Começa mais uma edição do
encontro dos donos do mundo. O crescimento dramático da desigualdade, destacado
pela Oxfam, demonstra como o projeto que defendem já não serve a ninguém —
exceto a si próprios
Paulo Kliass | Outras Palavras
Tem início nessa semana a mais
recente reunião das elites empresariais globais. Trata-se da 50ª
edição anual do Fórum Económico Mundial (FEM), que se reúne na
simbólica cidade de Davos, nos Alpes suíços. Nenhum ambiente poderia ser mais
elegante e preservado para os mandatários do financismo internacional e de seus
representantes nos governos, nas instituições multilaterais, na imprensa e nas
universidades. Um lugar de difícil acesso, incrustrado naquele país que já foi
considerado o “paraíso” das instituições bancárias no mundo.
Na verdade, o FEM sempre esteve
na vanguarda da crítica a propostas heterodoxas e alternativas para as soluções
dos mais graves problemas que afetam o mundo e a maioria de sua população.
Basta uma olhada nos principais patrocinadores do evento para termos uma ideia
do que se trata. Ali estão representadas as principais corporações gigantes do
mundo globalizado. Por exemplo, dentre outras, encontramos na lista: Allianz,
IBM, Hitachi, Mitsubishi, Bank of America, Google, Nestle, Barclays, Novartis,
Facebook, JP Morgan, Coca Cola, Volkswagen, Tata, Credit Suisse, Unilever,
Huawei, HSBC, UBS, Deloitte, VISA, etc, etc, etc. Os dois maiores bancos privados
brasileiros são os únicos espécimes do empresariado tupiniquim por ali:
Bradesco e Itaú.
O contraponto inescapável foi a
criação do Fórum Social Mundial (FSM), que chegou a ganhar força e expressão a
partir de seu lançamento em 2001. Seu lema era “um outro mundo é possível”, na
busca por se diferenciar em suas proposições com esse pessoal de Davos. No
entanto, o FSM pouco a pouco foi perdendo capacidade de agregação e também o
espaço nos grandes meios de comunicação. Mas as diferenças entre ambos são evidentes.
Enquanto Davos se restringe a reunir a nata do financismo internacional (apenas
3.000 convidados especiais escolhidos a dedo), o FSM chegou a compor 120 mil
pessoas do mundo todo em sua edição de 2009, realizada em Belém, capital do
Pará.
Os eventos realizados nos Alpes
sempre ofereceram todo o suporte político e intelectual necessário para
promover uma boa articulação dos interesses desses grandes conglomerados do
capital com os representantes dos governos espalhados por todos os continentes. Business,
as always. Nos tempos da crítica neoliberal ao chamado “excesso da presença
pública na economia”, sempre estiveram ali de plantão, para oferecer toda ajuda
necessária. Eram os tempos do Consenso de Washington, da abertura comercial, da
desregulamentação, da privatização e da liberalização generalizada. No entanto,
nada como um dia após o outro.
Depois de sentidos os efeitos
duros da crise económico-financeira de 2008/9, os encontros anuais passaram
tranquilamente a oferecer modelos de ajustes com orientação oposta em termos de
política económica. Nada como um bom pragmatismo para entregar alguns poucos
anéis doutrinários por um momento e preservar no longo prazo a essência do
modelo perverso do capitalismo desigual e concentrador.
E de uns tempos para cá, a
direção do evento passou a incorporar temas mais “delicados” na pauta de seus
encontros anuais. Assim, elementos antes considerados heréticos pouco a pouco
entram nos debates. A questão da desigualdade social e económica, a
problemática relacionada à sustentabilidade e outros aspectos “sensíveis”
entram em discussão. Em 2019, o assunto da “emergência da natureza” lançou aos
olhos do mundo a figura da jovem ativista ambiental sueca Greta Thunberg –
aquela mesma que depois foi covardemente agredida e desqualificada por
Bolsonaro como “pirralha”.
Esse ano o pomposo tema principal
do encontro (“Stakeholders for a Cohesive and Sustainable World”) poderia ser
traduzido como “Grupos de interesse para um mundo coeso e sustentável”. Uma
preocupação sedutora e bastante contemporânea, mas que certamente não revela
nenhuma das verdadeiras intenções dos proprietários da riqueza global nos
tempos atuais. Afinal, passado meio século de conclaves e encontros da alta
cúpula dos mandatários do capitalismo, o sistema só fez aprofundar ainda mais
seu grau de exploração, de injustiça e de desigualdades.
Ao longo da semana em Davos
deverão ser apresentados estudos e relatos para quase todos os gostos e
tendências. No entanto, como o público participante é selecionado com bastante
rigor, a grande maioria será composta por defensores do sistema, com alguns
ajustes aqui e acolá para evitar exageros e derrapagens. Afinal, se ao conceito
de “grupos de interesse” fosse aplicada a acepção mais ampla da grande maioria
de trabalhadores e despossuídos do planeta, certamente os caminhos para se
obter coesão e sustentabilidade seriam um pouco distintos do padrão considerado
aceitável pelas elites planetárias.
Mas pelo menos um dos inúmeros
relatórios a serem apresentados deverá destoar no evento. Trata-se de um
documento preparado pela Oxfam, uma organização não governamental que se dedica
a estudar os fenómenos associados à questão da desigualdade em todo o mundo. A
entidade foi chamada pelo FEM a preparar esse material, que se consolidou no
texto “Tempo
de cuidar”. Para quem ainda não está completamente familiarizado com os
horrores que as informações estatísticas revelam sobre o tema, a leitura do
relatório é essencial. Já para os que acompanhamos o debate há mais tempo, as
informações ali contidas são igualmente fundamentais para divulgar o estado das
coisas atualmente em matéria de riscos e ameaças.
As informações divulgadas pela
Oxfam, por si só, já seriam suficientes para caracterizar o título desse
artigo. Isso porque ao longo dos 50 anos de existência e atuação do chamado
“fórum dos ricos” a situação da pobreza e da desigualdade não avançaram um
milímetro sequer. Pelo contrário, o quadro de perversidade só foi aprofundado.
As elites económicas e políticos do globo fracassaram em seu discursos de
encontrar soluções e implementar políticas para esses problemas que afligem a
maioria da população do mundo. Vamos a alguns dos números.
Em 2019, os 2.153 bilionários do
mundo detinham o equivalente à riqueza de 4,6 bilhões de pessoas. Ora, se a
população mundial está estimada em 7,7 bilhões de pessoas, pode-se inferir o
grau de concentração de riqueza. Essa elite aqui mencionada representa apenas
por volta de 0,00003% das pessoas abocanhando a riqueza de 60% da população
total. Escandalosamente vergonhoso! Desnecessário afirmar que esse encontro
periódico de bilionários nada fez para enfrentar tal quadro, conhecido e
denunciado há décadas, para não dizer séculos.
Outra comparação procura
verificar o nível da concentração de riqueza junto ao 1% dos mais ricos do
planeta e não apenas aos classificados como bilionários. Assim, ainda que
ampliando-se um pouco o conceito dos “muito ricos”, percebe-se que eles detêm o
equivalente à riqueza de 6,9 bilhões de habitantes do planeta Terra. A
desigualdade é impressionante.
Caso se introduza uma pitada de
elementos de género e de raça na análise, o quadro permanece muito grave. O
relatório faz outro exercício com as informações disponíveis e chega à
conclusão que apenas um punhado de 22 homens mais ricos do globo detêm o
equivalente à riqueza de todas as mulheres do continente africano.
O aumento das disparidades entre
as regiões mais ricas e mais pobres não significa que as desigualdades no
interior dos países capitalistas mais avançados tenham estacionado. Muito pelo
contrário, aliás. As contradições entre as remunerações da força de trabalho e
as rendas auferidas pelo capital têm aumentado no centro mesmo do capitalismo.
Os ajustes promovidos contra os mais pobres para superar a crise da última
década só reforçou tal tendência. O documento da Oxfam demonstra que apenas nos
países do G7 os salários médios dos trabalhadores cresceram 3% entre 2011 e
2017, ao passo que os dividendos saltaram 31% no mesmo período.
Além disso, boa parte do
relatório se dedica a demonstrar as crueldades que envolvem os setores que mais
necessitam de maiores cuidados nas sociedades pelo mundo afora, como as
mulheres, as crianças e os idosos. As alternativas para minorar os
desequilíbrios no oferecimento de alternativas para os cuidados passam pela
necessidade emergente de mudanças nas legislações dos países e por um maior
investimento em políticas públicas voltadas a saúde, educação e outras de
natureza social.
Mas uma das recomendações
apresentadas chama a atenção por sua importância e radicalidade. O seu
subtítulo não poderia ser mais explícito: “Acabar com a riqueza extrema para
erradicar a pobreza extrema”. O texto indica o seguinte:
(…) ”A riqueza extrema é um sinal
de fracasso do sistema económico. Os governos devem adotar medidas para reduzir
drasticamente o fosso entre os muito ricos e o resto da sociedade e priorizar o
bem-estar de todas cidadãs e cidadãos em detrimento de lucros e crescimento
insustentáveis, evitando um mundo que atenda apenas alguns poucos privilegiados
e relegue milhões de pessoas à pobreza. Os governos devem tomar medidas ousadas
e decisivas, tributando a riqueza e rendas elevadas e eliminando brechas e
regras tributárias globais inadequadas que permitem que empresas e indivíduos
ricos se esquivem de suas responsabilidades fiscais.” (…)
Talvez a renúncia sistemática em
abordar essa questão estrutural do sistema em que vivemos tenha sido uma das
razões para o fracasso desse meio século de existência do FEM.
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