AbrilAbril | editorial
Comprometida a privacidade num
dado momento através da geolocalização, ela ficará para sempre devassada, com
consequências absolutamente imprevisíveis, quer na sua extensão, quer na
gravidade.
Os dados de geolocalização são
pessoais, porque permitem a identificação de uma pessoa singular e são tratados
numa rede de comunicações electrónicas ou no âmbito de um serviço de
comunicações electrónicas que indiquem a posição geográfica do equipamento do
utilizador, constituindo uma operação de tratamento de dados pessoais (artigo
4.º, alíneas 1) e 2) do Regulamento Geral de Proteção de Dados).
Actualmente existem vários tipos
de infra-estruturas que ofertam serviços de geolocalização, nomeadamente GPS,
estações de base GSM, Wi-Fi e bluetooth.
Note-se que até os telemóveis
mais antigos permitem a geolocalização, através do sinal captado pelas torres
ou postos que comportam as estações de base GSM, ainda que com menor rigor. Por
exemplo, qualquer pessoa, desde que tenha o telemóvel ligado, mesmo que não
realize qualquer chamada telefónica ou receba ou envie um SMS, é objecto de
monitorização através de geolocalização, activando as diversas estações
existentes numa cidade, conforme for circulando e, muito embora não permita a
identificação métrica rigorosa, é possível saber que o telemóvel passou pelas zonas
geográficas onde se encontravam as tais estações.
Importa ter presente que,
actualmente, os tratamentos de dados pessoais com recurso a dispositivos de
geolocalização têm lugar mais comummente no contexto das relações laborais, mas
acoplados a veículos automóveis, com a finalidade de gestão de frotas em serviço
externo, protecção de pessoas e bens, nomeadamente no transporte de matérias
perigosas ou valiosas. Porém, ainda assim, o artigo 20.º, n.º 1 do Código do
Trabalho e também a Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas vedam a
utilização dos dados pessoais recolhidos para a finalidade do controlo do
desempenho da actividade profissional do trabalhador, constituindo a violação
uma contra-ordenação muito grave, sem prejuízo de outras sanções aplicadas por
violação de outras normas, no contexto contra-ordenacional.
Entretanto, na sequência do surto
epidémico, alguns responsáveis europeus têm suscitado a medida de as operadoras
móveis cederem aos estados os dados de identificação e de localização das
pessoas singulares.
Trata-se de uma pretensamente
ingénua proposta, que se destina a controlar se os cidadãos se encontram a
cumprir as medidas de confinamento domiciliário ou não, com a finalidade de
combater o surto epidémico e defender a saúde pública.
A Polónia foi o primeiro país
europeu a usar uma aplicação, criada por uma empresa privada, com o objectivo
acima referenciado. Por outro lado, duas das maiores multinacionais
especializadas na área da tecnologia, Apple e Google, já estão a encetar
negociações com o propósito de assegurar uma aplicação suscetível de ser
descarregada em qualquer telemóvel smartphone, a fim de apurar se o utilizador
esteve ou não, em contacto com algum cidadão que padeça da doença Covid-19.
Aliás, num comunicado de 10 de
Abril, a multinacional Apple esclareceu que a aplicação se baseará na
especificação de rede sem fio, vulgarmente conhecida por bluetooth, cujo
funcionamento assentará no facto de notificar a autoridade pública de saúde,
através da aplicação, caso alguma pessoa teste positivo para Covid-19,
cabendo-lhe informar as pessoas que estiveram contacto com essa pessoa nos
últimos 14 dias.
Com este pano de fundo, importa
ter presente que os telemóveis mais recentes, designados por smartphones, já
dotados de GPS, Wi-Fi e bluetooth, facultam a obtenção de um vasto conjunto de
dados relativos à pessoa singular, que permitem, conforme a finalidade do
tratamento, a elaboração de perfis comportamentais, como o rastreamento das
movimentações realizadas, viabilizando a identificação de hábitos de vida,
pelos percursos efectuados, pelos locais frequentados ou os tempos de
permanência, constituindo um tratamento intrusivo ou impactando na privacidade
e nas mais elementares liberdades individuais. E isto porque, através dos
hábitos de vida, obtém-se informação relativa às convicções religiosas ou
filosóficas, a origem racial ou a orientação política e ideológica ou até a
filiação sindical, que constituem dados pessoais especiais e cujo tratamento é
genericamente proibido, desde logo pelo n.º 3 do artigo 35.º da Constituição da
República, como também pelo n.º 1 do artigo 9.º do Regulamento Geral de Protecção
de Dados.
Apesar de o Decreto do Presidente
da República n.º 17-A/2020 ter restringido o direito fundamental à protecção de
dados, vertido no artigo 35.º da Constituição da República – pioneira no mundo,
ao elevar a protecção de dados a direito fundamental, logo na versão originária
de 1976 –, a sua limitação circunscreveu-se às autoridades públicas poderem
determinar que os operadores de telecomunicações enviem aos seus clientes SMS
com alertas da Direcção-Geral da Saúde ou outras relacionadas com o combate à
epidemia.
Como tal, atendendo ao artigo
35.º da Lei Fundamental, como também ao insuspeito Regulamento Geral de
Protecção de Dados, assim como à Lei n.º 58/2019, de 8 de Agosto, estes não
admitem que as operadoras móveis licenciadas para operar em território
português comuniquem ao Estado ou a entidade privada, seja para que finalidade
for, os dados de identificação e de geolocalização. Aliás, se o Decreto que
determinou o estado de emergência não o fixou, menos fora desse contexto se
compatibiliza tal hipotético tratamento de dados pessoais com a Constituição e
com os diplomas europeus e nacionais. A própria Lei Fundamental, no seu n.º 4
do artigo 34.º, estabelece a proibição de ingerência das autoridades públicas
na correspondência, nas telecomunicações e nos demais meios de comunicação,
salvos os casos previstos na lei em matéria de processo criminal.
Comprometida a privacidade num
dado momento, ela ficará para sempre devassada, com consequências absolutamente
imprevisíveis, quer na sua extensão, quer na gravidade. Como tal, a
geolocalização pode constituir um instrumento de dominação individual, exercido
num prisma colectivo, absolutamente intrusivo da reserva da vida privada,
admitindo a obtenção de informação que poderá colocar em crise, o exercício de
outros direitos fundamentais, como a liberdade de culto e de religião, o
direito ao trabalho e o direito à liberdade de iniciativa económica, entre
muitos outros.
Neste quadro, vai-se projectando
hoje na sociedade o pensamento utilitarista que advoga a substituição da
concepção do Estado de Direito democrático-constitucional pela do Estado
sanitário, com laivos de policial, em que, no combate ao surto epidémico, todos
os fins justificam os meios. Uma situação incompatível com o valor da dignidade
da vida humana e também com a reserva da vida privada, entre outros bens
constitucionalmente protegidos, assim como com a ordem fundamental de valores
existente. É precisamente em contextos de ameaça aos direitos fundamentais
constitucionalmente consagrados que a sua defesa se impõe como garante da
democracia e dos pilares do Estado de Direito.
Imagem: A legislação portuguesa não admite que as operadoras móveis licenciadas para
operar em território nacional comuniquem ao Estado ou a entidade privada os dados
de identificação e de geolocalização | Créditos/ Euronews
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