sexta-feira, 15 de novembro de 2019

Bolívia | NÃO DESPREZE A RESISTÊNCIA


Surgem as primeiras marchas contra golpe de Estado — duramente reprimidas. Legisladores, impedidos de entrar no Parlamento, denunciam assassinatos e Constituição rasgada. População já prepara resposta a ultradireita

Sebastián Ochoa Sebastián Ochoa, em Lavaca | Outras Palavras | Tradução: Rôney Rodrigues

A três dias da renúncia forçada de Evo Morales à presidência da Bolívia, a máscara democrática dos golpistas começam a cair. Na terça-feira (12/11), os legisladores do Movimiento Al Socialismo (MAS) tentaram ingressar na Assembleia Legislativa Plurinacional para rechaçarem o autoproclamamento da senadora Jeanine Áñez como nova Presidenta. O plano era rechaçar a carta de renúncia de Evo Morales e exigir sua volta ao país para retomar suas funções. A polícia tentou impedir que eles ingressassem na Praça Murillo. No dia anterior, era Áñez quem lhes rogava que fossem ao Parlamento dar quórum às votações. Enquanto isso, as mortes de bolivianos em enfrentamento às Forças Armadas e à Polícia continuam aumentando.

Os legisladores do MAS solicitaram aos meios de comunicação que divulguem os assassinados dos defensores de Morales nesses enfrentamento de rua. Na terça, foi confirmada a morte de duas pessoas em Yapacaní e em Montero, povoados de Santa Cruz de la Sierra, compostos por camponeses. Não há uma contagem oficial dos mortos nos repúdios ao golpe. Segundo a Defensoria do Povo, até a manhã de quarta era quatro. Segundo a Procuradoria Geral, eram seis. Em El Alto [segunda maior cidade da Bolívia] dizem que são muito mais. Os meios de comunicação silenciaram-se sobre essas mortes. Salvo o sinal argentino da Crónica TV, nenhum meio cobriu a repressão a balas à população alteña, na terça-feira.

Nessa quarta uma notícia passou despercebida: o chefe das Forças Armadas, Williams Kaliman, renunciou a seu cargo. Imediatamente, Áñez nomeou uma nova cúpula militar. Kaliman fora empossado por Evo Morales em 2018. No último domingo, no entanto, deixou de obedecê-lo, somando-se ao movimento pela sua derrocada. Agora, quando está evidente que há muita gente disposta a sair às ruas para dar sua vida a Evo, optou por sair de cena. Tudo indica que se avizinha uma repressão mais impiedosa para quem defender o MAS.

No domingo, quando Morales renunciou, cerca de quarenta legisladores, ministros e funcionários de todos os escalões somaram-se a sua renúncia, com a intenção de “pacificar o país” – mas nenhuma dessas renúncias foram aceitas, de acordo com os processos administrativos.


Adriana Salvaterra, presidente do Senado
Na terça-feira, legisladores do MAS, que até 22 de janeiro de 2020 compõem maioria na Câmara e no Senado, tentaram chegar a Assembleia. A polícia impediu que entrassem. Houve brigas, empurrões, golpes e disparos de gás lacrimogêneo, que terminaram com a Presidenta do Senado, Adriana Salvatierra, com a roupa rasgada e com hematomas. Com a renúncia de Evo Morales e Álvaro García Linera, constitucionalmente caberia a ela assumir como nova Presidenta. Quem assumiu, no entanto, foi Áñez, segunda vice-presidenta do Senado, e, quando Salvatierra reapareceu no Parlamento, não lhe corresponderia, constitucionalmente, o título que agora ostenta.

As mobilizações de terça em El Alto e em La Paz apontaram a ilegalidade da nomeação de Áñez. Organizações camponesas de Cochabamba e Chuquisaca, que nunca deixaram de apoiar a Morales, anunciaram que, nesta sexta-feira, começarão a bloquear as rodovias até “o Presidente”, como seguem chamando-o, regresse.

Na coletiva de imprensa, a Presidenta do Senado Adriana Salvatierra disse: “Tentaram impedir o acesso de parlamentares, fomos violentamente agredidos, nos bateram, nos jogaram gases. Como MAS, denunciamos a inexistência de garantias para trabalhar com tranquilidade em nossas funções parlamentares. É uma clara demonstração da violência que estão dispostos a exercer. À noite, no Parlamento, não tiveram quórum, por isso o que fizeram é uma ilegalidade. E ainda mais ilegal quando ação é complementada por violência física contra parlamentares. Queremos paz para os bolivianos. Mas essa paz não pode existir enquanto não existir garantias para a vida. O presidente Evo Morales foi claro: não queremos mais violência. Antes forças militares saíssem às ruas, ele preferiu retirar sua presidência do Estado”.

Mais tarde, em um vídeo em suas redes sociais, ela transmitiu duas mensagens: “Primeiro, sou uma pessoa que respeita muito todos os símbolos patrióticos e, é claro, a bandeira nacional e a wiphala. Não sou uma pessoa que queima wiphalas, que tira wiphalas dos lugares centrais onde merecem estar”, disse, em referência aos golpistas.

“A segunda mensagem fundamental é que estamos iniciando uma luta pela recuperação da democracia e contra o Golpe de Estado. E isso, assim como nossa bandeira, dever uma luta que una todo o povo boliviano”, concluiu.

Ontem, o Cabildo [mecanismo constitucional de participação cidadã, com caráter deliberativo, ainda que não vinculante] na cidade de El Alto, reuniu uma multidão e foi finalizado com a leitura de uma declaração, na qual sustenta que a população “não quer ser submetidas com nas ditaduras anteriores. Por isso o povo alteño se levanta contra o Golpe de Estado provocado pela direita racista”. Nesse documento, exigem “a renúncia imediata da senadora Jeanine Áñez Chávez, pelo golpismo de autonomear-se Presidenta do Estado sabendo que isso é ilegal e sua pose é ilegítima”. E advertiram que “no caso de não sermos escutados, tomaremos medidas drásticas com mobilizações e declararemos Greve Cívica na cidade de El Alto”. Como assinatura, o clamor que se fez conhecido em 2003 e agora volta a ressoar: “El Alto de pé, nunca de joelhos”.

Quem, de fato, é essa mandatária

Na terça a noite, a senadora Jeanne Áñez entrou no Palácio Quemado para tomar posse dos escritórios presidenciais, levando consigo uma enorme Bíblia. Vários de seus tweets viralizaram, tornando de conhecido público seu despreço pelos indígenas. Agora, ela está apagando mensagens, mas elas ainda sobrevivem nas capturas de telas. O que mais circulou, em abril de 2013, dizia: “Sonho com uma Bolívia livre de ritos satânicos indígenas. A cidade não é para os índios, que se vão ao Altiplano ou ao Chaco”.

Ela nasceu, há 52 anos, em San Joaquín, departamento de Beni, região amazônica que, junto com Santa Cruz, possuem mais de 50% do território nacional. Tanta terra é usada, em sua maior parte, pela agroindústria cruceña e pela pecuária beniana, cujos interesses Áñez sempre defendeu.

Entrou para a política em 2006, como deputada na Assembleia Constituinte que elaborou a Constituição atual, aprovada em 2009, e que inclui vários símbolos indígenas na administração e gestão do Estado Plurinacional. Desde 2010, é senadora pelo partido de direita Unidad Demócrata. É licenciada em Direito. E é contra o aborto legal.

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