Ela avançou porque capital
financeiro tirou a máscara: bancos e corporações já aceitam aliar-se com os
Trump e Bolsonaro. Mas a crise económica mostra que este arranjo é frágil e
abre brechas para a construção de alternativas inovadoras
Noam Chomsky, em entrevista a Amy
Goodman, no Democracy Now! | Tradução por Simone Paz e Gabriela
Leite
Dissidente político, linguista e
autor de renome mundial. Professor laureado no Departamento de Linguística da
Universidade do Arizona e professor emérito do Instituto de Tecnologia de
Massachusetts, onde lecionou por mais de 50 anos. Na entrevista a seguir,
responde aos cortes de Trump no financiamento à Organização Mundial da Saúde,
fala sobre o aumento recorde das mortes nos Estados Unidos, e discute as
condições em Gaza, a ascensão do autoritarismo no mundo todo e a resposta dos
progressistas. “Esse é o típico comportamento dos autocratas e ditadores.
Quando você comete erros colossais, que acabam matando milhares de pessoas, é
preciso encontrar alguém para botar a culpa”, explica Chomsky. “Nos Estados
Unidos, infelizmente, é o caso: há mais de um século, um século e meio, tem
sido sempre mais fácil culpar o “perigo amarelo”.
Na quarta-feira, pouco antes de
Bernie Sanders anunciar que se retiraria da corrida presidencial, perguntei ao
dissidente político, linguista e autor Noam Chomsky sobre sua avaliação da
campanha de Bernie Sanders nesta época de pandemia do coronavírus.
Se Trump for reeleito, será um
desastre indescritível. Significa que as políticas dos últimos quatro anos, que
tem sido extremamente destrutivas para a população estadunidense e para o
mundo, não só vão continuar como, provavelmente, serão aceleradas. Para a
saúde, isso já é péssimo. Mas o que significa para o meio ambiente, ou para a
ameaça de uma guerra nuclear — que é um risco extremamente sério, do qual
ninguém está falando — é indescritível.
Suponha que Biden seja eleito. Eu
presumo que seria, basicamente, uma continuação do governo Obama: nada demais,
mas, pelo menos, não tão destrutivo, e com a possibilidade de que um público
organizado consiga fazer pressão e mudar o que está sendo feito.
Atualmente, é comum dizer que a
campanha do Sanders falhou. Eu acho que dizer isso é um erro. Eu vejo como um
sucesso extraordinário, que mudou completamente o terreno do debate e das
discussões. Questões que, até alguns anos atrás, eram impensáveis, agora
passaram para o centro das atenções.
O pior crime que ele cometeu, aos
olhos do establishment, não foi a política proposta por ele, mas o
fato de conseguir inspirar movimentos populares, que já tinham começado a se
desenvolver — como o Occupy, Black Lives Matter e muitos outros
— e transformá-los em movimentos ativistas, que não aparecem a cada dois anos
só para dar força a um líder e depois voltar para casa, mas aplicam pressão
constante, com ativismo constante e assim por diante. Isso poderia afetar um governo
Biden.
A taxa de mortalidade da pandemia
do coronavírus continua acelerando. Primeiro, Trump rejeitou os testes da
Organização Mundial de Saúde. Agora, ele diz que vai parar de financiá-la. Você
pode falar sobre o que ele anda ameaçando fazer?
Esse é o típico comportamento dos
autocratas e ditadores. Quando você comete erros colossais, que acabam matando
milhares de pessoas, é preciso encontrar alguém para botar a culpa. E, nos EUA,
infelizmente, é o caso: há mais de um século, um século e meio, tem sido sempre
mais fácil culpar o “perigo amarelo”. “Eles estão vindo atrás de nós”. Temos
visto isso a vida toda, e de fato, isso vem de muito antes. Então, culpar a
OMS, culpar a China, alegar que a OMS tem relações insidiosas com a China, está
funcionando muito bem para eles. Isso vende bem para uma população doutrinada
profundamente há tanto tempo — desde os Atos de Exclusão da China, no século 19
— para dizer: “Sim, aqueles bárbaros amarelos estão vindo para nos destruir”.
Isso é quase instintivo.
Sou velho o suficiente para me
lembrar de quando, criança, ouvia os discursos de Hitler no rádio, nos Comícios
de Nuremberg. Não conseguia compreender as palavras, mas o tom e a reação da
multidão, da plateia encantada, eram muito claros e muito assustadores. Sabemos
ao que levou. É difícil — isso vem à mente quando ouvimos os delírios de Trump
e a multidão. Não sugiro que ele seja parecido com Hitler. Hitler tinha uma
ideologia, uma ideologia horrível, não apenas pelo massacre de todos os judeus
e dos 30 milhões de eslavos e ciganos, mas também uma ideologia interna que
conquistou grande parte do mundo: o Estado, sob o controle do Partido Nazista,
deveria controlar todos os aspectos da vida, deveria controlar a comunidade
empresarial, inclusive. Esse não é o mundo em que vivemos. Na verdade, é quase
o oposto: as empresas controlando o governo. E, no que diz respeito a Trump, a
única ideologia detectável nele é a do narcisismo puro. Sua ideologia é a do
“Eu”: enquanto for esperto o suficiente para continuar servindo aos verdadeiros
mestres, enchendo de dinheiro os bolsos dos mais ricos e do setor corporativo,
eles o deixarão em paz com suas palhaçadas.
É muito impressionante observar o
que aconteceu na conferência de Davos em janeiro deste ano. Davos é o encontro
das pessoas que são chamadas de “mestres do universo” — CEOs das principais
empresas, grandes estrelas da mídia e assim por diante. Trump apareceu e deu o
discurso principal. Eles não gostam de Trump. Sua vulgaridade não combina com a
imagem que eles tentam projetar de um humanismo culto. Mas o aplaudiram
loucamente, aplaudiam excitados a cada palavra que ele pronunciou, porque
percebem que ele sabe bem quais bolsos encher com dólares, e de que forma.
Enquanto ele fizer isso, desde que sirva seu principal eleitorado, eles o
deixarão se sair com suas babaquices.
Como eu dizia, os países
asiáticos têm atuado de forma sensata. A Nova Zelândia parece ter acertado.
Taiwan vai bem. Na Europa, talvez a Alemanha tenha a menor taxa de mortalidade,
o mesmo com a Noruega. Há formas de reagir.
E há formas de tentar destruir
tudo — que é o que o Presidente Trump está fazendo, com o apoio da câmara de
eco de Murdoch, Fox News e outros. Surpreendentemente, está funcionando. Então,
ele levanta uma mão ao céu: “Eu sou o escolhido. Sou seu salvador. Vou
reconstruir os EUA, fazer deles grandiosos para vocês novamente, porque sou seu
servo. Sou o servo fiel da classe trabalhadora”, e por aí vai. Mas, enquanto
isso, com a outra mão ele os esfaqueia pelas costas. Levar tudo isso adiante é
um ato de genialidade política. Precisamos reconhecer que há um talento sério
envolvido, seja um planeamento intuitivo ou consciente. É devastador. Já vimos
isso antes. Vemos isso agora em ditadores, autocratas, sociopatas que passam a
ocupar posições de liderança. E agora está acontecendo no país mais rico e
importante da história mundial.
Muitos trabalhadores essenciais
precisam sair de suas casas em plena pandemia e enfrentar um grande risco às
suas vidas. Você poderia comentar se vê essa pandemia ameaçando o capitalismo
global em geral ou apoiando-o, e se os triliões de dólares que estão sendo
colocados nesses pacotes de estímulo vão simplesmente intensificar a
desigualdade ou realmente ajudar as pessoas que mais precisam?
O setor corporativo está
trabalhando duro num plano para um futuro como o que você descreve. A questão é
entender se as organizações populares serão capazes de impor pressão suficiente
para garantir que isso não aconteça.
Vejamos as corporações. O que
elas têm feito nos últimos anos? Os lucros têm ido para as nuvens. Elas têm se
entregado a uma orgia de recompra de ações, que são dispositivos para aumentar
a riqueza dos acionistas ricos e de seus gestores, enquanto minam a capacidade
produtiva das empresas em grande escala, instalando seus escritórios em alguma
pequena sala de algum lugar da Irlanda, para não ter de pagar impostos, usando
paraísos fiscais. Essa mudança não é pequena. São dezenas de trilhões de
dólares, roubando o contribuinte. Precisa ser assim?
Vejamos a oferta atual para as
corporações. Ela deveria ser acompanhada de condicionantes — termo com o qual
estamos familiarizados, por causa do FMI. Eles deveriam ser obrigados a
garantir que não haverá mais uso de paraísos fiscais, nem recompras de ações, e
ponto final. Se eles não o cumprirem, com uma garantia firme, não receberão
nenhum dinheiro público.
Deveriam existir muito mais
condicionantes. Parte da administração deveria ser de representantes dos
trabalhadores. É impossível? Não, é feito em muitos países, na Alemanha, por
exemplo. Deveria ser exigido que eles garantissem um salário digno para viver:
não apenas um salário mínimo, um salário digno. Essa é uma condicionante que
pode ser imposta.
Você poderia falar um pouco, de
forma geral, sobre uma questão que habita seu coração há décadas, que são os
Territórios Ocupados, Gaza e Cisjordânia. O que significa a pandemia num lugar
como Gaza, classificada pela ONU e por pessoas do mundo inteiro como uma
“prisão a céu aberto” com quase 2 milhões de pessoas?
É quase impossível pensar nisso.
Gaza é essa prisão a céu aberto com 2 milhões de pessoas que a ali habitam, sob
ataque constante. Israel, que se impôs como o poder da ocupação, reconhecido
por todos os países como um invasor, menos por eles mesmos, tem estabelecido
sanções muito duras desde que os palestinos cometeram o erro de realizar a
primeira eleição livre no mundo árabe e eleger as pessoas erradas. Os Estados
Unidos e Israel caíram em cima como uma tonelada de tijolos.
Há agora alguns casos [de
covid-19] em Gaza. Se a pandemia se estender, será um verdadeiro desastre.
Instituições internacionais apontam que em 2020, ou seja, agora, Gaza seria
praticamente inabitável. Quase 95% de sua água é completamente poluída. O lugar
é um desastre. E Trump garantiu que ficará pior. Ele retirou o financiamento
dos sistemas de apoio aos Palestinos em Gaza e na Cisjordânia, matou o
financiamento a hospitais palestinos. E ele tinha um motivo. Eles não o
elogiaram o suficiente. Eles não foram respeitosos com deus, portanto, serão
estrangulados, apesar deles mal sobreviverem sob um regime severo e brutal.
O que você considera necessário
numa resposta internacional para frear a ascensão do autoritarismo que pode
surgir com a pandemia? E o que seria necessário para transformá-la numa resposta
progressista?
Na medida em que podemos
identificar alguma política coerente dentro da loucura da Casa Branca, surge,
com considerável clareza, uma coisa: a saber, um esforço para construir uma
internacional dos estados mais reacionários e opressivos, liderada pelo
gangster desde a Casa Branca. E, agora, isso está ganhando forma.
Na Índia, o presidente Modi, que
é um hindu nacionalista e extremista, está se movimentando estrategicamente
para destruir a democracia secular indiana e esmagar a população muçulmana. O
que está acontecendo na Caxemira é assustador. Já era ruim o suficiente antes,
agora ficou muito pior. O mesmo acontece com a enorme população muçulmana na
Índia. É possível descrever a quarentena imposta como genocida. Modi deu um
aviso de bloqueio total cerca de 4 horas antes. São mais de um bilião de
pessoas. Alguns deles não têm para onde ir. As pessoas na economia informal,
que são um grande número de pessoas, foram simplesmente expulsas. “Volte a pé
para a sua vila”, que pode estar a milhares de quilómetros de distância. “Morra
na beira da estrada.” Essa é uma enorme catástrofe, bem como os severos
esforços para impor as doutrinas ultradireitistas do Hindutva, que estão no
centro do pensamento e da bagagem de Modi.
Para além do caso da Índia, o que
está acontecendo, de fato, é que o sul da Ásia vai se tornar inabitável muito
em breve, se as políticas climáticas atuais continuarem assim. No último verão,
a temperatura em Rajasthan foi parar em 50 graus Celsius. E continua a subir.
Há centenas de milhares de pessoas que não têm acesso à água na Índia. Vai
ficar muito pior, pode até levar a uma guerra nuclear entre as duas potências
que basicamente contam com os mesmos recursos hídricos, em declínio, sob o
aquecimento global: Paquistão e Índia. Ou seja, a história de terror que está
se desenvolvendo é, novamente, indescritível. Não é possível encontrar palavras
para isso. E algumas pessoas estão torcendo por isso, como Donald Trump e seu
amigo Bolsonaro no Brasil, e alguns outros sociopatas.
Mas como se opor a uma
internacional reacionária? Desenvolvendo uma Internacional Progressista. E há
alguns passos para isso. É um tema que não ganha muitos holofotes, mas acho que
em dezembro próximo haverá um anúncio formal do que está em andamento há algum
tempo. Yanis Varoufakis — fundador e principal figura do DiEM25, o importante
movimento progressista na Europa — e Bernie Sanders publicaram uma declaração
pedindo uma Internacional Progressista para combater e, esperamos, superar a
internacional reacionária com base na Casa Branca.
Agora, se você olha a nível de
Estados, parece uma competição extremamente desigual. Mas os Estados não são o
único elemento. Olhando para o nível das pessoas, não é impossível. É possível
construir uma Internacional Progressista baseada nas pessoas. Abrangeria desde
grupos politicamente organizados que têm se proliferado, que foram muito
impulsionados pela campanha de Sanders, desde auxílio mútuo de autogestão, a
organizações de autogestão que estão crescendo em comunidades por todo o mundo,
nas áreas mais empobrecidas do Brasil, por exemplo. Há inclusive um fato
impressionante, lá: o crime organizado está se responsabilizando por trazer
alguma forma de proteção decente contra a pandemia nas favelas do Rio de
Janeiro. Tudo isso está acontecendo a um nível popular. Se isso se expande e
desenvolve, se as pessoas não simplesmente desistirem de tudo, em desespero,
mas trabalharem para mudar o mundo, como já fizeram no passado em condições
muito piores, haverá a oportunidade para uma Internacional Progressista.
E tenha em mente que também há
casos marcantes de um internacionalismo progressista, no nível do Estado. Pense
na União Europeia. Os países ricos da Europa, como a Alemanha, recentemente nos
deram uma lição sobre união. Certo? A Alemanha está gerenciando [a crise
sanitária] muito bem. Eles têm provavelmente a menor taxa de morte no mundo, na
sociedade organizada. Logo ao lado deles, no norte da Itália, as pessoas estão
sofrendo miseravelmente. A Alemanha está oferecendo a eles algum auxílio? Não.
Na verdade, a Alemanha até bloqueou o esforço para desenvolver títulos em
euros, títulos gerais na Europa que poderiam ter sido usados para aliviar o
sofrimento em países em piores condições. Mas, felizmente, a Itália recebeu
ajuda do outro lado do oceano Atlântico, vinda de uma superpotência do
hemisfério ocidental: Cuba. Cuba está, novamente, como antes, mostrando um
internacionalismo extraordinário, enviando médicos à Itália. A Alemanha não vai
fazer isso, mas Cuba pode. A China está fornecendo auxílio material. Esses são
passos na direção do internacionalismo progressista a nível de estado.
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