O debate sobre o Serviço Nacional
de Saúde (SNS) encontra-se num interlúdio punk: ruidoso, agressivo, atonal e
atordoador. Nesta fase confundem-se justas reivindicações sociais e
profissionais com interesses individuais e sectorializados; misturam-se a
filosofia e os objetivos do Serviço Público com a ideologia e o modus
teórico-prático do mercado e amalgamam-se descontentamentos geradores de alarme
social e de irritação profissional, convenientemente amplificados pelos media.
Este cenário de agitação
sócio-política em torno do SNS foi exacerbado após a aprovação da nova Lei
de Bases da Saúde (LBS) e encontra-se em fase aguda, agora, nas vésperas da
discussão do Orçamento Geral de Estado (OGE) para 2020, o primeiro desta legislatura.
De facto, o mero vislumbre da possibilidade de contenção da
mercantilização do sector da saúde tem sido o bastante para tentar decapitar o Ministério da Saúde no novo Governo
e, assim, contribuir para impedir o efetivo desenvolvimento da nova LBS com os
parceiros políticos que a aprovaram.
Destruir o SNS rapidamente e em
força parece ser a palavra de ordem subliminar ainda que todos os
intervenientes (de forma aparente e conveniente) afirmem defender o serviço
público e até acusem o Estado de suborçamentação.
É neste enquadramento de
investida ruidosa, potenciada pelo imediatismo irrefletido do facebook e
do twitter, que se torna fundamental lembrar que a atual situação do
SNS advém de algumas décadas de prossecução de uma política
ideológico-económica (embora com cambiantes) de desestruturação
estatal, propiciadora de individualismos profissionais, institucionais e
corporativos, adversa à capacidade de conceção, de planeamento e de
coordenação coerente que agora parece exigir-se no imediato.
É evidente que as políticas
públicas “pró-mercado” que visaram o agigantamento do sector privado
(indústria e grandes negociantes da saúde) contribuíram para a introdução de
diversas disfunções no SNS, nomeadamente a “porta-giratória” do
financiamento e dos profissionais. O resultado está à vista com as populações e
os profissionais de saúde do sector público que imerecidamente sofrem até ao
ponto da exaustão.
Infelizmente a situação não é
nova, nem desconhecida, nem inesperada. Apenas ganhou acrescida visibilidade
com a disputa pelos recursos financeiros para “a Saúde” (SNS/trabalhadores
do sector público da saúde e infraestruturas de saúde públicas vs empresas
privadas fornecedoras de medicamentos, de materiais, de serviços, etc)
associados ao debate do OGE 2020.
Parte do ‘alarme’ a que hoje se
assiste visa, sobretudo, a “corrida ao ouro” ou, como disse António Costa, à “Jóia da Coroa”.
A assinatura do “Pacto setorial
para a competitividade e internacionalização do setor da Saúde” (29/04/2019)
entre Salvador de Mello (Presidente do Health Cluster Portugal – HCP) e o
Ministro da Economia Siza Vieira, marca a “consolidação” portuguesa da área
da “Saúde” (tecnologia, serviços, etc) como geradora de “commodities” (bens
essenciais transacionáveis). Este “Pacto” realizado no âmbito (estrito?) do
“desenvolvimento” económico nacional, não deveria (em teoria) promover
disrupções no funcionamento do SNS, porém os “vasos comunicantes” gerados pelo
denominado “mercado interno”/receitas das empresas, a par com a omissão de um
verdadeiro compromisso empresarial português para o SNS, fazem com que o
“Pacto” se constitua como mais um fator de depleção dos recursos
financeiros para a área pública da prestação de cuidados (SNS).
Quando Óscar Gaspar, Presidente
da Associação Portuguesa da Hospitalização Privada; membro da Direção da União
Europeia da Hospitalização Privada e Vogal da Direção da Confederação Empresarial
de Portugal (CIP) afirmou: “este Pacto desafia-nos a trabalhar, a todos, em
conjunto, para aproveitar o potencial da Saúde como motor de desenvolvimento”,
significava “Saúde” como objeto mercantil “comodificado” para desenvolvimento
financeiro privado e não ”Saúde” como direito universal e alicerce de
desenvolvimento social, esse sim, gerador de mais-valia pública.
Não será coincidência que a CIP
tenha defendido um aumento do orçamento “para o SNS” de 500 milhões de euros sendo estes destinados sobretudo
para a indústria e o patronato. Também não será coincidência que a Apifarma (Associação
da Indústria Farmacêutica) justifique a falta de medicamentos nos
hospitais porque são “demasiado baratos” e que conclua que os preços terão
que subir.
E, finalmente, também não será
por acaso que a assinatura deste Pacto “como instrumento para a concretização
dos objetivos estratégicos do HCP, que definiu, até 2025, ultrapassar os 2,5 mil milhões de euros de exportações em
saúde” possa estar relacionado com “[a identificação] do não-fornecimento ou o
fornecimento não equitativo, por parte de laboratórios da indústria
farmacêutica, em situações de existência de stock e a não satisfação de
pedidos das farmácias mesmo quando havia stock dos medicamentos em causa nos
armazéns de distribuidores por grosso”, como reportado pelo Infarmed.
Ainda sobre os interesses
mercantis na área da saúde é necessário desmistificar a denominada “inovação”.
No referido Pacto pode ler-se que o reforço da competitividade da economia
Portuguesa deve “assentar na promoção da inovação e na criação de valor
acrescentado (…)” o que significa, objetivamente, produzir e comercializar
produtos que, amiúde, diferem daqueles que hoje estão em uso corrente com bons
resultados clínicos, apenas pelo “novo” lucro financeiro que
produzem. Infelizmente este tema da mercantilização nos medicamentos,
abordado em diversos artigos científicos como preocupante exemplo da influência
do marketing industrial no sector da prestação de cuidados, é
insuficientemente conhecido da opinião pública...
Frequentemente a denominada
“inovação” (sempre apresentada como positiva pelos seus proponentes) são
produtos, ou projetos de produtos, que a indústria pretende desenvolver ou
introduzir rapidamente no mercado (alguns destes produtos são eficazes, outros
são ineficazes ou podem mesmo trazer riscos para a saúde) quando poucos são, na
verdadeira aceção, inovadores. O que regra geral acontece é os poderes públicos
serem confrontados demasiadas vezes com “exigências” de adoção de
“super-medicamentos” e de tecnologias glamorosas, com resultados ainda não
cabalmente avaliados, mas que o marketing industrial consegue “vender” à
opinião pública suscetível ou a profissionais de saúde desencantados como sendo
uma nova panaceia quasi-milagrosa.
Recentemente Francisco Ramos,
ex-Secretário de Estado Adjunto da Saúde, alertou para as cautelas
necessárias nesse campo: “a questão dos medicamentos continua a ser um
problema real e também um problema criado pela ação de algumas entidades que
legitima, ou não tão legitimamente, pressionam para que os seus produtos sejam
acolhidos no circuito normal de prestação de cuidados (…) Tivemos exemplos
disso (…) [houve] uma campanha organizada com a colaboração de empresas e de
responsáveis de associações médicas que quiseram montar um modelo de alarmismo
(…)[1].
Enquanto as populações e os
profissionais dedicados do sector público procuram implementar soluções de
emergência e de mitigação das dificuldades causadas pelo cerco do sector
privado, a direita económica, com habilidade e discrição negocial, recolhe aos
seus think tanks de aparente neutralidade institucional:
1. os denominados Encontros de Cascais com a presença confundidora de
Pedro Pita Barros, lado a lado com Isabel Vaz (CEO Luz Saúde) e António
Lagartixo (Delloite);
2. a décima conferência anual do HCP: “desvendando o futuro da
saúde e dos cuidados” na qual um dos temas centrais é a “inovação”
3. a 1ª conferência da Willis Towers Watson para discutir a
sustentabilidade dos seguros de saúde inserida no insuspeito (?) Greenfest;
4. as muitas opiniões de
imparcialidade (?!) tecnocrática quasi-diárias difundidas pelo
Observador e
5. o continuado caminho
(neo)liberalizante firmado na “agenda
para a década” da Convenção Nacional de Saúde, propulsora do retorno
do “bloco central de interesses parlamentar”, com a chancela do Presidente da
República.
Demonstradamente a direita
económica não perdoa, nem perdoará, a revogação do instrumento legal que
incentivou durante décadas o crescimento do negócio da saúde às expensas da
deterioração do SNS. O Presidente do Conselho de Administração da Mello Saúde e
Presidente do HCP, Salvador de Mello, assumiu-o a propósito das necessidades de
financiamento do SNS vs “sistema de saúde”, dizendo que:
"(…) algumas das alterações
ao sistema de saúde potenciadas pela nova Lei de Bases da Saúde podem
contribuir para aumentar a despesa, (…) a internalização de Meios
Complementares de Diagnóstico e Terapêutica e outros subcontratos, o
alargamento do acesso à saúde oral, visual e auditiva, a criação de incentivos
à dedicação plena, e o reconhecimento formal dos cuidadores informais”.
Pretendendo fazer crer que o
incremento de investimento público para um SNS sustentável, responsivo e com
resolutividade será superior à despesa a realizar para “manutenção e
desenvolvimento” dos grandes grupos privados que têm engrandecido à custa do
Estado. O mesmo Salvador de Mello que em 2016 afirmava que tinha criado “uma alternativa
saudável ao Serviço Nacional de Saúde”.
São estes interesses da direita
económica que se infiltraram em setores das Ordens dos profissionais de saúde e
nalguns sindicatos que agora contribuem para o ruído na tentativa de gerar
uma perceção de caos no SNS com consequente receio público, o que em nada
se relaciona com a defesa da dignidade e deontologia profissional ou dos
direitos e condições de trabalho dos profissionais de saúde.
O recente apelo do Sindicato Independente dos Médicos
(SIM) para que os seus associados “apresent[em] as minutas de exclusão de
responsabilidade por exiguidade de meios” é exemplificativa de uma ação
tendente para o individualismo burocrata, assente na promoção do medo do
exercício da responsabilidade profissional no SNS, e que, em última análise,
não só pressupõe o abandono da reivindicação coletiva pela qualidade dos
serviços públicos como in extremis implica a parcial renúncia à
deontologia médica no que se refere ao exercício das competências clínicas
próprias (diagnóstico e terapêutica) segundo a melhor das capacidades
individuais e circunstanciais – um médico não exerce as suas competências o
melhor que sabe e pode na rua? Em guerra? Em situação de catástrofe? Ou num
avião?
Mais estranho parece ser que a Ordem dos Médicos tenha à disposição “Minutas para a
exclusão de responsabilidade disciplinar e participação de funcionamento
anómalo dos serviços” cuja aplicabilidade está restringida ao exercício
subordinado “nos estabelecimentos públicos”?!
Os médicos de outsourcing (“tarefeiros”)
contratados via empresa estão abrangidos ou o seu exercício profissional
“independente” é mais “seguro”? O que dizer de hospitais privados onde as
consultas têm tempo máximo de duração permitido (15mns) e há fortes incentivos
à requisição de meios complementares de diagnóstico nem sempre necessários?
Estas condições não afetam o exercício livre, autónomo e responsável da
profissão?
Até Germano de Sousa, afiliado no PS, se baralhou ao parecer
não distinguir entre o que são os interesses empresariais e os do SNS quando
deixou cair o princípio constitucional da “generalidade” como característica
constitutiva do Serviço Público de Saúde (SNS): “Defendo, porém, que o SNS só
deve ser imutável na universalidade e gratuitidade”, pretendendo manter as
modalidades de sub-contratação nos sectores de atividade clínica, como por
exemplo (?) o sector das análises clínicas, mesmo quando existe comprovada
capacidade instalada nos hospitais públicos.
Para a direita económica o
Serviço Público de Prestação de Cuidados de Saúde (o SNS) não pode funcionar
com qualidade para todos. Compreende-se que assim seja quando, como afirmou Isabel Vaz, “melhor
negócio do que o da saúde, só o da indústria do armamento” (!)[2].
É neste quadro geral de ataque ao
SNS que se impõe a questão: António Costa prometeu um aumento de investimento
na Saúde como prioridade para a legislatura, mas quem ficará com a Jóia da
Coroa?
O sector privado empresarial?
O Serviço Público de Cuidados de
Saúde (o SNS)?
Ou a jóia estilharçar-se-á na
estridência deste interlúdio punk propositado?
In memoriam[3]
“É o que eu chamaria a tentação
esquizofrénica. Há uma canção no meu último álbum, Resistir é Vencer, de 2004,
que é sobre isso chama-se «Onofre» e é uma piada: o nome que no Porto se dá ao
botão «on /off». Nesta sociedade totalmente dominada pelos media resta-nos esse
poder. É que somos atingidos por muitos estímulos, e cada vez mais
estandardizados, de todos os lados, e deixámos de ter espaço, horizontes largos.”
entrevista a José Mário Branco na
Revista Blitz em Abril de 2011
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