sexta-feira, 15 de maio de 2020

Na Palestina, terror e pandemia


Destruição de casas. Prisões arbitrárias e ilegais. Invasão de hospitais. Confinamento da população. Até mesmo confisco de doações humanitárias. Israel aprovita-se da crise sanitária para ampliar massacre e violações aos direitos humanos

Michelle Ratto | Outras Palavras

Em uma crise política, os mitos1 emergem. A imagem de Jair Bolsonaro – também conhecido como “Bolsomito” – segurando a bandeira israelense em uma manifestação no Palácio do Planalto, no dia 3 de maio de 2020, gerou uma tentativa de construção de um novo mito: o da bandeira sequestrada.2 Ou seja, o discurso que defende uma relação não consentida, não compartilhada e não correspondida entre o primeiro ministro israelense, Benjamin Natanyahu, e o atual presidente do Brasil. Um mito que tenta desvincular a imagem de Israel de suas práticas racistas e inocentá-lo da reciprocidade política e ideológica com governo Bolsonaro. No entanto, mais que um sintoma de uma política de mutualidade e cumplicidade, o levantar da bandeira israelense – suja de sangue palestino – simboliza o flerte de uma paixão incomum pelo extermínio e desumanidade. Ambos têm feito uso político da pandemia para intensificar e ampliar políticas autoritárias.

A conhecida imagem autogerida de Israel como “única democracia do Oriente Médio” atualiza um massacre bélico que antes fora justificado pelo (também) mito de “guerra de independência israelense”, e que revela atualmente os porões de uma política de ocupação colonial e de massacre do povo palestino. Nesse mês de maio, rememoram-se os 72 anos da catástrofe palestina, ou al-Nakbah, ocorrida com a fundação do Estado de Israel, em 1948. Data esta que marca a transformação do nacionalismo judaico em uma campanha militar de limpeza étnica da Palestina, como sugeriu o jornalista israelense Ilan Pappé, deixando cerca de 800 mil palestinos desalojados de seus lares, 531 vilarejos destruídos e centenas de nativos mortos, o maior êxodo da história palestina e um dos maiores do século XX.


No entanto, as políticas coloniais não pararam com este evento. Elas são prolongadas por um regime de colonização e segregação da Faixa de Gaza e Cisjordânia (trata-se das regiões fragmentadas da Palestina histórica). Listarei aqui parte das violações de direitos humanos e do direito internacional patrocinadas por Israel – aqui me refiro a uma lógica estrutural de Estado (Judiciário, Executivo e Legislativo), funcionando independentemente de políticas de governo. Gostaria que o leitor, à medida que lê essas linhas, refletisse como tais rituais de humilhação podem continuar ocorrendo em meio a uma pandemia global:

Controle de construção de residências palestinas em sua própria terra pelas Autoridades Administrativas israelenses – no dia 28 de abril, a Força de Defesa Israelense (IDF) distribuiu 22 “ordens de demolição” na comunidade Qarawat Bani Hassan3. A construção de casas na Cisjordânia para palestinos é proibida em quase todos os casos, e apenas 1% podem construir casas dentro da legalidade. Isso significa que a maioria das casas palestinas são “ilegais” perante a lei militar israelense. A perversa demolição de moradias ocorre dentro da Lei de Planejamento e Construção (1965) que justifica as demolições como “punitivas”, “necessidades militares” e “administrativas”. No entanto, o controle de construção não se aplica aos colonos israelenses que moram no território ocupado. As ordens de demolição são muitas vezes entregues apenas um dia antes da destruição – quando são – e força os moradores a derrubarem suas próprias casas, ou pagar pela demolição militar, o que custaria uma taxa de 60.000 NIS (equivalente a 96 mil reais na cotação atual);

Demolição em massa de residências e estruturas palestinas – em abril, 23 casas foram demolidas na região do Vale do Jordão sob ordens militares, deixando 113 palestinos (incluindo 56 crianças) desabrigados em meio à pandemia4. Essa estratégia política de despossessão e apropriação de terras palestina acontece desde 1948, mas foi intensificada em 1967, quando o Estado de Israel anexou ilegalmente a Cisjordânia e a Faixa de Gaza. Apesar de existirem três tipos de justificativas para tal prática, as demolições em massa de residências palestinas ocorrem para que possam dar lugar a novos assentamentos israelenses. Ver nota da ONU sobre essas demolições como violação do Quarta Convenção de Genebra para a proteção das pessoas civis em tempo de guerra.5

Construção de colônias judaicas ilegais no território ocupado – somam-se em torno de 250 colonatos judaicos e mais de 620 mil cidadãos israelenses morando da Cisjordânia. A transferência de cidadãos do território ocupante para o território ocupado, a aquisição de terras pela força e a subjugação de um povo também são consideradas crimes de guerra pelo Direito Internacional. No entanto, o projeto colonial sionista que visa construir milhares de novas unidades destas colônias na Cisjordânia foi aprovado pelo governo Donald Trump durante a pandemia, reconhecendo o Estado de Israel como “poder soberano” sobre a Palestina. Essa aprovação é fruto do lobby israelense no congresso americano e da presença massiva do capital israelense na economia dos EUA.

Roubo de bens pelas autoridades administrativas – incluindo bens materiais doados por ONG’s de direitos humanos: só no mês de abril, as autoridades administrativas já confiscaram no Vale do Jordão centenas de equipamentos médicos, materiais de trabalho de agricultores e de soldadores palestinos, assim como painéis solares, tanques d’água, tendas residenciais e materiais de construção. Os materiais estavam destinados à construção de clínicas e residências comunitárias emergenciais no combate ao Covid-19. Os confiscos de bens são práticas regulares que tem por objetivo único dificultar as condições de sobrevivência do povo palestino;

Espancamentos, ameaça e outras agressões por militares e colonos judeus contra pessoas palestinas – Desde março (começo do lockdown na Cisjordânia) já foram documentados mais de 50 incidentes de violência pelo poder ocupante6, grande parte agressões físicas contra palestinos fazendo uso de cães e armas letais (ver vídeo da BT’Selem)7, além de destruição de propriedades privadas, pastagens e roubo de bens diversos. A sujeição a uma rotina diária de violência e a rituais de humilhação – que como vimos, não se resume a uma violência apenas física, mas outras formas de violência estatal organizada – tem deixado milhões de refugiados palestinos expostos ao sofrimento permanente;

Incursão militar em campos de refugiados seguida de prisão administrativa em corte militar israelense – Desde março, 422 adultos e 20 menores foram mantidos em detenção administrativa nas instalações de Serviço Prisional de Israel (ver dados da organização B’Tselem). A prisão administrativa é um procedimento que permite aos militares israelenses prender palestinos por tempo indeterminado, sem acusação formal, sem julgamento e sem um representante legal. As incursões acontecem sempre à noite (ver vídeo)8, os palestinos presos, sejam adultos ou crianças, são submetidos a confinamento e interrogatórios com tortura física e psicológica.9

Restrição de movimento dos palestinos em sua própria terra – Enquanto algumas nações do mundo experenciam restrições de mobilidade e isolamento pela primeira vez no combate à covid-19, na Cisjordânia e Gaza o controle absoluto de mobilidade e o confinamento são políticas impostas por Israel desde 1967. Na Segunda Intifada (2002) elas foram intensificadas com a construção do Muro israelense “muro do apartheid”, com os postos militares de controle (checkpoints), com o regime de permissão que controla a mobilidade dos palestinos dentro e fora da Cisjordânia, pelo toque de recolher e outros sistemas de encarceramentos. Gaza – bombardeada, inclusive, no dia 28 de abril por Israel – é considerada a maior prisão a céu aberto no mundo que sofre bloqueio militar e econômico permanente.

Devido ao fechamento das “fronteiras” (uso aspas para reafirmar o mito de uma fronteira entre Israel/Palestina), os mais de 50 mil trabalhadores palestinos que prestam serviços em Israel foram obrigados pelo governo israelense a decidir entre fazer isolamento social na Cisjordânia ou morar em Israel por tempo indeterminado, sob condições de perderem seus vistos de trabalho e o emprego. Mesmo com o alto risco de contágio do novo coronavírus, o governo israelense não está realizando testes de covid-19 nestes trabalhadores que estão temporariamente em Israel e sem condições adequadas de segurança. Eles estão prestando serviços considerados “essenciais”, majoritariamente em trabalhos de construção civil, agricultura e indústria.10

De acordo com a Autoridade Palestina, a maioria dos palestinos na Cisjordânia com covid-19 (527 atualmente) foram infectados enquanto trabalhavam em assentamentos israelenses, e outros foram contaminados enquanto trabalhavam em Israel. O primeiro caso de Covid-19 na Faixa de Gaza surgiu com um palestino que havia ido ao Paquistão, atualmente são 20 confirmados.

Além da violência permanente, os palestinos enfrentarem a chegada do novo coronavírus com grande escassez de abastecimento de água, remédios, testes do vírus, respiradores, equipe médicas e hospitais. No final de abril, por exemplo, militares israelenses invadiram um centro de saúde em Silwan, um bairro palestino localizado em Jerusalém Oriental (ocupada por Israel) que fazia diagnóstico do Covid-19. Na ocasião, foram levados presos os funcionários da clínica e quatro ativistas palestinos. Como se vê, à potência de morte do vírus, soma-se o desejo de eliminação física e simbólica do povo palestino.

Notas:
1 Utilizo a ideia de mito a partir do senso comum, sem me adentrar no sentido antropológico do termo.
2 Ver matéria da DCM: “O sequestro da bandeira de Israel em cena que lembra o filme nazista ‘Triunfo da Vontade’”. 
9 Ver dados da organização não governamental Addameer: https://www.addameer.org/
Gostou do texto? Contribua para manter e ampliar nosso jornalismo de profundidade: OUTROS QUINHENTOS

Sem comentários:

Mais lidas da semana