Ninguém externo ao caso pode
afirmar com seriedade o que aconteceu ao Luís Giovani e talvez nunca se chegue
a saber a verdade. O que importa é compreender porque é que, nas nossas cabeças
de pessoas racializadas, ouvimos “jovem negro agredido com paus e ferros” e não
podemos deixar de pensar na hipótese do ódio racial.
Luísa Semedo | Público | opinião
Eram brancos os que por ódio
racial, ao longo dos anos, me agrediram física e verbalmente na escola e na
rua. Eram brancos os que escreveram nas paredes do recreio do nosso liceu
“Raça”, “Nação” e “Pretos fora de Portugal” e os que deixaram aquela propaganda
racista tempo demais exposta. Eram brancos os membros do KKK que vi na
televisão, quando era criança, e entendi que para além de insultados e
brutalizados também éramos assassinados em outras partes do mundo. Razão pela
qual guardo, até hoje, uma fobia real de máscaras.
Pouco tempo depois compreendi
que, durante séculos, brancos escravizaram, torturaram e mataram negros e
violaram inúmeras mulheres negras e “mulatas”. Não me esqueço do meu primeiro
contacto com um olhar erotizado de adulto sobre o meu corpo ainda infantil, o
de um familiar por aliança, branco, que me disse “cabritinhas como tu eram
muito apreciadas quando estava na guerra”. O mesmo que gostava de dizer “o meu
amigo... é preto, mas não é como os outros que merecem um tiro na cabeça”.
A brutalidade racista continua ainda hoje com a violência policial e os ataques
terroristas da extrema-direita.
No imaginário coletivo, os corpos
negros são mais resistentes, inclusive ao terror que constitui o racismo, mas é
falso. O corpo negro sente, chora e tem medo da mesma forma. Racismo é
terrorismo e traumatismo. Da mesma forma que não temos o privilégio de olhar
para um “pai extremoso” tatuado na TV e não entender de imediato que estamos
perante um neonazi, também não temos o privilégio de ouvir a
história de um rapaz cabo-verdiano que teria sido espancado por um
grupo de pessoas com ferros, paus e cintos e não pensar na hipótese de um crime
racista. É natural, a isto se chama ter uma experiência traumática. Esta imagem
de linchamento convoca de imediato imagens que estão gravadas a ferro quente no
nosso ser, que povoaram os nossos pesadelos enquanto crianças e adultos.
Ninguém externo ao caso pode
afirmar com seriedade o
que aconteceu ao Luís Giovani e talvez nunca se chegue a saber a
verdade. A motivação racial pode estar tanto na origem do ato como na
intensidade do golpe desferido. O Giovani já cá não está para contar. Os
agressores dirão aquilo que lhes apetecer. E os agressores até podem ser
negros, não é isso que importa. O que importa é compreender porque é que, nas
nossas cabeças de pessoas racializadas, ouvimos “jovem negro agredido com paus
e ferros” e não podemos deixar de pensar na hipótese do ódio racial. A resposta
está no nosso traumatismo individual e coletivo. Esse trauma tem um nome,
chama-se racismo.
Habituámo-nos a silenciar estas
vivências porque conhecemos bem demais a insuportável reação que consiste em
descredibilizar as nossas vozes, em acusarem-nos de vitimização e
até de racismo e identitarismo. Os identitários são os que defendem a
superioridade racial, os que consideram que não pertencemos à mesma esfera da
humanidade, que nos agridem por sermos como somos, sem qualquer outro motivo.
Sem qualquer outro motivo! Comparar a luta pela Igualdade à luta pela
desigualdade, a luta antirracista a neonazismo é um insulto, e é um insulto
racista. O sistema de hierarquização de pessoas é extremamente resiliente e toma
sempre novas formas. Estas vergonhosas equivalências ou inversões da realidade,
operadas até por autoproclamados “aliados”, para preservar privilégios e calar
vozes é só mais uma dessas formas.
Compreende-se que possa ser
irritante para uma pessoa branca ouvir falar de racismo, pois sente-se de
repente incluída numa estranha categoria, ainda por cima sem provas neste caso.
É injusto, é desesperante... É o que as pessoas racializadas vivem há
tanto tempo. Sabemos que não é agradável. “Não somos todos uns criminosos
racistas!”, dizem-nos. Claro que não! E é por disso termos consciência que,
apesar de tudo o que foi perpetrado até hoje ao longo dos séculos, não andamos
por aí organizados em milícias de tatuagens, máscaras e armas na mão à “caça ao
branco” por vingança e ainda menos por nos considerarmos superiores.
Temos o privilégio de ter acesso
a uma história múltipla, complexa, profunda do que é ser branco através da
nossa convivência, do acesso à cultura e história das pessoas brancas, e das
nossas lutas conjuntas. Felizmente não nos é imposta uma “história única”, como
nos explica a
escritora Chimamanda Ngozi Adichie, uma história como a que é imposta sobre
os negros que são ou escravos ou gangsters, passivos ou agressivos sem
grande profundidade interior. Razão mais do que necessária para ouvir mais,
conversar mais, ler mais.
Ainda não conseguimos, enquanto
espécie, fazer coincidir o “somos todos seres humanos” biológico com o social.
Vamos continuar a trabalhar juntos para que seja um dia realidade. Entretanto,
queremos justiça para o Giovani.
A autora escreve segundo o novo
Acordo Ortográfico
Imagem: Fernando Pina / Lusa
Leia em Público:
Sem comentários:
Enviar um comentário