Resgate de um fenómeno político
dramático: o avanço da ultradireita, após a crise de 2008. Pobreza da maiorias.
Rios de dinheiro aos bancos. Arrogância dos liberais. Paralisia da esquerda. Os
ingredientes que criaram o monstro e como vencê-lo
Serge Halimi e Pierre Rimbert,
no Le Monde Diplomatique (edição
inglesa) | Tradução: Felipe Calabrez
Budapeste, 23 de maio de 2018.
Vestindo uma jaqueta um pouco grande para ele e uma camisa roxa, Steve Bannon
dirigiu-se a uma audiência de húngaros proeminentes: “O pavio que iluminou a
revolução Trump começou em 15 de setembro às nove da manhã [em 2008, quando] o
Lehman Brothers foi levado à falência”. Bannon, ex-estrategista-chefe de Donald
Trump, também havia sido banqueiro de investimentos no Goldman Sachs e sabia
que a crise havia atingido a Hungria com força: “As elites se libertaram,
socializaram totalmente o risco. O cidadão comum conseguiu um socorro como
esse”? Embora muitas de suas atividades políticas atuais tenham sido pagas por
fundos de hedge, ele ataca um “socialismo para os ricos” que provocou “uma
revolta realmente populista” em todo o mundo. “Em 2010, Viktor Orbán foi votado
de volta ao poder na Hungria”: Orbán foi “Trump antes de Trump”.
Uma década após a tempestade
financeira de 2008, o colapso económico global e a crise da dívida pública
europeia desapareceram dos terminais da Bloomberg que monitoram os sinais
vitais do capitalismo. Mas suas ondas de choque amplificaram duas grandes
revoltas políticas.
A primeira foi a perturbação da
ordem internacional neoliberal do pós-Guerra Fria, fundada na OTAN, nas
instituições financeiras ocidentais e na liberalização do comércio global.
Mesmo que o vento leste ainda não tenha prevalecido sobre o oeste, como Mao
prometeu, uma reconfiguração geopolítica está em andamento: quase 30 anos após
a queda do Muro de Berlim, a influência do capitalismo de Estado chinês está
crescendo. O futuro da economia socialista de mercado da China, impulsionado
pela prosperidade de uma classe média crescente, está ligado à globalização do
comércio, que danificou as bases de manufatura da maioria dos países
ocidentais. Isso inclui os EUA, que Trump prometeu salvar de tal “carnificina”
em seu discurso de posse.
Os choques e tremores secundários
de 2008 também perturbaram a ordem política, que considerava a democracia de
mercado o ponto final da história. A arrogância de tecnocratas de fala mansa em
Nova York ou Bruxelas, que impuseram medidas impopulares em nome do
conhecimento técnico e da modernidade, abriu caminho para políticos explosivos
e conservadores. Em Washington, Varsóvia e Budapeste, Trump, Jaroslaw Kaczyński
e Orbán afirmam ser tão capitalistas quanto Barack Obama, Angela Merkel, Justin
Trudeau e Emmanuel Macron, mas sua marca de capitalismo é difundida por uma
cultura diferente: ela é “iliberal”, nacional e autoritária, e defende os
valores do interior sobre a metrópole.
Uma linha falha agora divide a
classe política e é dramatizada e ampliada pela mídia, reduzindo o leque de
opções políticas a dois irmãos em guerra. A direita recém-chegada ao poder em
muitos países compartilha, com seus antecessores, a intenção de enriquecer os
ricos. Mas procura fazê-lo explorando o sentimento que o neoliberalismo e a
social-democracia inspiram na maior parte da classe trabalhadora, que é nojo
misturado com raiva.
Desafios à velha ordem
A resposta à crise de 2008 expôs
e eliminou a possibilidade de ignorar coisas que contradizem a pragmática
santificação do “bom governo”, oriunda de políticos de centro-direita e
centro-esquerda desde o colapso da URSS. Nem a globalização, nem a democracia,
nem o liberalismo, emergiram da crise ilesos.
Primeiro, revelou-se que a
internacionalização da economia mundial não é boa para todos os países e nem
para a maioria dos assalariados no Ocidente. A eleição de Trump entronizou um
novo presidente dos EUA, que há muito estava convencido de que a globalização,
longe de beneficiar os EUA, acelerou seu declínio e garantiu a ascensão de seus
concorrentes estratégicos. Com Trump, a proposta “America First” venceu o
slogan “ganha-ganha” dos defensores da liberalização do comércio. Em uma
manifestação em 4 de agosto, em Ohio, um estado industrial em que Trump
conquistou uma vantagem de oito pontos sobre Hillary Clinton, ele falou sobre o
enorme (e crescente) déficit comercial dos EUA: “US$ 817 bilhões por ano …
culpe a China. Eles não podem acreditar que se safaram. Nós realmente
reconstruímos a China, e é hora de reconstruirmos nosso próprio país agora, ok?
Somente Ohio perdeu mais de 200 mil empregos na indústria desde que a China
entrou na OMC. A Organização Mundial do Comércio é um desastre total. Por
décadas, nossos políticos permitiram que outros países roubassem nossos
empregos, saqueassem nossa riqueza e nossa economia”.
No início do século XX, o
protecionismo impulsionou a ascensão industrial dos EUA e de muitos outros
países. As tarifas de importação encheram os cofres públicos, uma vez que não
havia imposto de renda antes da I Guerra Mundial. Em Ohio, Trump invocou
William McKinley, presidente republicano (1897-1901) que mais tarde seria
assassinado por um anarquista: “Ele entendeu a importância crucial das tarifas
na manutenção de um país muito forte”. A Casa Branca agora recorre a tarifas
sem hesitar e sem se preocupar com a OMC. Cada semana traz novas sanções contra
outros Estados que Trump alvejou, incluindo aliados: Turquia, Rússia, Irã, UE,
Canadá, China. Ao invocar a “segurança nacional”, ele pode dispensar a
aprovação do Congresso, cujos membros permanecem apegados ao livre comércio,
assim como os lobistas que financiam suas campanhas.
Empregos se vão
A opinião pública dos EUA é menos
dividida sobre a China; mas aqui o consenso é claramente hostil, e não apenas
por razões comerciais. A China é vista como o maior rival estratégico dos EUA.
Desperta desconfiança por causa de sua força (sua economia é oito vezes maior
que a da Rússia) e suas ambições expansionistas na Ásia, e porque seu modelo
político autoritário desafia os EUA. O cientista político Francis Fukuyama,
embora afirmando que sua teoria de 1989 sobre o triunfo irreversível e
universal do capitalismo neoliberal ainda é válida, tem uma ressalva: “A China
é de longe o maior desafio à narrativa do ‘fim da história’, uma vez que foi
capaz de se modernizar economicamente enquanto mantinha uma ditadura …
Se, no decorrer dos próximos anos, seu crescimento continuar e se mantiver como
a maior potência económica do mundo, admitirei que minha teoria foi
definitivamente refutada”1.
Por fim, Trump e seus adversários políticos dos EUA compartilham um terreno
comum em pelo menos um ponto: ele acha que a ordem neoliberal internacional
custa muito caro aos EUA, enquanto seus inimigos acreditam que o sucesso da
China ameaça derrubá-la.
Um pequeno passo separa a
geopolítica da política. A globalização destruiu empregos e corroeu os salários
ocidentais; nos últimos 10 anos, a massa salarial dos EUA caiu de 64% do PIB
para 58%, uma perda média anual de US$ 7.500 por trabalhador2.
Os trabalhadores dos EUA guinaram
politicamente à direita nos últimos anos, precisamente nas regiões industriais
devastadas pela concorrência chinesa. Essa mudança pode ser atribuída a fatores
culturais (sexismo, racismo, cultura de armas, hostilidade ao aborto e
casamento gay). Mas isso seria ignorar uma explicação económica pelo menos
igualmente convincente: o número de condados dos EUA onde mais de 25% dos
trabalhadores depende do setor manufatureiro entrou em colapso entre 1992 e
2016, passando de 862 para 323; e a cota de votos entre democratas e
republicanos mudou drasticamente. Os votos eram divididos quase igualmente
entre os partidos – cerca de 400 municípios cada – há 25 anos; em 2016, 306 dos
condados industriais restantes votaram em Trump e apenas 17 em Hillary Clinton3.
A adesão à China na OMC, apoiada pelo democrata Bill Clinton, deveria acelerar
a transformação da China em uma sociedade capitalista liberal. Em vez disso, deixou
os trabalhadores norte-americanos enojados com a globalização, o liberalismo e
os democratas.
Pouco antes do colapso do Lehman
Brothers, o ex-presidente do Federal Reserve dos EUA, Alan Greenspan, explicou:
“[Temos] sorte de que, graças à globalização, as decisões políticas nos EUA
tenham sido amplamente substituídas pelas forças do mercado global. Segurança
nacional à parte, dificilmente faz diferença quem será o próximo presidente4”.
Seria difícil encontrar suporte para essa visão agora.
Na Europa Oriental, onde a
expansão económica ainda depende das exportações, qualquer questionamento da
globalização deixa de fora o comércio. Mas os “homens fortes” no poder condenam
a imposição de valores ocidentais pela União Europeia, porque acham que essas
ideias são fracas e decadentes para incentivar a imigração, a homossexualidade,
o ateísmo, o feminismo, o ambientalismo e a dissolução da família. Esses homens
fortes também desafiam o caráter democrático do capitalismo neoliberal, e não
sem razão. Porque quando se trata de igualdade de direitos políticos e cívicos,
a questão de saber se as mesmas regras se aplicam a todos foi novamente
esclarecida após 2008. “Não houve processos contra ninguém nos níveis mais
altos do sistema financeiro”, escreveu John Lanchester. “Compare isso com o
escândalo de poupanças e empréstimos da década de 1980, no qual 1.100 foram
processados5“.
Como os prisioneiros franceses costumavam zombar, roube um ovo e vá para a
prisão; roube um boi e vá ao Palais Bourbon.
O povo pode escolher, mas o
capital decide. Líderes neoliberais de direita e esquerda, ao não cumprirem
suas promessas eleitorais, tornaram credíveis as suspeitas que se seguem a
quase todas as eleições. Obama, eleito para encerrar as políticas conservadoras
de seus antecessores, reduziu déficits públicos, reduziu os orçamentos de
assistência social e, em vez de impor a Previdência Social, insistiu que os
americanos comprassem seguro médico de um cartel privado. Na França, Nicolas
Sarkozy aumentou a idade da aposentadoria em dois anos, apesar de haver
prometido não modificá-la; da mesma maneira, François Hollande, do Partido
Socialista aprovou um pacto de estabilidade da UE, que prometera renegociar. No
Reino Unido, Nick Clegg levou seus parlamentares Liberais Democratas a um
governo de coligação com os conservadores e, como vice-primeiro-ministro,
aceitou o triplo das taxas de universidade que ele havia prometido abolir.
Vitória do “mundo livre”
Alguns partidos comunistas da
Europa Ocidental sugeriram na década de 1970 que, se fossem levados ao poder, seria
uma jornada de mão única, uma vez que o projeto de construção do socialismo,
uma vez iniciado, não poderia estar sujeito aos caprichos do eleitorado. A
vitória do “mundo livre” sobre a “hidra soviética” adaptou esse princípio, mas
com mais astúcia: o direito ao voto não foi retirado, mas agora vem com a
obrigação de confirmar as preferências das classes dominantes, sob pena de ter
que se refazer o processo eleitoral. O jornalista francês Jack Dion resumiu:
“Em 1992, os dinamarqueses votaram contra o Tratado de Maastricht; eles foram
forçados a voltar às urnas. Em 2001, os irlandeses votaram contra o Tratado de
Nice; eles foram forçados a voltar às urnas. Em 2005, franceses e holandeses
votaram contra o Tratado Constitucional Europeu (ECT); ele foi imposto sob o
nome de Tratado de Lisboa. Em 2008, os irlandeses votaram contra o Tratado de
Lisboa; eles tiveram que votar novamente. Em 2015, 61,3% dos gregos votaram
contra o plano de redução de gastos de Bruxelas, plano que lhes foi imposto
mesmo assim”6.
Naquele ano, o ministro das
Finanças da Alemanha, Wolfgang Schäuble, dirigindo-se a um governo de esquerda
recentemente eleito em Atenas que estava constrangido a impor mais tratamento
de choque neoliberal aos gregos, resumiu seu respeito pelo circo democrático:
“As eleições não devem permitir uma mudança na política económica7 Pierre
Moscovici, Comissário da UE para Assuntos Económicos e Financeiros, admitiu
recentemente: “Apenas 23 pessoas e seus suplentes tomam – ou não tomam –
decisões fundamentais para milhões de outras pessoas, gregos, neste caso, com
base em critérios extraordinariamente técnicos, decisões que estão isentas de
qualquer controle democrático. O Eurogrupo [formado por ministros das Finanças
da zona do euro] não presta contas a nenhum governo, parlamento e, certamente,
não ao Parlamento Europeu”8.
Esse desdém pela soberania
popular, que seria autoritária e ‘iliberal’ à sua maneira, impulsiona um dos
argumentos de campanha mais poderosos de políticos conservadores de ambos os
lados do Atlântico. Trump e Orbán, juntamente com Kaczyński na Polônia e Matteo
Salvini na Itália, levam em consideração o fim da democracia, ao contrário dos
partidos de centro-esquerda e centro-direita que tentam reanimá-la sem se
permitir os meios para fazê-lo. O primeiro grupo concorda com o princípio da
votação maioritária, mas rejeita o resto: contrapõe o autoritarismo
tecnocrático de Washington, Bruxelas e Wall Street com um estilo desavergonhado
de autoritarismo nacionalista e apresenta isso como uma vitória para o povo.
A terceira contradição presente
no discurso dominante dos anos anteriores, revelada pela crise, diz respeito ao
papel económico do Estado: ele pode fazer qualquer coisa, mas não para todos.
Raramente esse princípio foi tão claramente demonstrado como na década passada.
A sobrevivência de todo o sistema dependia dos bancos e, para salvá-los, as
operações que antes haviam sido decretadas impensáveis eram realizadas em ambos
os lados do Atlântico e sem oposição, sem restrições: houve maciças medidas de quantitative
easing [“estímulo” económico por meio de impressão de moeda, transferida
aos grandes investidores], com nacionalizações, tratados internacionais
desrespeitados e medidas especiais de políticos agindo arbitrariamente. Esse
intervencionismo em larga escala revelou Estados fortes, capazes de mobilizar
seu poder em um domínio do qual eles pareciam ter se retirado9.
Mas se os Estados são fortes, é
principalmente para garantir uma estrutura estável para o capital. Jean-Claude
Trichet, presidente do Banco Central Europeu (2003-11), era inflexível na
obsessão de cortar os gastos sociais da Europa para reduzir os déficits
públicos ao limite de 3% do PIB, mas admitiu que os compromissos financeiros
assumidos pelos chefes de Estado para salvar o sistema bancário em 2008
representaram, em menos de um ano, “27% do PIB na Europa e nos EUA”10.
Ao mesmo tempo, haviam criado inúmeros desempregados, milhões de desalojados
por perderem suas casas, milhares de doentes jogados em hospitais com suprimentos
médicos inadequados, como na Grécia. Nenhum deles teve a sorte de constituir um
“risco sistémico”. Como escreveu recentemente o historiador Adam Tooze, “a zona
do euro, por meio de escolhas políticas deliberadas, levou dezenas de milhões
de seus cidadãos às profundezas de uma depressão do estilo dos anos 30. Foi um
dos piores desastres económicos autoinfligidos já registados”11.
Uma linha de arame farpado
O descrédito da classe política e
a reabilitação do poder do Estado inevitavelmente abriram o caminho para um
novo estilo de governo. Quando perguntado em 2010 se estava preocupado em
chegar ao poder em meio à turbulência financeira global, Orbán sorriu: “Não, eu
gosto do caos. Porque eu posso construir uma nova ordem a partir deste caos.
Uma ordem que eu queira”12.
Como Trump, os líderes conservadores da Europa Central foram capazes de
consolidar a legitimidade popular de um Estado forte a serviço dos ricos. Mas,
em vez de garantir direitos sociais para todos, que seriam incompatíveis com as
demandas dos ricos, as autoridades públicas se afirmam fechando as fronteiras
aos migrantes e se declarando garantidores da identidade cultural de cada
nação. Na opinião deles, as linhas de arame farpado ao longo das fronteiras
marcam o retorno do Estado.
Essa estratégia, que utiliza a
demanda popular por proteção do Estado para seus próprios fins, parece estar
funcionando por enquanto. As causas da crise financeira de 2008 não foram
reparadas, enquanto a vida política na Itália, Hungria, Baviera e outros lugares
é assombrada pela questão dos refugiados. Parte da esquerda ocidental, radical
ou moderada, se alimenta das prioridades dos campos universitários dos EUA,
adora desafiar a direita sobre esse assunto e faz isso há 30 anos13.
Os chefes de governo revelaram,
no combate à Grande Recessão, a farsa da democracia, a força do Estado, a base
altamente política da economia e o viés de classe de sua estratégia. Como
resultado, sua posição tornou-se frágil, como mostra a instabilidade eleitoral
que reformulou o cenário político. A maioria das eleições no Ocidente desde
2014 sugeriu que as forças tradicionais estão enfraquecendo ou se desintegrando,
enquanto houve um aumento de figuras e tendências anteriormente marginais, que
agora desafiam as instituições dominantes, e geralmente o fazem de lados
opostos: Trump e Bernie Sanders repreendem globalização e mídia. O mesmo
acontece na Europa, onde novas figuras à direita julgam o projeto europeu muito
liberal em questões sociais e de imigração, enquanto novas vozes à esquerda,
como o Podemos na Espanha, A França Insubmissa e o líder do Partido Trabalhista
do Reino Unido, Jeremy Corbyn, criticam suas políticas de austeridade.
Uma política de inimigos
No entanto, os “homens fortes”
podem contar com o apoio de parte da classe dominante, porque o objetivo deles
não é pôr fim ao jogo, apenas mudar os jogadores. Orbán explicou as coisas
durante um discurso significativo na Romênia, em julho de 2014: “O novo Estado
que estamos construindo na Hungria é um estado iliberal, um estado não
liberal.” Ao contrário do que a grande mídia costuma relatar, o objetivo de
Orbán não é simplesmente substituir o multiculturalismo e a sociedade aberta
pela promoção dos valores da família cristã. Ele também anunciou um plano
económico para tornar “uma nação e uma comunidade internacionalmente
competitivas na grande corrida global pelas próximas décadas”. Na sua opinião,
para fazer isso, “uma democracia não precisa necessariamente ser liberal. O
fato de um Estado não ser liberal não o impede de ser uma democracia”. Tomando
a China, a Turquia e Singapura como seus supostos modelos, Orbán reformulou o
slogan de Margaret Thatcher “Não há alternativa”, na medida em que “as
sociedades que são construídas com base no princípio de organização da
democracia liberal da organização estatal provavelmente serão incapazes de
manter sua competitividade global nas próximas décadas14”.
Este projeto apela aos líderes polacos e checos e aos partidos de extrema
direita na França e na Alemanha.
Os pensadores liberais,
confrontados com o sucesso de seus concorrentes, perderam parte de sua
arrogância e brilho. “Essa contra-revolução é impulsionada pela polarização da
política doméstica, com uma política de inimigos substituindo uma política de
compromisso”, escreve Michael Ignatieff, reitor da Universidade da Europa
Central em Budapeste, criada pelo bilionário neoliberal George Soros. “A
contra-revolução também ataca a revolução liberal e os ganhos obtidos pelas
minorias. É claro que o breve momento de domínio da sociedade aberta depois de
1989 terminou agora15”.
Para Ignatieff, líderes autoritários que atacam o estado de direito, a
separação de poderes, a liberdade de mídia privada e os direitos das minorias
estão atacando os pilares da democracia.
The Economist, a revista semanal
publicada no Reino Unido pelas elites neoliberais globais, compartilha dessa
opinião. Em junho de 2018, alertou para a “deterioração alarmante [da democracia]
desde a crise financeira de 2007-08”, mas não atribuiu isso a enormes
desigualdades de riqueza, ou à destruição de empregos industriais pelo livre
comércio, ou à desconsideração dos desejos dos eleitores pelos líderes
“democráticos”. Em vez disso, castigou “os homens fortes [que] subvertem a
democracia”. E alegou que “juízes independentes e jornalistas barulhentos são a
primeira linha de defesa da democracia”. É uma linha muito fina e frágil…
As classes dominantes
aproveitaram-se por muito tempo do sistema eleitoral por causa de fatores
convergentes: queda na taxa de participação da classe trabalhadora, voto tático
causado pelo desgosto por “extremistas” e reivindicações dos partidos
centristas de representar os interesses de ambos – classes superiores e médias.
Mas os demagogos reacionários agora estão mobilizando os que antes se
abstinham, a Grande Recessão tornou a vida mais difícil para a classe média e
as decisões políticas dos “moderados” e do seu círculo de conselheiros
inteligentes causaram, na verdade, a crise financeira do século.
A amargura dos defensores da
“sociedade aberta” é agravada pelo desencanto com a utopia prometida pelas
novas tecnologias. A classe dominante Vale do Silício, ligada ao Partido
Democrata e até recentemente celebrada como os profeta de uma civilização
liberal-libertária, construiu uma máquina de vigilância e controle social tão
poderosa que o governo chinês a está copiando. A esperança de uma ágora global
alimentada por conectividade para todos está em colapso. A tal ponto que alguns
dos que antes confiavam no credo estão muito descontentes: “A tecnologia,
através das manipulações que permite, através de notícias falsas, mas ainda
mais porque transmite emoção ao invés de razão, fortalece ainda mais os cínicos
e os ditadores’ ‘, protestou um colunista16.
Neste ano, o trigésimo
aniversário da queda do Muro de Berlim provavelmente será uma celebração um tanto
sombria para os defensores do “mundo livre”. Fukuyama reconheceu o seguinte:
“Muito da virada à democracia liberal nos primeiros dias, após a queda do Muro
de Berlim, na verdade foi impulsionada por um tipo de elite educada e muito
pró-ocidental.” Mas os menos instruídos “não compraram de fato o liberalismo, a
idéia de que você poderia realmente ter uma sociedade multirracial e
multiétnica, onde todos esses valores comunais tradicionais teriam que dar
lugar ao casamento gay, aos imigrantes e todas essas coisas”17.
Quem Fukuyama culpa por essa falha em responder ao treinamento da minoria
esclarecida? Os jovens indolentes da classe média, que, ele teme, “contentam-se
em sentar em casa e se felicitar por sua mente aberta e sua ausência de
fanatismo … Eles só se mobilizam contra o inimigo sentando-se no terraço de um
café com um mojito em suas mãos”18.
Não se pode mudar o quadro
Isso não será suficiente e nem
inundará a mídia ou as redes sociais com comentários indignados, para o
benefício de amigos igualmente indignados com coisas semelhantes. Obama sabe
disso, e, em 17 de julho, na África do Sul, fez um discurso com uma análise detalhada,
talvez das mais lúcidas das últimas décadas. Mas ele não pôde deixar de assumir
a ideia fixa da esquerda neoliberal desde que adotou o modelo capitalista – uma
ideia assim resumida pelo ex-primeiro-ministro italiano de centro-esquerda
Paolo Gentiloni, quando a leu para Trump em janeiro de 2018 em Davos: “Você
pode corrigir o quadro, mas você não pode alterá-lo”.
Obama admitiu que houve erros e
ganância na globalização, o que enfraqueceu o poder dos sindicatos: Tornou-se
mais fácil para o capital evitar as leis tributárias e os regulamentos dos
estados-nações; ele [capital] pode simplesmente mover bilhões, trilhões de
dólares com o toque de uma tecla de computador. Sua única resposta para um
desafio tão assustador foi o “capitalismo inclusivo”, iluminado pela moralidade
humanista dos capitalistas.
Obama não negou que a crise de
2008 e as más respostas a ela, presumivelmente incluindo a sua, encorajaram a
disseminação de “uma política de medo e ressentimento e contenção”, “política
de homens fortes” e a popularidade do que ele chamou de “modelo de controle
autoritário da China combinado com capitalismo mercantilista, como
preferível à bagunça da democracia”. Mas ele atribuiu a responsabilidade
principal por esses distúrbios aos populistas, que haviam se apoderado de
inseguranças e ameaçado o mundo com um retorno a uma mais velha, mais perigosa
e mais brutal maneira de fazer negócios”. Essa atribuição livrou a barra das
elites sociais e intelectuais, próximas a Obama, que criaram as condições da
crise e frequentemente se beneficiaram dela.
Tais análises têm muitas
vantagens para os grupos que as fazem. Invocar a ameaça da ditadura faz as
pessoas acreditarem que a democracia atualmente prevalece, mesmo que precise de
alguns ajustes. Mais fundamentalmente, a ideia de Obama (e a idêntica de
Macron) de que “duas visões muito diferentes do futuro da humanidade competem
pelos corações e mentes dos cidadãos de todo o mundo” torna possível encobrir o
que essas visões têm em comum, que é a modo de produção e propriedade, ou, para
usar as próprias palavras de Obama, “a influência económica desproporcional
daqueles que estão no topo”. Segundo este critério, não há nada que distingua
Macron de Trump, como demonstrado pelo desejo comum de reduzir os impostos
sobre as receitas de investimentos após a posse.
A insistência em reduzir a vida
política em um futuro próximo aos confrontos entre “democracia” e “populismo”;
“abertura” e “nacionalismo”, não trará alívio para a parte crescente da classe
trabalhadora que está desiludida com uma democracia que a abandonou e uma
esquerda que, em todos os lugares, se transformou no partido político da classe
média educada. Dez anos após a crise financeira, qualquer luta bem-sucedida
contra uma “maneira brutal de fazer negócios” exige algo diferente. Para
começar, precisa que se desenvolva uma força política capaz de combater
simultaneamente os “tecnocratas esclarecidos” e os “bilionários ressentidos19”,
para que não desempenhe um papel de apoio a nenhum dos blocos atuais, que, em
seus caminhos separados, são um perigo para a humanidade.
Notas:
1 Francis
Fukuyama, ‘Retour sur “La Fin de l’histoire?”, Commentaire, nº 161,
Paris, primavera de 2018.
2 William
Galston, ‘Wage
stagnation is everyone’s problem’, The Wall Street Journal, NovaYork,
14/8/2018. Sobre a destruição de postos de trabalho, veja, de Daron Acemoğlu et
al, ‘Import competition and the
great US employment sag of the 2000s’, Journal of Labor Economics, vol
34, no S1, Chicago, Janeiro de 2016.
3 Bob
Davis e Dante Chinni, ‘America’s
factory towns, once solidly blue, are now a GOP haven’, e Bob Davis e Jon
Hilsenrath, ‘How
the China shock, deep and swift, spurred the rise of Trump’, The Wall
Street Journal, 19/7/2018 e 11/8/2016.
4 Citado
em Adam Tooze, Crashed: How a Decade of Financial Crises Changed the
World, Penguin, Nova York, 2018.
5 John
Lanchester, ‘After the
fall’, London Review of Books, vol 40, nº13, 5/7/ 2018.
6 Jack
Dion, ‘Les
marchés contre les peuples’, Marianne, Paris, 1º/6/2018.
7 Yanis
Varoufakis, Adults in the Room: My Battle With Europe’s Deep
Establishment, Bodley Head, Londres, 2017.
8 Pierre
Moscovici, Dans ce clair-obscur surgissent les monstres: Choses vues au cœur
du pouvoir, Plon, Paris, 2018.
9 Ver,
de Frédéric Lordon, ‘Welcome to the
USA’, Le Monde Diplomatique, edição em inglês, Outurbo de 2008.
10 Jean-Claude
Trichet: “Nous
sommes encore dans une situation dangereuse”, Le Monde, 14/9/2013.
11 Adam
Tooze, Crashed, op cit.
12 Drew
Hinshaw e Marcus Walker, ‘In
Orban’s Hungary, a glimpse of Europe’s demise’, The Wall Street
Journal, 9/8/2018.
13 Ver,
de Pierre Bourdieu e Loïc Wacquant, ‘La nouvelle
vulgate planétaire’, Le Monde diplomatique, Maio de 2000.
14 “Prime
minister Viktor Orbá’s epeech at th 25th Bályányos Summer Free University
andtudents Camp”, 30/7/2014, 2010-2015.miniszterelnok.hu/.
15 Michael
Ignatieff and Stefan Roch (eds),Rethinking Open Society: New Adversaries and
New Opportunities, CEU Press, Budapest, 2018.
16 Eric
Le Boucher, ‘Le
salut par l’éthique, la démocratie, l’Europe’, L’Opinion, Paris,
9/7/2018.
17 Citado
in Michael Steinberger, ‘George
Soros bet big on liberal democracy. Now he fears he is losing’, The
New York Times Magazine, 17/7/2018.
18 “Francis
Fukuyama: ‘Il
y a un risque de défaite de la démocratie’” Le Figaro Magazine, Paris,
6/4/2018.
19 Thomas
Frank, ‘Four
more years’, Harper’s Magazine, Abril 2018.
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1 comentário:
Bolsonaro ganhou com mais de 57 milhões de votos, porque não vendeu a sua alma como fez Lula, Dilma e FHC, entre outros bandidos que saquearam o Brasil.
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