Anda o mundo infestado de
performers que fazem parte da epifania colectiva destes tempos de danação em
que quase deixa de haver lugar para a criação artística excepto a não ser como
forma de ganhar dinheiro.
Manuel Augusto Araújo | AbrilAbril
| opinião
Um artista, Maurizio Castellan,
cola numa parede uma banana com fita adesiva prateada, em três versões, duas
provas de artista e uma final, depois de um ano a «trabalhar nessa ideia». Um
trabalho muitíssimo árduo como se presume, em que acabou por escolher três
bananas entre as centenas que andam pelos mercados. Aos compradores, entre eles
um museu, a «obra» foi vendida por 120 mil dólares. O curador da galeria
explica que é necessário ir substituindo a banana todas as semanas, «como uma
flor».
A «obra» ganhou visibilidade com
uma imagem que corre mundo sem assombrar ninguém nesta sociedade entediada com
o seu próprio tédio que, quanto muito, a olha com um sorriso amarelento.
Um performer completou o quadro comendo a banana explicando que «comeu
a obra e o seu conceito» (…) «não sou uma pessoa normal sou um artista, um
performer, não estou comendo uma banana, estou comendo arte». Tamanha empáfia é
típica de gente que, por todo o mundo, planta tretas que se espalham
cancerosamente, procurando ser levados a sério – no que, diga-se, pelo estado
de inacção desta sociedade oca, conseguem algum êxito ou, pelo menos, não serem
contestados por maiores dislates que digam. É ler as bulas que acompanham esses
eventos ditos artísticos para se sair derrotado pela cerrada obscuridade de uma
amálgama de conceitos superlativamente adjectivados, tão mais sofisticadamente
inteligentes quanto mais mediocremente indigentes são as obras, qualquer que
seja o género em que se inscrevem.
Anda o mundo, todo o mundo,
infestado de performers que fazem parte do grande circo da estupidez
sustentado pelo baixo clero destes tempos pós-modernos – curadores,
comissários, produtores, gestores culturais, especialistas, muitos deles
doutorados nessas malas-artes – que, com estas ou outras bananas, fazem parte
da epifania colectiva destes tempos de danação em que quase deixa de haver
lugar para a criação artística excepto a não ser como forma de ganhar dinheiro,
um caminho que Warhol, sem ironias nem sentimentalismos, percorreu com
inquietante êxito.
Aliás, foi Warhol quem começou
por consagrar a banana na capa de um disco dos Velvet Underground, a que se
seguiu a casca de banana no chão de Jeanne Silverthorne (EUA, 2007) e o furgão com uma tonelada de bananas de Paulo
Nazareth (Art Basel, Miami, 2011).
É a multiplicação sem precedentes
das artes performativas, sobretudo na música, nas artes visuais mas também na
literatura, em que os sujeitos da acção, os artistas performativos exploram a
hibridização entre géneros artísticos, abolindo hierarquias entre os materiais
e as formas da pintura, escultura, música, teatro, cinema desvalorizadas pelos
novos suportes, instalações, happenings, vídeos, concertos
performativos, performances, etc., plantando obstinadamente um kitsch impossível
de avaliação estética. O que Hermann Broch vitupera sem contemplações: «quem
quer que seja que produza kitsch não pode ser avaliado por critérios
estéticos, é um depravado do ponto de vista ético»2.
Também nos devemos interrogar
porque é que esse plâncton de artistas performativos que alimenta essas artes
sem arte, não aprende a filmar, a representar, a cantar, a compor, enfim a
aprender aquelas coisas básicas que são o mínimo dos mínimos exigível para tão
rarefeitas ideias, sem um grão de inovação e descoberta. Tudo requentado e
ruminante na esteira de Marcel Duchamp, desossado do seu propósito de destruir
a aura da arte, apropriado por um mundo sobrepovoado de artistas que como
assinala Avelina Lésper «deixam de ser imprescindíveis porque qualquer obra
substitui-se por outra qualquer, uma vez que cada uma delas carece de
singularidade (…) a carência de rigor (nas obras) permitiu que o vazio de
criação, o acaso e a falta de inteligência passassem a ser os valores desta
arte falsa, entrando qualquer coisa para ser exposta nos museus». Luciano Trigo3,
entre muitos outros, foca a mesma questão por outro ângulo: «Por que ninguém fala hoje em Picasso e tanta gente ainda se
inspira em Duchamp? A resposta é simples: a arte de Picasso exige talento,
técnica, reflexão sobre a vida e a História, enquanto Duchamp, por genial que
tenha sido em seu momento, traz uma mensagem muito mais fácil de ser assimilada
e copiada: qualquer um pode ser artista».
A dura realidade é que desnudar,
desvendar os mecanismos económicos e institucionais em que se funda o estado
actual das artes não tem comprometido nem a sua credibilidade cultural nem a
sua credibilidade comercial e mundana, como Mário Perniola extensamente
teorizou no magnifico ensaio A Arte e a sua Sombra4.
Essas desmistificações, por mais sérias e credenciadas que sejam, são
sistematicamente remetidas para nichos onde se espera fiquem sepultadas.
Raramente ultrapassam os muros que defendem a rede de interesses económicos que
domina o mercado das artes, actualmente um nicho do mercado de artigos de luxo,
e impõe, com arrogância ou manhosamente, os seus ditames. O debate estético e
cultural está praticamente reduzido a zero, submetido à ditadura dos
intermediários culturais, sejam curadores, directores de museus, marchands,
programadores, gestores culturais, comissários, críticos de arte, editores,
produtores. Aliás, o trânsito entre eles é intenso e não sai dos carris.
Analisar esta situação
exclusivamente pelos parâmetros estéticos dá uma ideia deformada do que é e
para que servem essas artes vertiginosamente inscritas num bullying cultural
que é outra das imagens de marca do nosso tempo. Quando se analisam os mapas de
eventos culturais inscritos num espaço territorial, seja um país ou um
continente, o que se verifica é que há uma proliferação de bananas coladas nas
programações culturais, sejam promovidas por entidades ou instituições públicas
ou privadas, alinhadas com a esquerda ou com a direita. O bananal é igualmente
assaltado por uns ou por outros numa distribuição equitativa que até poderia
provocar estranheza a quem não tiver a consciência clara que as obras de
cultura, os produtos culturais não surgem do nada, de uma qualquer inspiração
metafísica, não são um absoluto independente da produção e da reprodução social
da vida. Há que perceber claramente que as ideias dominantes são as das classes
dominantes porque é dominante a sua posição na esfera económica que se apropria
dos principais aparelhos e instituições, meios e instrumentos de produção,
difusão e recepção culturais, pelo que todas as bananas de todas essas artes
são o produto e a imagem, realizados no quadro da autonomia relativa que as
artes sempre tiveram, do capitalismo neoliberal da democracia pós-democrática.
Uma arte contemporânea em que a forma é substituída por uma ideia e a
personalidade do artista transformada em marca garante do valor da mercadoria
artística. Uma esquerda sem essa percepção rende-se. Deixa-se corroer pela onda
cultural, muitas vezes atemorizada de ficar à margem das modas quando deveria
resistir à normalidade da anormalidade dessa cultura inculta, promotora da
iliteracia cultural dominante que Byung-Chul Han expõe com brutalidade: «hoje,
a própria a percepção assume a forma de Binge Watching, (assistir a algo
compulsivamente, descontroladamente) de visionamento bulímico. Oferecem-se
continuamente aos consumidores o que se adapta por completo ao seu gosto— quer
dizer, do que eles gostam. São alimentados de consumo como gado com qualquer
coisa que acaba sempre por se tornar qualquer coisa. O Binge Watching pode
ser entendido como o modo actual de percepção generalizado»5.
Há que perceber claramente que,
para essa ordem capitalista, são de importância equivalente o controlo da
produção de bens materiais e o dos bens imateriais. É tão importante a produção
de bens de consumo e de instrumentos financeiros como a produção de comunicação
que prepara e justifica as acções políticas e militares imperialistas através
dos meios tradicionais – rádio, televisão, jornais – e dos novos proporcionados
pelas redes informáticas, como é igualmente importante a construção de um
imaginário global com os meios da cultura mediática de massas, e esse é o
pântano em que evoluem e levedam as artes performativas.
Há ainda que perceber que estas
actividades culturais e artísticas fazem parte do objectivo mais ambicioso do
neoliberalismo de produzir um homem novo, não o que o comunismo procurou
realizar, mas um outro construído pela aniquilação do sujeito moderno crítico e
marxista, substituindo-o por um sujeito autista, consumidor indiferente à
dimensão essencialmente política da existência, um indivíduo que se refere
exclusivamente ao aspecto solipsista dos objectos que se realizam como mercadoria
subjectiva da cultura de massas, uma cultura amarrada à perda de futuro como
dimensão ontológica humana no que é um dos traços fundamentais da sociedade
burguesa contemporânea, em que se procura que a alienação global seja
voluntária. A esquerda cosmopolita, ao não perceber essa realidade e a ela não
resistir, por ignorância ou oportunismo, condena-se a escorregar nas cascas de
banana que os outros comeram. Está colonizada, por vezes sem disso ter
consciência, pelo pensamento de direita.
Imagem: Instalação «Comediante»,
de Maurizio Castellan, na exposição de arte contemporânea Art Basel, em Miami
Beach, EUA, 5-8 de Dezembro de 2019. Antes de a banana colada à parede ter sido
comida numa «performance artística» por David Datuna já tinha sido vendida a um
coleccionador francês por 120 mil dólares.Créditos/ Lesalonbeige
Notas:
1.Burckhardt,
Jacob, Considerations sur L’Histoire, Allia, 2001
2.Broch,
Hermann, Quelques Remarques à Propos du Kitsch, Allia, 2001
3.Luciano
Trigo, A grande feira: uma reação ao vale-tudo na arte contemporânea,
Civilização Brasileira, 2009.
4.Perniola,
Mário, A Arte e a sua Sombra, Assírio & Alvim, 2006
5.Byung-Chul,
Han, A Expulsão do Outro, Relógio d’Água, 2018
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