Surgem as primeiras marchas
contra golpe de Estado — duramente reprimidas. Legisladores, impedidos de
entrar no Parlamento, denunciam assassinatos e Constituição rasgada. População
já prepara resposta a ultradireita
Sebastián Ochoa Sebastián Ochoa, em Lavaca | Outras Palavras | Tradução: Rôney
Rodrigues
A três dias da renúncia forçada
de Evo Morales à presidência da Bolívia, a máscara democrática dos golpistas
começam a cair. Na terça-feira (12/11), os legisladores do Movimiento Al
Socialismo (MAS) tentaram ingressar na Assembleia Legislativa Plurinacional
para rechaçarem o autoproclamamento da senadora Jeanine Áñez como nova
Presidenta. O plano era rechaçar a carta de renúncia de Evo Morales e exigir
sua volta ao país para retomar suas funções. A polícia tentou impedir que eles
ingressassem na Praça Murillo. No dia anterior, era Áñez quem lhes rogava que
fossem ao Parlamento dar quórum às votações. Enquanto isso, as mortes de
bolivianos em enfrentamento às Forças Armadas e à Polícia continuam aumentando.
Os legisladores do MAS solicitaram
aos meios de comunicação que divulguem os assassinados dos defensores de
Morales nesses enfrentamento de rua. Na terça, foi confirmada a morte de duas
pessoas em Yapacaní e em Montero, povoados de Santa Cruz de la Sierra,
compostos por camponeses. Não há uma contagem oficial dos mortos nos repúdios
ao golpe. Segundo a Defensoria do Povo, até a manhã de quarta era quatro.
Segundo a Procuradoria Geral, eram seis. Em El Alto [segunda maior cidade da
Bolívia] dizem que são muito mais. Os meios de comunicação silenciaram-se sobre
essas mortes. Salvo o sinal argentino da Crónica TV, nenhum meio cobriu a
repressão a balas à população alteña, na terça-feira.
Nessa quarta uma notícia passou
despercebida: o chefe das Forças Armadas, Williams Kaliman, renunciou a seu
cargo. Imediatamente, Áñez nomeou uma nova cúpula militar. Kaliman fora
empossado por Evo Morales em 2018. No último domingo, no entanto, deixou de
obedecê-lo, somando-se ao movimento pela sua derrocada. Agora, quando está
evidente que há muita gente disposta a sair às ruas para dar sua vida a Evo,
optou por sair de cena. Tudo indica que se avizinha uma repressão mais
impiedosa para quem defender o MAS.
No domingo, quando Morales
renunciou, cerca de quarenta legisladores, ministros e funcionários de todos os
escalões somaram-se a sua renúncia, com a intenção de “pacificar o país” – mas
nenhuma dessas renúncias foram aceitas, de acordo com os processos
administrativos.
Adriana Salvaterra, presidente do Senado |
Na terça-feira, legisladores do
MAS, que até 22 de janeiro de 2020 compõem maioria na Câmara e no Senado,
tentaram chegar a Assembleia. A polícia impediu que entrassem. Houve brigas,
empurrões, golpes e disparos de gás lacrimogêneo, que terminaram com a
Presidenta do Senado, Adriana Salvatierra, com a roupa rasgada e com hematomas.
Com a renúncia de Evo Morales e Álvaro García Linera, constitucionalmente
caberia a ela assumir como nova Presidenta. Quem assumiu, no entanto, foi Áñez,
segunda vice-presidenta do Senado, e, quando Salvatierra reapareceu no
Parlamento, não lhe corresponderia, constitucionalmente, o título que agora
ostenta.
As mobilizações de terça em El
Alto e em La Paz apontaram a ilegalidade da nomeação de Áñez. Organizações
camponesas de Cochabamba e Chuquisaca, que nunca deixaram de apoiar a Morales,
anunciaram que, nesta sexta-feira, começarão a bloquear as rodovias até “o
Presidente”, como seguem chamando-o, regresse.
Na coletiva de imprensa, a
Presidenta do Senado Adriana Salvatierra disse: “Tentaram impedir o acesso de
parlamentares, fomos violentamente agredidos, nos bateram, nos jogaram gases.
Como MAS, denunciamos a inexistência de garantias para trabalhar com
tranquilidade em nossas funções parlamentares. É uma clara demonstração da
violência que estão dispostos a exercer. À noite, no Parlamento, não tiveram
quórum, por isso o que fizeram é uma ilegalidade. E ainda mais ilegal quando
ação é complementada por violência física contra parlamentares. Queremos paz
para os bolivianos. Mas essa paz não pode existir enquanto não existir
garantias para a vida. O presidente Evo Morales foi claro: não queremos mais
violência. Antes forças militares saíssem às ruas, ele preferiu retirar sua
presidência do Estado”.
Mais tarde, em um vídeo em suas
redes sociais, ela transmitiu duas mensagens: “Primeiro, sou uma pessoa que
respeita muito todos os símbolos patrióticos e, é claro, a bandeira nacional e
a wiphala. Não sou uma pessoa que queima wiphalas, que tira wiphalas dos
lugares centrais onde merecem estar”, disse, em referência aos golpistas.
“A segunda mensagem fundamental é
que estamos iniciando uma luta pela recuperação da democracia e contra o Golpe
de Estado. E isso, assim como nossa bandeira, dever uma luta que una todo o
povo boliviano”, concluiu.
Ontem, o Cabildo [mecanismo
constitucional de participação cidadã, com caráter deliberativo, ainda que não
vinculante] na cidade de El Alto, reuniu uma multidão e foi finalizado com a
leitura de uma declaração, na qual sustenta que a população “não quer ser
submetidas com nas ditaduras anteriores. Por isso o povo alteño se levanta
contra o Golpe de Estado provocado pela direita racista”. Nesse documento,
exigem “a renúncia imediata da senadora Jeanine Áñez Chávez, pelo golpismo de
autonomear-se Presidenta do Estado sabendo que isso é ilegal e sua pose é
ilegítima”. E advertiram que “no caso de não sermos escutados, tomaremos medidas
drásticas com mobilizações e declararemos Greve Cívica na cidade de El Alto”.
Como assinatura, o clamor que se fez conhecido em 2003 e agora volta a ressoar:
“El Alto de pé, nunca de joelhos”.
Quem, de fato, é essa mandatária
Na terça a noite, a senadora
Jeanne Áñez entrou no Palácio Quemado para tomar posse dos escritórios
presidenciais, levando consigo uma enorme Bíblia. Vários de seus tweets
viralizaram, tornando de conhecido público seu despreço pelos indígenas. Agora,
ela está apagando mensagens, mas elas ainda sobrevivem nas capturas de telas. O
que mais circulou, em abril de 2013, dizia: “Sonho com uma Bolívia livre de
ritos satânicos indígenas. A cidade não é para os índios, que se vão ao
Altiplano ou ao Chaco”.
Ela nasceu, há 52 anos, em San
Joaquín, departamento de Beni, região amazônica que, junto com Santa Cruz,
possuem mais de 50% do território nacional. Tanta terra é usada, em sua maior
parte, pela agroindústria cruceña e pela pecuária beniana, cujos interesses
Áñez sempre defendeu.
Entrou para a política em 2006,
como deputada na Assembleia Constituinte que elaborou a Constituição atual,
aprovada em 2009, e que inclui vários símbolos indígenas na administração e
gestão do Estado Plurinacional. Desde 2010, é senadora pelo partido de direita
Unidad Demócrata. É licenciada em Direito. E é contra o aborto legal.
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