Fernanda Câncio | Diário de Notícias
| opinião
O Público elencou as
profissões dos novos deputados. Descobrimos assim que em 230 identificou um -
um único, que o jornal não identifica - "político profissional". A
síndrome cavacal está bem e recomenda-se. Ou de como o populismo ocupou o
superego dos representantes eleitos.
Ainda bem que há um deputado
arqueólogo: faz falta para fazer a arqueologia da profissão de político no
parlamento. 45 anos depois do 25 de Abril e 44 após as primeiras eleições
livres, só existe, a crer no trabalho publicado nesta sexta-feira pelo Público, um político profissional naqueles 230 lugares.
Isto apesar de termos ali gente
que há 30 anos não larga a cadeira, como o comunista António Filipe, que entrou
em 1989, na V legislatura, com 26 anos, e quem, como Jerónimo de Sousa, tendo
entrado em 1975 na Constituinte, aos 28, acumule 36 de parlamento (saiu ao fim
da VI legislatura, em 1995, e voltou na IX, em 2002) e 15 de liderança de
partido. Jerónimo e o seu colega de bancada Francisco Lopes são aliás dois
casos muito curiosos, já que surgem nas respetivas biografias parlamentares
como "afinador de máquinas" e "eletricista".
Surgem de resto no referido
artigo do Público como os únicos "operários" do parlamento,
correspondendo a 0,9% do total - o que colide com uma notícia do Observador, que indica Hugo
Oliveira, eleito pelo PS por Aveiro, como "operário fabril" (a
respetiva biografia não consta ainda no site da AR mas foi possível confirmar
que o deputado se identifica como tal).
Vejamos o caso de Francisco
Lopes. Tem 64 anos e foi eleito pela primeira vez como deputado na X
legislatura, em 2005. Se no site do parlamento está como eletricista, no do PC a biografia que
consta, datada de 24 de agosto de 2010 (um ano antes de ser candidato por
aquele partido à presidência da República), inclui, além de eletricista, também
"funcionário do PCP".
Partindo do princípio de que
Francisco Lopes não é eletricista no PCP, e sendo que a única menção, na mesma
fonte, a um local de trabalho como tal é a Applied Mechanics - que em 1975, de
acordo com a informação encontrada, passou para gestão governamental por fuga
dos donos para os EUA, devendo significar que ou fechou ou mudou de nome -,
parece seguro concluir que não trabalha em eletricidade desde os anos 1970.
Sendo assim, se efetivamente a
sua formação é essa - no site do parlamento está averbada a "frequência da
licenciatura de Eletrotecnia" -, temos de concluir que a sua profissão é
há uns 40 anos a de político - tão profissional aliás que é funcionário do partido.
O mesmo se aplica a Jerónimo de
Sousa: que sentido faz declarar que tem como profissão "metalúrgico"
ou "afinador de máquinas" se pelo menos desde
1975 se dedica à política a tempo inteiro? Percebe-se que o secretário-geral
dos comunistas queira sinalizar a sua origem operária, tão cara ao ideário do
partido, mas uma coisa é a origem, outra a realidade: se há um político
profissional na Assembleia da República é Jerónimo.
Não está obviamente sozinho, e a
questão não se coloca só aos mais velhos. Há deputados, presentes e passados,
que entraram tão novos para a Assembleia que não têm uma profissão para
apresentar na biografia. Caso de Rita Rato: como estreante em 2009, com 26
anos, numa entrevista ao DN, assumia ser desde 2006 "funcionária do
partido", além de membro da comissão política nacional, mas no site do
parlamento não consta profissão. E de Joana Mortágua, que tendo entrado no
parlamento em 2015, com 29 anos, também não averba profissão; só, como Rita, as
habilitações académicas.
Aliás, como um estudo ("Carreiras Políticas dos Deputados Portugueses") do politólogo André Freire apontava no início deste século, a tendência nas democracias consolidadas é de que uma parte substancial dos políticos se "profissionalizem". Tendo sido isso, como demonstra no dito estudo, notório no parlamento português à medida que os partidos se institucionalizavam.
Cabe pois questionar por que
motivo políticos que há décadas fazem da política a sua vida, e/ou que em
alguns casos nunca fizeram outra coisa, não se identificam como políticos
profissionais, recorrendo a "truques" para escamotear algo que
deveria ser, para quem escolheu essa atividade, um motivo de orgulho.
Temos disso um caso
paradigmático, o de Cavaco Silva. Apesar de ter sido o político pós-25 de Abril
que mais tempo ocupou o cargo de primeiro-ministro - de 1985 a 1995 - e que mal
o largou se candidatou à Presidência da República (perdeu para Sampaio,
tentando de novo, com sucesso, quando este saiu), passou a vida a repetir não
ser político e nunca o ter sido. Chegou mesmo a vender a fábula de que só foi
eleito para a presidência do partido, em 1985, por mero acaso: teria ido
"fazer a rodagem do carro novo". É para rir, mas esta pessoa que
andou décadas em cargos políticos sempre negando dedicar-se à política foi um
dos políticos mais bem-sucedidos da democracia portuguesa - e é possível que
parte desse sucesso se tenha devido a essa negação contumaz.
A ideia de que a política é uma
coisa peçonhenta e de que as pessoas sérias não se dedicam a ela, fazendo por
vezes o supremo sacrifício, por nós, de ali se aventurarem - mesmo que como
Cavaco e, antes dele, Salazar não queiram outra coisa - está profundamente
enraizada na psique coletiva.
E tem, obviamente, consequências.
Podemos olhar para o facto, apontado pelo Público, de mais de um terço dos
deputados se dizerem juristas e um quinto professores (ambas profissões que,
diga-se, permitem acumulação com a de deputado) e de "ser cada vez mais
difícil encontrar profissões como trabalhador industrial e agrícola entre os
deputados eleitos", adiantando como explicação para esta aparente
"elitização" a democratização da escola e a progressiva escolarização
da população. Mas também faz sentido questionar a que ponto a ideia da política
como algo de distante e tenebroso, que se passa numa esfera outra que não a da
vida das pessoas "normais", não afasta dela uma parte considerável da
população, a começar por aquela que tem menos instrução.
Se os políticos de partidos
tradicionalmente mais próximos das classes mais baixas são os primeiros a
afetar da política essa ideia de distância, fazendo de conta que a sua
profissão é metalúrgico ou eletricista e que a política é uma coisa que
"eles", os "outros", fazem "contra o povo",
talvez não devamos surpreender-nos quando na chegada da onda populista
"contra os políticos", a onda dos que para serem eleitos prometem
"ir para lá limpar aquilo", os votos de uns passem para os outros.
*Jornalista
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