Sob o pretexto de evitar
aglomerações no Largo do Senado a 4 de Junho, o Corpo de Polícia de Segurança
Pública (CPSP) informou ontem que, este ano, Macau não poderá assinalar a data
do massacre que aconteceu em 1989, em Pequim. Numa altura em que não há casos de
infecção pela Covid-19 em Macau, Au Kam San considera que a decisão é
“injustificável”. Os democratas vão recorrer para o Tribunal de Última
Instância e procuram agora locais privados para realizar a vigília.
André Vinagre* | Ponto Final (mo)
O Corpo de Polícia de Segurança
Pública (CPSP) fez ontem saber que não autoriza a realização da vigília pelas
vítimas do massacre de Tiananmen. A decisão visa “evitar a concentração de
pessoas” no Largo do Senado, no dia 4 de Junho, a fim de evitar a propagação do
coronavírus, justificam as autoridades. Já se passaram 42 dias desde o último
caso de Covid-19 diagnosticado em Macau e há, actualmente, zero pessoas em tratamento. Assim ,
os democratas não aceitam a justificação e, ao PONTO FINAL, Au Kam San confirmou
que vai recorrer para o Tribunal de Última Instância (TUI). “Temos de insistir
e recordar Tiananmen”, afirmou Ng Kuok Cheong. Esta é a primeira vez, em 30
anos, que a vigília pelas vítimas do massacre não é autorizada. No final da
reunião que decorreu ontem à noite entre os membros da União de Macau para o
Desenvolvimento da Democracia, Ng Kuok Cheong disse a este jornal que os
democratas estão à procura de locais alternativos, e privados, para realizar a
vigília.
Sob o pretexto de “evitar a
concentração de pessoas” devido à pandemia, o CPSP confirmou ao PONTO FINAL:
“Esta polícia, nos termos da lei, não autoriza esta actividade”. Fonte do CPSP
lembrou ainda que as autoridades estão a seguir “as orientações dos Serviços de
Saúde” e que “o Governo apela a que se evitem todas as actividades em que haja
concentração de pessoas”.
“Acho que não é justificação,
porque eles [CPSP] não autorizaram a nossa vigília pela mera razão da
epidemia”, afirmou Au Kam San, lembrando ainda que, de acordo com a lei, para
realizar a vigília não é necessário pedir permissão às autoridades: “Para esta
vigília, o que é preciso é, simplesmente, um aviso prévio por escrito e não um
pedido. Por isso, não é preciso ser autorizada. A autorização que eles referem
não tem uma base legal”.
Depois, o deputado e presidente
da União de Macau para o Desenvolvimento da Democracia, que tinha apresentado o
aviso prévio para a realização da vigília na passada quinta-feira, questionou a
justificação dada pelo CPSP: “Não nos autorizaram a fazer a vigília por causa
da epidemia, isto é injustificável, não tem nenhuma base legal”. Além disso, o
deputado referiu que a associação democrata que lidera estaria disposta a
“colaborar e fazer ajustes relativamente à realização da vigília”. “Por
exemplo, se eles exigissem que os participantes na vigília mantivessem um
distanciamento social, nós poderíamos fazer isso”, ressalvou. Com a proibição,
a União de Macau para o Desenvolvimento da Democracia vai interpor recurso para
o TUI, fez saber Au Kam San.
Ao PONTO FINAL, Ng Kuok Cheong
confirmou que a associação vai recorrer ao TUI e esperar que a decisão da
justiça seja rápida. O deputado e membro da União de Macau para o
Desenvolvimento da Democracia disse também que ainda não está decidido o que a
associação vai fazer no dia 4 de Junho: “Nós achamos que deve haver alguma
actividade no dia 4 de Junho, mas talvez numa forma diferente”. “Alguns dos
membros podem insistir que devemos ir lá [ao Largo do Senado], mas ainda temos
de decidir”, notou.
Ng Kuok Cheong lembrou que, desde
4 de Junho de 1990 até 2019 esteve sempre presente na vigília pelas vítimas da
repressão violenta que aconteceu em Pequim, em 1989. “Esta é uma marca muito
importante e histórica para a nossa geração. Temos de insistir e recordar
Tiananmen”, afirmou.
Evento online e procura de um
espaço privado
A recusa das autoridades em
realizar a vigília surge numa altura em que Macau tem zero casos de infecção pelo novo
coronavírus e quando já se passaram 42 dias desde a última pessoa diagnosticada
na região. Na conferência de imprensa de terça-feira, Lei Chin Ion, director
dos Serviços de Saúde, disse mesmo que o risco de contágio em Macau é “muito
baixo”.
Após a reunião da associação
pró-democracia, que decorreu na noite de ontem, Ng Kuok Cheong contou ao PONTO
FINAL que os democratas estão a pensar em alternativas para a eventualidade de
o TUI confirmar a decisão da PSP, em resposta ao recurso que será apresentado
nos próximos dias. Se a resposta da justiça for negativa, os democratas vão
organizar um evento online e, além disso, já estão à procura de recintos privados
onde se possa realizar a vigília. Caso não encontrem nenhum local adequado, a
associação democrata vai usar o escritório partilhado entre Ng Kuok Cheong e Au
Kam San para recordar as vítimas do massacre de 1989.
Recorde-se que, já no dia 7 de
Maio, o Instituto para os Assuntos Municipais (IAM) decidiu revogar uma
autorização que tinha sido anteriormente concedida para que a associação
pró-democracia pudesse realizar uma exposição sobre Tiananmen que acontece
anualmente. A justificação dada, na altura, pelo instituto liderado por José
Tavares também teve a ver com eventuais aglomerações de pessoas em torno das
fotografias e documentos expostos. Já na altura, Ng Kuok Cheong disse ao PONTO
FINAL que este era um sinal “muito claro” relativamente à decisão que as
autoridades iriam tomar face à vigília de 4 de Junho.
*com Miguel Fan
Decisão é “completamente ilegal”,
afirma António Katchi
A decisão de não autorizar a
vigília de dia 4 de Junho é, segundo o jurista António Katchi, ilegal. Isto
porque, explicou ao PONTO FINAL, de acordo com a lei que regula o direito de
reunião e manifestação, o Corpo de Polícia de Segurança Pública (CPSP) pode não
autorizar uma manifestação somente numa situação: “a de a manifestação visar
fins contrários à lei”.
“Essa lei, quando diz que a
polícia pode proibir uma manifestação, apenas menciona esse caso: são proibidas
as manifestações que visem fins contrários à lei”, reforçou. Caso considere que
uma manifestação tem um fim contrário à lei, a polícia “tem de indicar quais
são as disposições legais que estão a ser violadas ou que os manifestantes
pretendem violar”.
Além disso, de acordo com a Lei
da prevenção e controlo de doenças transmissíveis, há ainda a possibilidade de
o Chefe do Executivo, através de despacho publicado em Boletim Oficial ,
decretar medidas de visem evitar a propagação de doenças transmissíveis. Neste
caso, “seria um despacho de conteúdo geral e abstracto com vigência temporária”
e não “para especificamente proibir a reunião do dia 4 de Junho na praça do
Leal Senado”, assinalou o jurista. Assim, a decisão “é completamente ilegal,
uma vez que ofende o conteúdo essencial de um direito fundamental, que é o
direito de reunião”, considera Katchi.
Para o constitucionalista, o
argumento de que a medida tem como objectivo evitar aglomerações de pessoas cai
por terra porque “há aglomerações em supermercados e há aglomeração nos
transportes”. Katchi, que tem participado nas vigílias dos últimos 20 anos, diz
temer que esta nunca mais se realize, e lembra a vigília do ano passado: “Já no
ano passado vi uma atitude extremamente hostil da polícia na vigília”.
Para o jurista, “a polícia queria
diminuir ao máximo a presença de pessoas e, por outro lado, também criar
incidentes, talvez também estivesse à espera de provocar crimes de
desobediência qualificada”. António Katchi lembrou ainda as manifestações não
autorizadas no ano passado. “O Tribunal de Última Instância, papagueando os
argumentos completamente improcedentes induzidos pelo secretário para a
Segurança, indeferiu o recurso e deu razão ao Governo”. Assim, “com essa força
que receberam no ano passado, e este ano proibindo a exposição sem justificação,
acho que é de temer que venham a ser proibidas as vigílias dos próximos anos. O
jurista termina dizendo que “é difícil crer que não haja pressões do Governo
Central para as autoridades actuarem assim”.
A.V.
Joey Lao questiona massacre de
Tiananmen e diz que “não se sabe muito sobre a história”
O deputado Joey Lao
manifestou-se, na passada sexta-feira, na Assembleia Legislativa (AL), contra a
exposição sobre o massacre de Tiananmen. Na altura, Joey Lao alegou que a
exposição violava o princípio “Um País”. A vigília viola o mesmo princípio?
“Acredito que sim”, respondeu ontem Joey Lao ao PONTO FINAL. Porquê? “O
conteúdo desafia o Governo Central. Não é uma questão dos ‘Dois Sistemas’, é um
problema do ‘Um País’, da Mãe Pátria. Sobre a decisão de as autoridades não
autorizarem a vigília de 4 de Junho, o deputado afirmou: “Eu apoio a decisão do
Governo, por causa das razões epidémicas. Se olharmos para Hong Kong, a decisão
foi a mesma. Nós temos de prestar muita atenção à situação epidémica”.
Actualmente não há ninguém
infectado em Macau e são já 42 dias sem novos casos, mas Joey Lao frisa:
“Parece que a situação está a ficar melhor, mas isso não significa que o
problema esteja completamente resolvido”. O deputado, que confessou ao PONTO
FINAL que nunca foi à vigília de 4 de Junho, não acredita na ilegalidade da
decisão: “Não acredito que o Governo tome decisões ilegais”. “Eu acredito que o
Governo nos defende, especialmente a polícia. Não querem que nós estejamos
expostos aos riscos”, afirmou o deputado nomeado.
Para Joey Lao, o conteúdo da
exposição sobre o massacre de Tiananmen é “enganador”. “Não se sabe muito sobre
a história. Ninguém sabe muito sobre a história. O conteúdo não mostra toda a
verdade da história, não reflecte a verdade da história”, justifica.
Questionado sobre qual é a sua versão do episódio de 1989, Lao responde: “Não
sei”. O deputado afirma: “Temos de ter calma e pensar cuidadosamente se é
necessário criar problemas ou manter uma relação de harmonia entre a Mãe Pátria
e Macau”. E acrescenta que “isto não é bom para a prosperidade, económica e
social”. “Não quero perturbar a harmonia da nossa sociedade. A nossa sociedade
é harmoniosa. Nós vivemos felizes e em harmonia”, conclui.
A.V.
“O vírus não pode ser usado como
desculpa para restringir a liberdade de expressão”
Para Joshua Rosenzweig,
vice-director regional da Amnistia Internacional para o Este e Sudeste da Ásia,
“é alarmante que o Governo de Macau tenha proibido a vigília anual do aniversário
de Tiananmen pela primeira vez”. Numa resposta enviada ao PONTO FINAL, o
responsável da organização pelos direitos humanos comentou a proibição das
autoridades face à realização da vigília do dia 4 de Junho, lembrando que “a
polícia citou as preocupações de saúde relativas à Covid-19, apesar de não
haver casos novos há 41 dias [são agora 42 os dias em que não se registam novos
casos em Macau]”. “A medida segue uma proibição semelhante à vigília de 4 de
Junho em Hong Kong ”,
apontou, concluindo que “o vírus não pode ser usado como desculpa para
restringir a liberdade de expressão”.
A.V.
Paulino Comandante diz que
interessados “devem reagir nos termos da lei”
Instado a comentar a proibição da
vigília de 4 de Junho, Paulino Comandante disse ao PONTO FINAL não estar
informado sobre a situação nem sobre a justificação das autoridades. O
secretário-geral da Associação de Advogados de Macau (AAM) limitou-se a dizer
que, “numa sociedade de Direito como a de Macau, se os interessados acharem
conveniente, então, poderão reagir nos termos da lei e recorrer”. “Se eles
estiverem inconformados com a decisão, devem reagir nos termos da lei”,
reforçou. O PONTO FINAL tentou contactar o presidente da AAM, Jorge Neto
Valente, mas sem sucesso.
A.V.
Proibição da vigília “não afecta
realmente a liberdade de expressão”, diz Sonny Lo
O politólogo especialista em
assuntos de Macau e Hong Kong comentou, ao PONTO FINAL, a proibição da vigília
de 4 de Junho dizendo que é uma decisão “compreensível”, tendo em conta os
esforços para combater a epidemia. “Não achei a medida surpreendente”,
assinalou Sonny Lo, comparando as duas regiões administrativas especiais:
“Macau é muito diferente de Hong Kong e, portanto, a proibição da vigília a 4
de Junho em Macau não afecta realmente a liberdade de expressão e reunião”.
Sonny Lo diz mesmo que, “tanto Hong Kong como Macau, parecem tomar as próprias
decisões sem a intervenção de Pequim”. Isto porque, explicou, “ambos os
governos das RAE desejam manter a estabilidade” durante a altura da pandemia.
A.V.
Uma “triste notícia para a
sociedade civil de Macau”, considera Sulu Sou
Para Sulu Sou, a justificação
dada pelo Corpo de Polícia de Segurança Pública (CPSP) para a proibição da
vigília de 4 de Junho no Largo do Senado “não é suficiente”. À margem de uma
conferência de imprensa da Associação Novo Macau, o deputado pró-democracia
comentou: “É uma triste notícia para a sociedade civil de Macau, porque é a
primeira vez que é proibida a vigília de 4 de Junho desde 1990” . Sulu Sou disse esperar
que “não se torne uma decisão para sempre”.
Sulu Sou lembrou que, de acordo
com a lei, a única razão pela qual a polícia pode não autorizar uma reunião é
“quando o tópico dessa reunião é ilegal”. “Acho que o tópico da vigília não é
um tópico ilegal”, afirmou, frisando: “Não é uma razão suficiente para proibir
essa vigília”. Assim, o deputado afirmou: “Não podemos aceitar que eles abusem
da razão de saúde pública para restringir os direitos civis e a liberdade de
expressão”.
Na conferência de imprensa, Sulu
Sou sugeriu que Ng Kuok Cheong e Au Kam San apelem “imediatamente aos
tribunais”. “Espero fortemente que os organizadores apelem aos tribunais e que
consigam ganhar o caso. Assim, podiam realizar a vigília nessa noite. Caso
falhem no tribunal, então saberemos que não vamos ter uma vigília legal nessa
noite do dia 4 de Junho”, referiu. Sulu Sou assinalou ainda que há residentes
que “gostariam de expressar algo” nessa noite, mas que ainda não decidiram como
o fazer, porque “têm medo que a polícia faça a mesma coisa que fez em Agosto do
ano passado”. O deputado referia-se às detenções que aconteceram aquando de uma
manifestação – que não chegou a acontecer – para condenar a violência policial
durante os protestos de Hong Kong, também no Largo do Senado.
A.V. com M.F.
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