terça-feira, 28 de abril de 2020

A PRIVACIDADE ESTÁ EM RISCO?!


AbrilAbril | editorial

Comprometida a privacidade num dado momento através da geolocalização, ela ficará para sempre devassada, com consequências absolutamente imprevisíveis, quer na sua extensão, quer na gravidade.

Os dados de geolocalização são pessoais, porque permitem a identificação de uma pessoa singular e são tratados numa rede de comunicações electrónicas ou no âmbito de um serviço de comunicações electrónicas que indiquem a posição geográfica do equipamento do utilizador, constituindo uma operação de tratamento de dados pessoais (artigo 4.º, alíneas 1) e 2) do Regulamento Geral de Proteção de Dados).

Actualmente existem vários tipos de infra-estruturas que ofertam serviços de geolocalização, nomeadamente GPS, estações de base GSM, Wi-Fi e bluetooth.

Note-se que até os telemóveis mais antigos permitem a geolocalização, através do sinal captado pelas torres ou postos que comportam as estações de base GSM, ainda que com menor rigor. Por exemplo, qualquer pessoa, desde que tenha o telemóvel ligado, mesmo que não realize qualquer chamada telefónica ou receba ou envie um SMS, é objecto de monitorização através de geolocalização, activando as diversas estações existentes numa cidade, conforme for circulando e, muito embora não permita a identificação métrica rigorosa, é possível saber que o telemóvel passou pelas zonas geográficas onde se encontravam as tais estações.

Importa ter presente que, actualmente, os tratamentos de dados pessoais com recurso a dispositivos de geolocalização têm lugar mais comummente no contexto das relações laborais, mas acoplados a veículos automóveis, com a finalidade de gestão de frotas em serviço externo, protecção de pessoas e bens, nomeadamente no transporte de matérias perigosas ou valiosas. Porém, ainda assim, o artigo 20.º, n.º 1 do Código do Trabalho e também a Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas vedam a utilização dos dados pessoais recolhidos para a finalidade do controlo do desempenho da actividade profissional do trabalhador, constituindo a violação uma contra-ordenação muito grave, sem prejuízo de outras sanções aplicadas por violação de outras normas, no contexto contra-ordenacional.


Entretanto, na sequência do surto epidémico, alguns responsáveis europeus têm suscitado a medida de as operadoras móveis cederem aos estados os dados de identificação e de localização das pessoas singulares.

Trata-se de uma pretensamente ingénua proposta, que se destina a controlar se os cidadãos se encontram a cumprir as medidas de confinamento domiciliário ou não, com a finalidade de combater o surto epidémico e defender a saúde pública.

A Polónia foi o primeiro país europeu a usar uma aplicação, criada por uma empresa privada, com o objectivo acima referenciado. Por outro lado, duas das maiores multinacionais especializadas na área da tecnologia, Apple e Google, já estão a encetar negociações com o propósito de assegurar uma aplicação suscetível de ser descarregada em qualquer telemóvel smartphone, a fim de apurar se o utilizador esteve ou não, em contacto com algum cidadão que padeça da doença Covid-19.

Aliás, num comunicado de 10 de Abril, a multinacional Apple esclareceu que a aplicação se baseará na especificação de rede sem fio, vulgarmente conhecida por bluetooth, cujo funcionamento assentará no facto de notificar a autoridade pública de saúde, através da aplicação, caso alguma pessoa teste positivo para Covid-19, cabendo-lhe informar as pessoas que estiveram contacto com essa pessoa nos últimos 14 dias.

Com este pano de fundo, importa ter presente que os telemóveis mais recentes, designados por smartphones, já dotados de GPS, Wi-Fi e bluetooth, facultam a obtenção de um vasto conjunto de dados relativos à pessoa singular, que permitem, conforme a finalidade do tratamento, a elaboração de perfis comportamentais, como o rastreamento das movimentações realizadas, viabilizando a identificação de hábitos de vida, pelos percursos efectuados, pelos locais frequentados ou os tempos de permanência, constituindo um tratamento intrusivo ou impactando na privacidade e nas mais elementares liberdades individuais. E isto porque, através dos hábitos de vida, obtém-se informação relativa às convicções religiosas ou filosóficas, a origem racial ou a orientação política e ideológica ou até a filiação sindical, que constituem dados pessoais especiais e cujo tratamento é genericamente proibido, desde logo pelo n.º 3 do artigo 35.º da Constituição da República, como também pelo n.º 1 do artigo 9.º do Regulamento Geral de Protecção de Dados.

Apesar de o Decreto do Presidente da República n.º 17-A/2020 ter restringido o direito fundamental à protecção de dados, vertido no artigo 35.º da Constituição da República – pioneira no mundo, ao elevar a protecção de dados a direito fundamental, logo na versão originária de 1976 –, a sua limitação circunscreveu-se às autoridades públicas poderem determinar que os operadores de telecomunicações enviem aos seus clientes SMS com alertas da Direcção-Geral da Saúde ou outras relacionadas com o combate à epidemia.

Como tal, atendendo ao artigo 35.º da Lei Fundamental, como também ao insuspeito Regulamento Geral de Protecção de Dados, assim como à Lei n.º 58/2019, de 8 de Agosto, estes não admitem que as operadoras móveis licenciadas para operar em território português comuniquem ao Estado ou a entidade privada, seja para que finalidade for, os dados de identificação e de geolocalização. Aliás, se o Decreto que determinou o estado de emergência não o fixou, menos fora desse contexto se compatibiliza tal hipotético tratamento de dados pessoais com a Constituição e com os diplomas europeus e nacionais. A própria Lei Fundamental, no seu n.º 4 do artigo 34.º, estabelece a proibição de ingerência das autoridades públicas na correspondência, nas telecomunicações e nos demais meios de comunicação, salvos os casos previstos na lei em matéria de processo criminal.

Comprometida a privacidade num dado momento, ela ficará para sempre devassada, com consequências absolutamente imprevisíveis, quer na sua extensão, quer na gravidade. Como tal, a geolocalização pode constituir um instrumento de dominação individual, exercido num prisma colectivo, absolutamente intrusivo da reserva da vida privada, admitindo a obtenção de informação que poderá colocar em crise, o exercício de outros direitos fundamentais, como a liberdade de culto e de religião, o direito ao trabalho e o direito à liberdade de iniciativa económica, entre muitos outros.

Neste quadro, vai-se projectando hoje na sociedade o pensamento utilitarista que advoga a substituição da concepção do Estado de Direito democrático-constitucional pela do Estado sanitário, com laivos de policial, em que, no combate ao surto epidémico, todos os fins justificam os meios. Uma situação incompatível com o valor da dignidade da vida humana e também com a reserva da vida privada, entre outros bens constitucionalmente protegidos, assim como com a ordem fundamental de valores existente. É precisamente em contextos de ameaça aos direitos fundamentais constitucionalmente consagrados que a sua defesa se impõe como garante da democracia e dos pilares do Estado de Direito.

Imagem: A legislação portuguesa não admite que as operadoras móveis licenciadas para operar em território nacional comuniquem ao Estado ou a entidade privada os dados de identificação e de geolocalização | Créditos/ Euronews

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