sábado, 7 de março de 2020

Portugal | NA QUINTA DA PARVOÍCE


Manuel Carvalho Da Silva | Jornal de Notícias | opinião

No início da manhã do dia 27 de fevereiro, na Quinta da Parvoíce, em Setúbal, o Instituto da Habitação e Reabilitação Urbana (IHRU), não esperando pela decisão do tribunal sobre uma providência cautelar requerida por seis moradores, e denotando uma atitude que moralmente em nada abona em seu favor, desencadeou uma ação de demolição de casas ainda em construção.

Outras casas ali existentes e já habitadas teriam tido igual destino - conforme editais anteriormente afixados nas suas portas - não fosse a solidariedade de várias pessoas e instituições. Entidades públicas e algumas forças políticas ficaram silenciosas, mesmo depois da Comunicação Social nos ter mostrado o drama. E a Justiça não foi capaz de dar, em tempo útil, uma resposta a uma providência cautelar.

Os habitantes daquele espaço são famílias pobres, imigrantes em geral vindos de países lusófonos, com trabalhos de baixa qualificação na construção civil, em atividades sazonais e em serviços de limpeza, em particular em unidades de turismo de Troia. Porque não dispõem de rendimentos para pagarem rendas, deitaram mão dos seus parcos recursos económicos, do seu próprio trabalho e de forte solidariedade de vizinhos e amigos - como fizeram tantos emigrantes portugueses no passado - e foram construindo as suas modestas casas naqueles terrenos que são reserva florestal e ecológica.

O processo de construção arrastou-se no tempo, não foi uma empreitada de uma noite ou de uma semana. Se tivesse havido mais atenção por parte dos poderes locais e vontade política das instituições competentes, teria sido possível uma intervenção preventiva a evitar que a construção clandestina prosseguisse. É claro que tal atitude obrigaria à procura de soluções dignas e isso dá trabalho e instabiliza as rotinas do poder.

O IHRU, que certamente não desconhecia a situação - ainda no verão passado se registou naquela zona um grande incêndio - optou por ir empurrando o problema com a barriga em vez de partir para uma resposta de realojamento com rendas sociais adequadas. Que soluções acabarão por arranjar, agora que foram impelidos a agir? Naquela mesma Quinta existe outro aglomerado de cerca de 50 habitações, precárias e habitadas, em terreno que fora do IHRU e se encontra sob tutela da Câmara, problema que também precisa de ser resolvido.

A situação da habitação em Portugal - que em 2018 apenas dispunha de 2% do stock total da habitação como habitação pública - tende a tornar-se explosiva. Os sensos de 2021 deverão dizer-nos onde e como se encontram hoje os portugueses a viver. O boom do turismo está a provocar fortíssimo agravamento do custo da habitação nos grandes centros urbanos e em periferias cada vez mais amplas. Esse facto, os efeitos das políticas de austeridade e a persistência dos baixos salários estão a privar, não só os pobres, mas também as classes médias populares e trabalhadoras, de acesso a uma habitação digna.

O Estado não pode deixar de socorrer as famílias mais pobres e vulneráveis e não o está a fazer. A consequência disso e da pobreza de quem trabalha é depararmo-nos com uma cada vez maior "fila" das famílias empobrecidas, incapazes de suportar os encargos que têm com a sua habitação. É a partir destas desgraças que o populismo e os políticos retrógrados se alimentam.

*Investigador e professor universitário

Sem comentários:

Mais lidas da semana