quinta-feira, 21 de maio de 2020

Macau | Trinta anos depois, foi proibida a vigília pelas vítimas do massacre de Tiananmen


Sob o pretexto de evitar aglomerações no Largo do Senado a 4 de Junho, o Corpo de Polícia de Segurança Pública (CPSP) informou ontem que, este ano, Macau não poderá assinalar a data do massacre que aconteceu em 1989, em Pequim. Numa altura em que não há casos de infecção pela Covid-19 em Macau, Au Kam San considera que a decisão é “injustificável”. Os democratas vão recorrer para o Tribunal de Última Instância e procuram agora locais privados para realizar a vigília.

André Vinagre* | Ponto Final (mo)

O Corpo de Polícia de Segurança Pública (CPSP) fez ontem saber que não autoriza a realização da vigília pelas vítimas do massacre de Tiananmen. A decisão visa “evitar a concentração de pessoas” no Largo do Senado, no dia 4 de Junho, a fim de evitar a propagação do coronavírus, justificam as autoridades. Já se passaram 42 dias desde o último caso de Covid-19 diagnosticado em Macau e há, actualmente, zero pessoas em tratamento. Assim, os democratas não aceitam a justificação e, ao PONTO FINAL, Au Kam San confirmou que vai recorrer para o Tribunal de Última Instância (TUI). “Temos de insistir e recordar Tiananmen”, afirmou Ng Kuok Cheong. Esta é a primeira vez, em 30 anos, que a vigília pelas vítimas do massacre não é autorizada. No final da reunião que decorreu ontem à noite entre os membros da União de Macau para o Desenvolvimento da Democracia, Ng Kuok Cheong disse a este jornal que os democratas estão à procura de locais alternativos, e privados, para realizar a vigília.

Sob o pretexto de “evitar a concentração de pessoas” devido à pandemia, o CPSP confirmou ao PONTO FINAL: “Esta polícia, nos termos da lei, não autoriza esta actividade”. Fonte do CPSP lembrou ainda que as autoridades estão a seguir “as orientações dos Serviços de Saúde” e que “o Governo apela a que se evitem todas as actividades em que haja concentração de pessoas”.

“Acho que não é justificação, porque eles [CPSP] não autorizaram a nossa vigília pela mera razão da epidemia”, afirmou Au Kam San, lembrando ainda que, de acordo com a lei, para realizar a vigília não é necessário pedir permissão às autoridades: “Para esta vigília, o que é preciso é, simplesmente, um aviso prévio por escrito e não um pedido. Por isso, não é preciso ser autorizada. A autorização que eles referem não tem uma base legal”.

Depois, o deputado e presidente da União de Macau para o Desenvolvimento da Democracia, que tinha apresentado o aviso prévio para a realização da vigília na passada quinta-feira, questionou a justificação dada pelo CPSP: “Não nos autorizaram a fazer a vigília por causa da epidemia, isto é injustificável, não tem nenhuma base legal”. Além disso, o deputado referiu que a associação democrata que lidera estaria disposta a “colaborar e fazer ajustes relativamente à realização da vigília”. “Por exemplo, se eles exigissem que os participantes na vigília mantivessem um distanciamento social, nós poderíamos fazer isso”, ressalvou. Com a proibição, a União de Macau para o Desenvolvimento da Democracia vai interpor recurso para o TUI, fez saber Au Kam San.

Ao PONTO FINAL, Ng Kuok Cheong confirmou que a associação vai recorrer ao TUI e esperar que a decisão da justiça seja rápida. O deputado e membro da União de Macau para o Desenvolvimento da Democracia disse também que ainda não está decidido o que a associação vai fazer no dia 4 de Junho: “Nós achamos que deve haver alguma actividade no dia 4 de Junho, mas talvez numa forma diferente”. “Alguns dos membros podem insistir que devemos ir lá [ao Largo do Senado], mas ainda temos de decidir”, notou.

Ng Kuok Cheong lembrou que, desde 4 de Junho de 1990 até 2019 esteve sempre presente na vigília pelas vítimas da repressão violenta que aconteceu em Pequim, em 1989. “Esta é uma marca muito importante e histórica para a nossa geração. Temos de insistir e recordar Tiananmen”, afirmou.


Evento online e procura de um espaço privado

A recusa das autoridades em realizar a vigília surge numa altura em que Macau tem zero casos de infecção pelo novo coronavírus e quando já se passaram 42 dias desde a última pessoa diagnosticada na região. Na conferência de imprensa de terça-feira, Lei Chin Ion, director dos Serviços de Saúde, disse mesmo que o risco de contágio em Macau é “muito baixo”.

Após a reunião da associação pró-democracia, que decorreu na noite de ontem, Ng Kuok Cheong contou ao PONTO FINAL que os democratas estão a pensar em alternativas para a eventualidade de o TUI confirmar a decisão da PSP, em resposta ao recurso que será apresentado nos próximos dias. Se a resposta da justiça for negativa, os democratas vão organizar um evento online e, além disso, já estão à procura de recintos privados onde se possa realizar a vigília. Caso não encontrem nenhum local adequado, a associação democrata vai usar o escritório partilhado entre Ng Kuok Cheong e Au Kam San para recordar as vítimas do massacre de 1989.

Recorde-se que, já no dia 7 de Maio, o Instituto para os Assuntos Municipais (IAM) decidiu revogar uma autorização que tinha sido anteriormente concedida para que a associação pró-democracia pudesse realizar uma exposição sobre Tiananmen que acontece anualmente. A justificação dada, na altura, pelo instituto liderado por José Tavares também teve a ver com eventuais aglomerações de pessoas em torno das fotografias e documentos expostos. Já na altura, Ng Kuok Cheong disse ao PONTO FINAL que este era um sinal “muito claro” relativamente à decisão que as autoridades iriam tomar face à vigília de 4 de Junho.

*com Miguel Fan

Decisão é “completamente ilegal”, afirma António Katchi

A decisão de não autorizar a vigília de dia 4 de Junho é, segundo o jurista António Katchi, ilegal. Isto porque, explicou ao PONTO FINAL, de acordo com a lei que regula o direito de reunião e manifestação, o Corpo de Polícia de Segurança Pública (CPSP) pode não autorizar uma manifestação somente numa situação: “a de a manifestação visar fins contrários à lei”. 

“Essa lei, quando diz que a polícia pode proibir uma manifestação, apenas menciona esse caso: são proibidas as manifestações que visem fins contrários à lei”, reforçou. Caso considere que uma manifestação tem um fim contrário à lei, a polícia “tem de indicar quais são as disposições legais que estão a ser violadas ou que os manifestantes pretendem violar”. 

Além disso, de acordo com a Lei da prevenção e controlo de doenças transmissíveis, há ainda a possibilidade de o Chefe do Executivo, através de despacho publicado em Boletim Oficial, decretar medidas de visem evitar a propagação de doenças transmissíveis. Neste caso, “seria um despacho de conteúdo geral e abstracto com vigência temporária” e não “para especificamente proibir a reunião do dia 4 de Junho na praça do Leal Senado”, assinalou o jurista. Assim, a decisão “é completamente ilegal, uma vez que ofende o conteúdo essencial de um direito fundamental, que é o direito de reunião”, considera Katchi. 

Para o constitucionalista, o argumento de que a medida tem como objectivo evitar aglomerações de pessoas cai por terra porque “há aglomerações em supermercados e há aglomeração nos transportes”. Katchi, que tem participado nas vigílias dos últimos 20 anos, diz temer que esta nunca mais se realize, e lembra a vigília do ano passado: “Já no ano passado vi uma atitude extremamente hostil da polícia na vigília”. 

Para o jurista, “a polícia queria diminuir ao máximo a presença de pessoas e, por outro lado, também criar incidentes, talvez também estivesse à espera de provocar crimes de desobediência qualificada”. António Katchi lembrou ainda as manifestações não autorizadas no ano passado. “O Tribunal de Última Instância, papagueando os argumentos completamente improcedentes induzidos pelo secretário para a Segurança, indeferiu o recurso e deu razão ao Governo”. Assim, “com essa força que receberam no ano passado, e este ano proibindo a exposição sem justificação, acho que é de temer que venham a ser proibidas as vigílias dos próximos anos. O jurista termina dizendo que “é difícil crer que não haja pressões do Governo Central para as autoridades actuarem assim”.

A.V.

Joey Lao questiona massacre de Tiananmen e diz que “não se sabe muito sobre a história”
O deputado Joey Lao manifestou-se, na passada sexta-feira, na Assembleia Legislativa (AL), contra a exposição sobre o massacre de Tiananmen. Na altura, Joey Lao alegou que a exposição violava o princípio “Um País”. A vigília viola o mesmo princípio? “Acredito que sim”, respondeu ontem Joey Lao ao PONTO FINAL. Porquê? “O conteúdo desafia o Governo Central. Não é uma questão dos ‘Dois Sistemas’, é um problema do ‘Um País’, da Mãe Pátria. Sobre a decisão de as autoridades não autorizarem a vigília de 4 de Junho, o deputado afirmou: “Eu apoio a decisão do Governo, por causa das razões epidémicas. Se olharmos para Hong Kong, a decisão foi a mesma. Nós temos de prestar muita atenção à situação epidémica”. 

Actualmente não há ninguém infectado em Macau e são já 42 dias sem novos casos, mas Joey Lao frisa: “Parece que a situação está a ficar melhor, mas isso não significa que o problema esteja completamente resolvido”. O deputado, que confessou ao PONTO FINAL que nunca foi à vigília de 4 de Junho, não acredita na ilegalidade da decisão: “Não acredito que o Governo tome decisões ilegais”. “Eu acredito que o Governo nos defende, especialmente a polícia. Não querem que nós estejamos expostos aos riscos”, afirmou o deputado nomeado. 

Para Joey Lao, o conteúdo da exposição sobre o massacre de Tiananmen é “enganador”. “Não se sabe muito sobre a história. Ninguém sabe muito sobre a história. O conteúdo não mostra toda a verdade da história, não reflecte a verdade da história”, justifica. Questionado sobre qual é a sua versão do episódio de 1989, Lao responde: “Não sei”. O deputado afirma: “Temos de ter calma e pensar cuidadosamente se é necessário criar problemas ou manter uma relação de harmonia entre a Mãe Pátria e Macau”. E acrescenta que “isto não é bom para a prosperidade, económica e social”. “Não quero perturbar a harmonia da nossa sociedade. A nossa sociedade é harmoniosa. Nós vivemos felizes e em harmonia”, conclui.

A.V.

“O vírus não pode ser usado como desculpa para restringir a liberdade de expressão”

Para Joshua Rosenzweig, vice-director regional da Amnistia Internacional para o Este e Sudeste da Ásia, “é alarmante que o Governo de Macau tenha proibido a vigília anual do aniversário de Tiananmen pela primeira vez”. Numa resposta enviada ao PONTO FINAL, o responsável da organização pelos direitos humanos comentou a proibição das autoridades face à realização da vigília do dia 4 de Junho, lembrando que “a polícia citou as preocupações de saúde relativas à Covid-19, apesar de não haver casos novos há 41 dias [são agora 42 os dias em que não se registam novos casos em Macau]”. “A medida segue uma proibição semelhante à vigília de 4 de Junho em Hong Kong”, apontou, concluindo que “o vírus não pode ser usado como desculpa para restringir a liberdade de expressão”.

A.V.

Paulino Comandante diz que interessados “devem reagir nos termos da lei”

Instado a comentar a proibição da vigília de 4 de Junho, Paulino Comandante disse ao PONTO FINAL não estar informado sobre a situação nem sobre a justificação das autoridades. O secretário-geral da Associação de Advogados de Macau (AAM) limitou-se a dizer que, “numa sociedade de Direito como a de Macau, se os interessados acharem conveniente, então, poderão reagir nos termos da lei e recorrer”. “Se eles estiverem inconformados com a decisão, devem reagir nos termos da lei”, reforçou. O PONTO FINAL tentou contactar o presidente da AAM, Jorge Neto Valente, mas sem sucesso.

A.V.

Proibição da vigília “não afecta realmente a liberdade de expressão”, diz Sonny Lo

O politólogo especialista em assuntos de Macau e Hong Kong comentou, ao PONTO FINAL, a proibição da vigília de 4 de Junho dizendo que é uma decisão “compreensível”, tendo em conta os esforços para combater a epidemia. “Não achei a medida surpreendente”, assinalou Sonny Lo, comparando as duas regiões administrativas especiais: “Macau é muito diferente de Hong Kong e, portanto, a proibição da vigília a 4 de Junho em Macau não afecta realmente a liberdade de expressão e reunião”. Sonny Lo diz mesmo que, “tanto Hong Kong como Macau, parecem tomar as próprias decisões sem a intervenção de Pequim”. Isto porque, explicou, “ambos os governos das RAE desejam manter a estabilidade” durante a altura da pandemia.

A.V.

Uma “triste notícia para a sociedade civil de Macau”, considera Sulu Sou

Para Sulu Sou, a justificação dada pelo Corpo de Polícia de Segurança Pública (CPSP) para a proibição da vigília de 4 de Junho no Largo do Senado “não é suficiente”. À margem de uma conferência de imprensa da Associação Novo Macau, o deputado pró-democracia comentou: “É uma triste notícia para a sociedade civil de Macau, porque é a primeira vez que é proibida a vigília de 4 de Junho desde 1990”. Sulu Sou disse esperar que “não se torne uma decisão para sempre”. 

Sulu Sou lembrou que, de acordo com a lei, a única razão pela qual a polícia pode não autorizar uma reunião é “quando o tópico dessa reunião é ilegal”. “Acho que o tópico da vigília não é um tópico ilegal”, afirmou, frisando: “Não é uma razão suficiente para proibir essa vigília”. Assim, o deputado afirmou: “Não podemos aceitar que eles abusem da razão de saúde pública para restringir os direitos civis e a liberdade de expressão”. 

Na conferência de imprensa, Sulu Sou sugeriu que Ng Kuok Cheong e Au Kam San apelem “imediatamente aos tribunais”. “Espero fortemente que os organizadores apelem aos tribunais e que consigam ganhar o caso. Assim, podiam realizar a vigília nessa noite. Caso falhem no tribunal, então saberemos que não vamos ter uma vigília legal nessa noite do dia 4 de Junho”, referiu. Sulu Sou assinalou ainda que há residentes que “gostariam de expressar algo” nessa noite, mas que ainda não decidiram como o fazer, porque “têm medo que a polícia faça a mesma coisa que fez em Agosto do ano passado”. O deputado referia-se às detenções que aconteceram aquando de uma manifestação – que não chegou a acontecer – para condenar a violência policial durante os protestos de Hong Kong, também no Largo do Senado.

A.V. com M.F.

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