quinta-feira, 23 de janeiro de 2020

Davos: meio século de fracassos


Começa mais uma edição do encontro dos donos do mundo. O crescimento dramático da desigualdade, destacado pela Oxfam, demonstra como o projeto que defendem já não serve a ninguém — exceto a si próprios

Paulo Kliass | Outras Palavras

Tem início nessa semana a mais recente reunião das elites empresariais globais. Trata-se da 50ª edição anual do Fórum Económico Mundial (FEM), que se reúne na simbólica cidade de Davos, nos Alpes suíços. Nenhum ambiente poderia ser mais elegante e preservado para os mandatários do financismo internacional e de seus representantes nos governos, nas instituições multilaterais, na imprensa e nas universidades. Um lugar de difícil acesso, incrustrado naquele país que já foi considerado o “paraíso” das instituições bancárias no mundo.

Na verdade, o FEM sempre esteve na vanguarda da crítica a propostas heterodoxas e alternativas para as soluções dos mais graves problemas que afetam o mundo e a maioria de sua população. Basta uma olhada nos principais patrocinadores do evento para termos uma ideia do que se trata. Ali estão representadas as principais corporações gigantes do mundo globalizado. Por exemplo, dentre outras, encontramos na lista: Allianz, IBM, Hitachi, Mitsubishi, Bank of America, Google, Nestle, Barclays, Novartis, Facebook, JP Morgan, Coca Cola, Volkswagen, Tata, Credit Suisse, Unilever, Huawei, HSBC, UBS, Deloitte, VISA, etc, etc, etc. Os dois maiores bancos privados brasileiros são os únicos espécimes do empresariado tupiniquim por ali: Bradesco e Itaú.


O contraponto inescapável foi a criação do Fórum Social Mundial (FSM), que chegou a ganhar força e expressão a partir de seu lançamento em 2001. Seu lema era “um outro mundo é possível”, na busca por se diferenciar em suas proposições com esse pessoal de Davos. No entanto, o FSM pouco a pouco foi perdendo capacidade de agregação e também o espaço nos grandes meios de comunicação. Mas as diferenças entre ambos são evidentes. Enquanto Davos se restringe a reunir a nata do financismo internacional (apenas 3.000 convidados especiais escolhidos a dedo), o FSM chegou a compor 120 mil pessoas do mundo todo em sua edição de 2009, realizada em Belém, capital do Pará.

Os eventos realizados nos Alpes sempre ofereceram todo o suporte político e intelectual necessário para promover uma boa articulação dos interesses desses grandes conglomerados do capital com os representantes dos governos espalhados por todos os continentes. Business, as always. Nos tempos da crítica neoliberal ao chamado “excesso da presença pública na economia”, sempre estiveram ali de plantão, para oferecer toda ajuda necessária. Eram os tempos do Consenso de Washington, da abertura comercial, da desregulamentação, da privatização e da liberalização generalizada. No entanto, nada como um dia após o outro.

Depois de sentidos os efeitos duros da crise económico-financeira de 2008/9, os encontros anuais passaram tranquilamente a oferecer modelos de ajustes com orientação oposta em termos de política económica. Nada como um bom pragmatismo para entregar alguns poucos anéis doutrinários por um momento e preservar no longo prazo a essência do modelo perverso do capitalismo desigual e concentrador.

E de uns tempos para cá, a direção do evento passou a incorporar temas mais “delicados” na pauta de seus encontros anuais. Assim, elementos antes considerados heréticos pouco a pouco entram nos debates. A questão da desigualdade social e económica, a problemática relacionada à sustentabilidade e outros aspectos “sensíveis” entram em discussão. Em 2019, o assunto da “emergência da natureza” lançou aos olhos do mundo a figura da jovem ativista ambiental sueca Greta Thunberg – aquela mesma que depois foi covardemente agredida e desqualificada por Bolsonaro como “pirralha”.

Esse ano o pomposo tema principal do encontro (“Stakeholders for a Cohesive and Sustainable World”) poderia ser traduzido como “Grupos de interesse para um mundo coeso e sustentável”. Uma preocupação sedutora e bastante contemporânea, mas que certamente não revela nenhuma das verdadeiras intenções dos proprietários da riqueza global nos tempos atuais. Afinal, passado meio século de conclaves e encontros da alta cúpula dos mandatários do capitalismo, o sistema só fez aprofundar ainda mais seu grau de exploração, de injustiça e de desigualdades.

Ao longo da semana em Davos deverão ser apresentados estudos e relatos para quase todos os gostos e tendências. No entanto, como o público participante é selecionado com bastante rigor, a grande maioria será composta por defensores do sistema, com alguns ajustes aqui e acolá para evitar exageros e derrapagens. Afinal, se ao conceito de “grupos de interesse” fosse aplicada a acepção mais ampla da grande maioria de trabalhadores e despossuídos do planeta, certamente os caminhos para se obter coesão e sustentabilidade seriam um pouco distintos do padrão considerado aceitável pelas elites planetárias.

Mas pelo menos um dos inúmeros relatórios a serem apresentados deverá destoar no evento. Trata-se de um documento preparado pela Oxfam, uma organização não governamental que se dedica a estudar os fenómenos associados à questão da desigualdade em todo o mundo. A entidade foi chamada pelo FEM a preparar esse material, que se consolidou no texto “Tempo de cuidar”. Para quem ainda não está completamente familiarizado com os horrores que as informações estatísticas revelam sobre o tema, a leitura do relatório é essencial. Já para os que acompanhamos o debate há mais tempo, as informações ali contidas são igualmente fundamentais para divulgar o estado das coisas atualmente em matéria de riscos e ameaças.

As informações divulgadas pela Oxfam, por si só, já seriam suficientes para caracterizar o título desse artigo. Isso porque ao longo dos 50 anos de existência e atuação do chamado “fórum dos ricos” a situação da pobreza e da desigualdade não avançaram um milímetro sequer. Pelo contrário, o quadro de perversidade só foi aprofundado. As elites económicas e políticos do globo fracassaram em seu discursos de encontrar soluções e implementar políticas para esses problemas que afligem a maioria da população do mundo. Vamos a alguns dos números.

Em 2019, os 2.153 bilionários do mundo detinham o equivalente à riqueza de 4,6 bilhões de pessoas. Ora, se a população mundial está estimada em 7,7 bilhões de pessoas, pode-se inferir o grau de concentração de riqueza. Essa elite aqui mencionada representa apenas por volta de 0,00003% das pessoas abocanhando a riqueza de 60% da população total. Escandalosamente vergonhoso! Desnecessário afirmar que esse encontro periódico de bilionários nada fez para enfrentar tal quadro, conhecido e denunciado há décadas, para não dizer séculos.

Outra comparação procura verificar o nível da concentração de riqueza junto ao 1% dos mais ricos do planeta e não apenas aos classificados como bilionários. Assim, ainda que ampliando-se um pouco o conceito dos “muito ricos”, percebe-se que eles detêm o equivalente à riqueza de 6,9 bilhões de habitantes do planeta Terra. A desigualdade é impressionante.

Caso se introduza uma pitada de elementos de género e de raça na análise, o quadro permanece muito grave. O relatório faz outro exercício com as informações disponíveis e chega à conclusão que apenas um punhado de 22 homens mais ricos do globo detêm o equivalente à riqueza de todas as mulheres do continente africano.

O aumento das disparidades entre as regiões mais ricas e mais pobres não significa que as desigualdades no interior dos países capitalistas mais avançados tenham estacionado. Muito pelo contrário, aliás. As contradições entre as remunerações da força de trabalho e as rendas auferidas pelo capital têm aumentado no centro mesmo do capitalismo. Os ajustes promovidos contra os mais pobres para superar a crise da última década só reforçou tal tendência. O documento da Oxfam demonstra que apenas nos países do G7 os salários médios dos trabalhadores cresceram 3% entre 2011 e 2017, ao passo que os dividendos saltaram 31% no mesmo período.

Além disso, boa parte do relatório se dedica a demonstrar as crueldades que envolvem os setores que mais necessitam de maiores cuidados nas sociedades pelo mundo afora, como as mulheres, as crianças e os idosos. As alternativas para minorar os desequilíbrios no oferecimento de alternativas para os cuidados passam pela necessidade emergente de mudanças nas legislações dos países e por um maior investimento em políticas públicas voltadas a saúde, educação e outras de natureza social.

Mas uma das recomendações apresentadas chama a atenção por sua importância e radicalidade. O seu subtítulo não poderia ser mais explícito: “Acabar com a riqueza extrema para erradicar a pobreza extrema”. O texto indica o seguinte:

(…) ”A riqueza extrema é um sinal de fracasso do sistema económico. Os governos devem adotar medidas para reduzir drasticamente o fosso entre os muito ricos e o resto da sociedade e priorizar o bem-estar de todas cidadãs e cidadãos em detrimento de lucros e crescimento insustentáveis, evitando um mundo que atenda apenas alguns poucos privilegiados e relegue milhões de pessoas à pobreza. Os governos devem tomar medidas ousadas e decisivas, tributando a riqueza e rendas elevadas e eliminando brechas e regras tributárias globais inadequadas que permitem que empresas e indivíduos ricos se esquivem de suas responsabilidades fiscais.” (…)

Talvez a renúncia sistemática em abordar essa questão estrutural do sistema em que vivemos tenha sido uma das razões para o fracasso desse meio século de existência do FEM.

Gostou do texto? Contribua para manter e ampliar nosso jornalismo de profundidade: OUTROS QUINHENTOS

Sem comentários:

Mais lidas da semana