Bloqueada durante anos na
alienação digital, a UE estabeleceu uma nova norma em matéria de proteção de
dados e privacidade, eliminando algum controlo a partir do Silicon Valley. Mas
com a chegada da maioridade das aplicações baseadas em IA, as empresas
chinesas, por sua vez, lutam por um pedaço desse espaço.
Vincent Lorin for VoxEurop
Sete anos. Foi o tempo necessário
para as startups chinesas de inteligência artificial (IA), depois de apanharem
a onda da revolução do “deep learning“,
reunirem as suas forças. Ao atingir a massa crítica, com uma peculiar
capacidade em visão computacional – um conjunto de técnicas que permite aos
computadores “ver” e “compreender” as imagens digitais – elas estão a
expandir-se para países participantes da Iniciativa Belt
& Road Initiative (BRI).
Na Malásia, a SenseTime – a
startup de IA mais valiosa do mundo – participa na
construção de um parque tecnológico de mil milhões de dólares em Kuala Lumpur,
enquanto melhora os recursos de vigilância do estado.
No Paquistão, a Megvii – que
lançou uma oferta pública de aquisição em Hong Kong – está a instalar sistemas
de reconhecimento facial em instalações de energia eléctrica e a lançar
projectos de fábricas “inteligentes” no Japão e na Coreia do Sul.
Em África, a CloudWalk gere um
programa de reconhecimento facial em larga escala no governo do Zimbabué,
acedendo a bases de dados nacionais com milhões de rostos.
Elas são apoiados, nos seus
desenvolvimentos, pela Digital
Silk Road, um investimento de 200 mil milhões de dólares em
infra-estruturas digitais lançado por Pequim em 2017, na tentativa de integrar
grandes regiões da Ásia, África e partes da Europa sob um único “guarda-chuva”
digital, sustentado por uma rede global de cabos de [acesso à] Internet no alto
mar (incluindo 6.300 km de fibra óptica entre o Paquistão e o Djibuti) e
coberta pelo BeiDou, o sistema chinês de geoposicionamento por satélite.
Poder forte
Isto, podem alguns dizer, era
altamente previsível.
Afinal, os “players” chineses da
IA são extremamente bem financiados. Melhor financiados, por exemplo, do que os
seus colegas europeus, tendo garantido mais capital de risco e capital privado
em 2017 do que os europeus nos últimos três anos, segundo a CB
Insights.
Além disso, eles beneficiam –
enormemente – das mais recentes melhorias do Estado Policial: os quatro
unicórnios da IA da China (avaliados em mais de mil milhões de dólares)
alimentam-se todos de acordos lucrativos com o governo, participando de um faraónico
programa de vigilância para vigiar 1,4 mil milhões de pessoas.
Por fim, mas não menos
importante, eles têm acesso a mais dados – de que é necessária uma grande
quantidade para desenvolver algoritmos úteis de IA -, principalmente devido ao
facto de a China ter mais utilizadores de Internet e dispositivos da Internet
das Coisas conectados do que qualquer outro país.
Poder suave
Isto, no entanto, é apenas uma
parte da história.
Cheias de dinheiro, afogadas em
dados e patrocinadas pelo Estado, as empresas chinesas podem beneficiar, além
disso, de nossa própria credulidade.
Apesar de todas as suas forças
estruturais, a China está longe de vencer por qualquer medida na IA. Na investigação
fundamental, por exemplo, a Europa e os EUA têm mais cientistas líderes na área
da IA a publicar nas principais revistas do que a China (5.787 e 5.158,
respectivamente, contra 977), de acordo com um relatório publicado em Agosto
pelo Center For Data Innovation. Do mesmo modo, no sector do hardware, as
indústrias de semicondutores e de microprocessadores de IA são principalmente
de fabricantes norte-americanos.
No entanto – e de forma tão
consistente -, a China está a ser descrita, nos media ocidentais, como uma
força imparável tocada pelo destino para tornar-se inelutavelmente a líder
mundial omnipoderosa na IA. [Exemplos:]
"Why
China will win the global race for complete AI dominance", WIred,
Abril de 2018;
"How
China’s Rise as AI Superpower Could Reshape the World", Fortune,
Setembro de 2018;
“Why
China May Be the Next AI Superpower”, Medium, Novembro de 2018.
Tal narrativa (ou propaganda?
Afinal, o [partido comunista chinês] PCC não investiria 10
mil milhões de dólares/ano em poder suave sem qualquer objectivo), insere a
ideia – nas, digamos, mentes dos decisores municipais, ansiosos para se
manterem a par das inovações nas “cidade inteligente” – de que a experiência da
China em IA é única e indispensável, e pode desempenhar um papel no seu sucesso
no exterior.
Fingir até conseguir
Para ver isto, repare-se na
DeepBlue Technology, uma antiga empresa de comércio de leite em pó de Xangai
que se tornou especialista em IA, depois de mudar o seu nome em 2017, quando
começou a trabalhar em vários sistemas de IA usando visão computacional, e
vende agora robôs de limpeza para aeroportos, estações ferroviárias e hospitais
chineses.
Como os seus rivais na China,
conseguiu rapidamente captar uma grande quantidade de capital recebendo, entre
2017 e 2018, centenas de milhões de dólares do Tsinghua X-lab, da CBS Holdings,
da YF Capital, do Desun Group, da Meridian Capital, da Greenland e da CICC, um
banco de investimento ligado ao governo chinês.
Assim como os seus rivais, ela
está a planear expandir-se para conquistar o Sudeste Asiático através da
Tailândia, enquanto segue para a Europa, onde espera lançar o “autocarro
inteligente Panda” – o seu produto mais importante -, um veículo autónomo equipado
com reconhecimento de padrões das veias da palma da mão e apelidado pelo
fabricante como uma maravilha tecnológica.
Ao contrário dos seus rivais, no
entanto, a DeepBlue Technology é surpreendentemente estranha quando se trata de
clareza e transparência.
Permaneceu surpreendentemente
evasiva, por exemplo, sobre a sua equipa de investigação e desenvolvimento
(I&D). Excepto uma vaga reivindicação, não validada, de empregar “mais de
100 doutores e pós-doutorados” em Novembro de 2018 – eram mais de “30 doutores
e pós-doutorados” apenas cinco meses antes -, os jornalistas chineses não
conseguem, ao que parece, recolher qualquer informação credível sobre os perfis
detalhados dos principais engenheiros e cientistas da DeepBlue.
Mais bizarras ainda são as
exuberantes declarações repetidas pela liderança da DeepBlue nos media
ocidental e chinesa, quanto ao desenvolvimento dos seus produtos e serviços.
Em Novembro de 2018, por exemplo,
o vice-presidente Liu Feng-Yi afirmou que o autocarro autónomo da empresa já
estava a funcionar em 200 cidades na China e em 500 cidades em todo o mundo,
reiterando uma afirmação efectuada
um mês antes no site [de comunicados de imprensa] PR Newswire. De acordo com o
Financial Times, no entanto, desde Agosto deste ano o Panda está a ser testado em
10 cidades chinesas e “espera-se que o esteja em mais 10 até ao final de 2019”,
incluindo, hipoteticamente, Banguecoque e Atenas.
Surfar a onda mágica
Isto não parece ser um problema
para a DeepBlue, cuja incursão na Europa parece estar a avançar sem esforço.
No ano passado, no Luxemburgo,
abriu três laboratórios conjuntos com a House of Financial Technology (LHoFT),
alegadamente para se focarem em “fin-tech”, fábricas inteligentes e condução
autónoma.
Desde Março do ano passado, em
Itália, colabora com
a Fondazione Magna Grecia, esforçando-se por “acelerar a transformação digital
das cidades italianas por meio da IA” (cumprindo, escusado será dizer, “com
todos os requisitos de privacidade europeus”); e anunciou a criação de um fundo
sino-italiano para investir em startups europeias.
Em Junho passado, na Grécia,
durante o evento em Atenas intitulado “Chinese AI arrives in Europe”, a “líder
global em aplicações baseadas em IA” – conforme relatado pelos
media locais – alardeava a chegada das suas mais recentes inovações à Europa,
“definidas para mudar radicalmente o transporte público, os métodos de
pagamento, o retalho e o ambiente urbano em geral ”, prometendo aos seus
parceiros “investimentos”,“criação de empregos” e “transferência de
tecnologia”.
“Toda a guerra é baseada no
engano” – Sun Tzu, A Arte da Guerra
Mais cedo ou mais tarde, todos os
seguidores da estratégia “Fingir até conseguir” acabam por ser um glorioso
sucesso, um escândalo deplorável ou um falhanço enterrado. A suposição é que,
com a crescente influência da China nos órgãos de normalização da IA -
abrindo caminho para uma adopção suave das suas aplicações em todo o mundo – e
a ausência de intervenientes europeus de considerável dimensão nas
personalizações baseadas em IA, as coisas podem revelar-se muito rapidamente.
Além disso, enquanto – gradualmente
– seguem a sua própria agenda global, os pesos pesados da tecnologia
chinesa estão a atingindo profundamente a infra-estrutura digital da Europa.
Transacções de investimento
directo estrangeiro chinês no sector europeu da informação e tecnologia.
Os dados
representam o valor combinado das transações de investimento direto pelas
empresas da ChinaContinental, incluindo projetos greenfield e aquisições que
resultam em controle acionário significativo (>10%do patrimônio líquido). A
Europa inclui a UE-28 e os países da Associação Europeia de Comércio Livre
(EFTA):Islândia, Liechtenstein, Noruega e Suíça. *Primeiro semestre de 2019.
A Huawei, que estabeleceu 23
centros de I&D em toda a União Europeia, de acordo com um relatório
do MERICS, assinou 28 contratos com operadoras de telecomunicações na
Europa, sugerindo a possível implantação das suas redes 5G em alguns estados
membros. A Alibaba, antecipando o aumento da IA e a sua enorme necessidade de
armazenamento de dados e poder de processamento, está a actualizar as suas
capacidades de cloud no continente, abrindo dois novos centros de dados
perto de Londres.
Enquanto isso, os investidores
chineses têm interesse em investir em startups europeias em indústrias
intensivas em IA, como as “fin-tech”.
O N26, por exemplo, um banco
alemão de retalho directo que opera na zona do euro e no Reino Unido, obteve 160
mil milhões de dólares numa ronda de financiamento liderada pela Tencent
chinesa e pela seguradora alemã Allianz em 2018.
Da mesma forma, a 10X Future
Technologies, uma empresa de tecnologia financeira com sede em Londres, que
ajuda os bancos a optimizarem as suas funções administrativas e a interacção
com os clientes, arrecadou 34
milhões de libras liderados pela seguradora chinesa Ping An em 2018.
De maneira menos visível, a
AYLIEN, de Dublin, uma startup de IA, NLP [processamento natural de linguagem]
e Machine Learning que fornece análises de texto e APIs de notícias, recebeu dois
milhões de euros em investimento da incubadora ChinAccelerator de Xangai em
2017.
A versão portuguesa deste artigo
foi publicada pela primeira vez no
TICtank.
Translated by Pedro Fonseca
This article is published in
association with The
European Data Journalism Network.
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