quarta-feira, 27 de novembro de 2019

Portugal | Saúde.pt: O interlúdio punk da corrida ao ouro


O debate sobre o Serviço Nacional de Saúde (SNS) encontra-se num interlúdio punk: ruidoso, agressivo, atonal e atordoador. Nesta fase confundem-se justas reivindicações sociais e profissionais com interesses individuais e sectorializados; misturam-se a filosofia e os objetivos do Serviço Público com a ideologia e o modus teórico-prático do mercado e amalgamam-se descontentamentos geradores de alarme social e de irritação profissional, convenientemente amplificados pelos media.

Este cenário de agitação sócio-política em torno do SNS foi exacerbado após a aprovação da nova Lei de Bases da Saúde (LBS) e encontra-se em fase aguda, agora, nas vésperas da discussão do Orçamento Geral de Estado (OGE) para 2020, o primeiro desta legislatura. De facto, o mero vislumbre da possibilidade de contenção da mercantilização do sector da saúde tem sido o bastante para tentar decapitar o Ministério da Saúde no novo Governo e, assim, contribuir para impedir o efetivo desenvolvimento da nova LBS com os parceiros políticos que a aprovaram.

Destruir o SNS rapidamente e em força parece ser a palavra de ordem subliminar ainda que todos os intervenientes (de forma aparente e conveniente) afirmem defender o serviço público e até acusem o Estado de suborçamentação.

É neste enquadramento de investida ruidosa, potenciada pelo imediatismo irrefletido do facebook e do twitter, que se torna fundamental lembrar que a atual situação do SNS advém de algumas décadas de prossecução de uma política ideológico-económica (embora com cambiantes) de desestruturação estatal, propiciadora de individualismos profissionais, institucionais e corporativos, adversa à capacidade de conceção, de planeamento e de coordenação coerente que agora parece exigir-se no imediato.



É evidente que as políticas públicas “pró-mercado” que visaram o agigantamento do sector privado (indústria e grandes negociantes da saúde) contribuíram para a introdução de diversas disfunções no SNS, nomeadamente a “porta-giratória” do financiamento e dos profissionais. O resultado está à vista com as populações e os profissionais de saúde do sector público que imerecidamente sofrem até ao ponto da exaustão.

Infelizmente a situação não é nova, nem desconhecida, nem inesperada. Apenas ganhou acrescida visibilidade com a disputa pelos recursos financeiros para “a Saúde” (SNS/trabalhadores do sector público da saúde e infraestruturas de saúde públicas vs empresas privadas fornecedoras de medicamentos, de materiais, de serviços, etc) associados ao debate do OGE 2020.

Parte do ‘alarme’ a que hoje se assiste visa, sobretudo, a “corrida ao ouro” ou, como disse António Costa, à “Jóia da Coroa”.

A assinatura do “Pacto setorial para a competitividade e internacionalização do setor da Saúde” (29/04/2019) entre Salvador de Mello (Presidente do Health Cluster Portugal – HCP) e o Ministro da Economia Siza Vieira, marca a “consolidação” portuguesa da área da “Saúde” (tecnologia, serviços, etc) como geradora de “commodities” (bens essenciais transacionáveis). Este “Pacto” realizado no âmbito (estrito?) do “desenvolvimento” económico nacional, não deveria (em teoria) promover disrupções no funcionamento do SNS, porém os “vasos comunicantes” gerados pelo denominado “mercado interno”/receitas das empresas, a par com a omissão de um verdadeiro compromisso empresarial português para o SNS, fazem com que o “Pacto” se constitua como mais um fator de depleção dos recursos financeiros para a área pública da prestação de cuidados (SNS).

Quando Óscar Gaspar, Presidente da Associação Portuguesa da Hospitalização Privada; membro da Direção da União Europeia da Hospitalização Privada e Vogal da Direção da Confederação Empresarial de Portugal (CIP) afirmou: “este Pacto desafia-nos a trabalhar, a todos, em conjunto, para aproveitar o potencial da Saúde como motor de desenvolvimento”, significava “Saúde” como objeto mercantil “comodificado” para desenvolvimento financeiro privado e não ”Saúde” como direito universal e alicerce de desenvolvimento social, esse sim, gerador de mais-valia pública.

Não será coincidência que a CIP tenha defendido um aumento do orçamento “para o SNS” de 500 milhões de euros sendo estes destinados sobretudo para a indústria e o patronato. Também não será coincidência que a Apifarma  (Associação da Indústria Farmacêutica) justifique a falta de medicamentos nos hospitais porque são “demasiado baratos” e que conclua que os preços terão que subir.

E, finalmente, também não será por acaso que a assinatura deste Pacto “como instrumento para a concretização dos objetivos estratégicos do HCP, que definiu, até 2025, ultrapassar os 2,5 mil milhões de euros de exportações em saúde” possa estar relacionado com “[a identificação] do não-fornecimento ou o fornecimento não equitativo, por parte de laboratórios da indústria farmacêutica, em situações de existência de stock e a não satisfação de pedidos das farmácias mesmo quando havia stock dos medicamentos em causa nos armazéns de distribuidores por grosso”, como reportado pelo Infarmed.

Ainda sobre os interesses mercantis na área da saúde é necessário desmistificar a denominada “inovação”. No referido Pacto pode ler-se que o reforço da competitividade da economia Portuguesa deve “assentar na promoção da inovação e na criação de valor acrescentado (…)” o que significa, objetivamente, produzir e comercializar produtos que, amiúde, diferem daqueles que hoje estão em uso corrente com bons resultados clínicos, apenas pelo “novo”  lucro financeiro que produzem.  Infelizmente este tema da mercantilização nos medicamentos, abordado em diversos artigos científicos como preocupante exemplo da influência do marketing industrial no sector da prestação de cuidados, é insuficientemente conhecido da opinião pública...

Frequentemente a denominada “inovação” (sempre apresentada como positiva pelos seus proponentes) são produtos, ou projetos de produtos, que a indústria pretende desenvolver ou introduzir rapidamente no mercado (alguns destes produtos são eficazes, outros são ineficazes ou podem mesmo trazer riscos para a saúde) quando poucos são, na verdadeira aceção, inovadores. O que regra geral acontece é os poderes públicos serem confrontados demasiadas vezes com “exigências” de adoção de “super-medicamentos” e de tecnologias glamorosas, com resultados ainda não cabalmente avaliados, mas que o marketing industrial consegue “vender” à opinião pública suscetível ou a profissionais de saúde desencantados como sendo uma nova panaceia quasi-milagrosa.

Recentemente Francisco Ramos, ex-Secretário de Estado Adjunto da Saúde, alertou para as cautelas necessárias nesse campo: “a questão dos medicamentos continua a ser um problema real e também um problema criado pela ação de algumas entidades que legitima, ou não tão legitimamente, pressionam para que os seus produtos sejam acolhidos no circuito normal de prestação de cuidados (…) Tivemos exemplos disso (…) [houve] uma campanha organizada com a colaboração de empresas e de responsáveis de associações médicas que quiseram montar um modelo de alarmismo (…)[1].

Enquanto as populações e os profissionais dedicados do sector público procuram implementar soluções de emergência e de mitigação das dificuldades causadas pelo cerco do sector privado, a direita económica, com habilidade e discrição negocial, recolhe aos seus think tanks de aparente neutralidade institucional:

1. os denominados Encontros de Cascais com a presença confundidora de Pedro Pita Barros, lado a lado com Isabel Vaz (CEO Luz Saúde) e António Lagartixo (Delloite);

2. a décima conferência anual do HCP: “desvendando o futuro da saúde e dos cuidados” na qual um dos temas centrais é a “inovação”

3. a 1ª conferência da Willis Towers Watson para discutir a sustentabilidade dos seguros de saúde inserida no insuspeito (?) Greenfest;

4. as muitas opiniões de imparcialidade (?!) tecnocrática quasi-diárias difundidas pelo Observador e

5. o continuado caminho (neo)liberalizante firmado na “agenda para a década” da Convenção Nacional de Saúde, propulsora do retorno do “bloco central de interesses parlamentar”, com a chancela do Presidente da República.

Demonstradamente a direita económica não perdoa, nem perdoará, a revogação do instrumento legal que incentivou durante décadas o crescimento do negócio da saúde às expensas da deterioração do SNS. O Presidente do Conselho de Administração da Mello Saúde e Presidente do HCP, Salvador de Mello, assumiu-o a propósito das necessidades de financiamento do SNS vs “sistema de saúde”, dizendo que:

"(…) algumas das alterações ao sistema de saúde potenciadas pela nova Lei de Bases da Saúde podem contribuir para aumentar a despesa, (…) a internalização de Meios Complementares de Diagnóstico e Terapêutica e outros subcontratos, o alargamento do acesso à saúde oral, visual e auditiva, a criação de incentivos à dedicação plena, e o reconhecimento formal dos cuidadores informais”.

Pretendendo fazer crer que o incremento de investimento público para um SNS sustentável, responsivo e com resolutividade será superior à despesa a realizar para “manutenção e desenvolvimento” dos grandes grupos privados que têm engrandecido à custa do Estado. O mesmo Salvador de Mello que em 2016 afirmava que tinha criado “uma alternativa saudável ao Serviço Nacional de Saúde”.

São estes interesses da direita económica que se infiltraram em setores das Ordens dos profissionais de saúde e nalguns sindicatos que agora contribuem para o ruído na tentativa de gerar uma perceção de caos no SNS com consequente receio público, o que em nada se relaciona com a defesa da dignidade e deontologia profissional ou dos direitos e condições de trabalho dos profissionais de saúde.

recente apelo do Sindicato Independente dos Médicos (SIM) para que os seus associados “apresent[em] as minutas de exclusão de responsabilidade por exiguidade de meios” é exemplificativa de uma ação tendente para o individualismo burocrata, assente na promoção do medo do exercício da responsabilidade profissional no SNS, e que, em última análise, não só pressupõe o abandono da reivindicação coletiva pela qualidade dos serviços públicos como in extremis implica a parcial renúncia à deontologia médica no que se refere ao exercício das competências clínicas próprias (diagnóstico e terapêutica) segundo a melhor das capacidades individuais e circunstanciais – um médico não exerce as suas competências o melhor que sabe e pode na rua? Em guerra? Em situação de catástrofe? Ou num avião?

Mais estranho parece ser que a Ordem dos Médicos tenha à disposição “Minutas para a exclusão de responsabilidade disciplinar e participação de funcionamento anómalo dos serviços” cuja aplicabilidade está restringida ao exercício subordinado “nos estabelecimentos públicos”?!

Os médicos de outsourcing (“tarefeiros”) contratados via empresa estão abrangidos  ou o seu exercício profissional “independente” é mais “seguro”? O que dizer de hospitais privados onde as consultas têm tempo máximo de duração permitido (15mns) e há fortes incentivos à requisição de meios complementares de diagnóstico nem sempre necessários? Estas condições não afetam o exercício livre, autónomo e responsável da profissão?

Até Germano de Sousa, afiliado no PS, se baralhou ao parecer não distinguir entre o que são os interesses empresariais e os do SNS quando deixou cair o princípio constitucional da “generalidade” como característica constitutiva do Serviço Público de Saúde (SNS): “Defendo, porém, que o SNS só deve ser imutável na universalidade e gratuitidade”, pretendendo manter as modalidades de sub-contratação nos sectores de atividade clínica, como por exemplo (?) o sector das análises clínicas, mesmo quando existe comprovada capacidade instalada nos hospitais públicos.

Para a direita económica o Serviço Público de Prestação de Cuidados de Saúde (o SNS) não pode funcionar com qualidade para todos. Compreende-se que assim seja quando, como afirmou Isabel Vaz, “melhor negócio do que o da saúde, só o da indústria do armamento” (!)[2].

É neste quadro geral de ataque ao SNS que se impõe a questão: António Costa prometeu um aumento de investimento na Saúde como prioridade para a legislatura, mas quem ficará com a Jóia da Coroa?

O sector privado empresarial?

O Serviço Público de Cuidados de Saúde (o SNS)?

Ou a jóia estilharçar-se-á na estridência deste interlúdio punk propositado?

In memoriam[3]
“É o que eu chamaria a tentação esquizofrénica. Há uma canção no meu último álbum, Resistir é Vencer, de 2004, que é sobre isso chama-se «Onofre» e é uma piada: o nome que no Porto se dá ao botão «on /off». Nesta sociedade totalmente dominada pelos media resta-nos esse poder. É que somos atingidos por muitos estímulos, e cada vez mais estandardizados, de todos os lados, e deixámos de ter espaço, horizontes largos.”
entrevista a José Mário Branco na Revista Blitz em Abril de 2011

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