone.

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Vijay Prashad é o diretor do Tricontinental: Institute for Social Research e editor chefe da LeftWord Books. É chefe de redação do Globetrotter, um projeto do Independent Media Institute. Ele escreve regularmente para The Hindu, Frontline, Newsclick e BirGün.

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