Destruição de casas. Prisões
arbitrárias e ilegais. Invasão de hospitais. Confinamento da população. Até
mesmo confisco de doações humanitárias. Israel aprovita-se da crise sanitária
para ampliar massacre e violações aos direitos humanos
Michelle Ratto | Outras Palavras
Em uma crise política, os mitos1 emergem.
A imagem de Jair Bolsonaro – também conhecido como “Bolsomito” – segurando a
bandeira israelense em uma manifestação no Palácio do Planalto, no dia 3 de
maio de 2020, gerou uma tentativa de construção de um novo mito: o da bandeira
sequestrada.2 Ou
seja, o discurso que defende uma relação não consentida, não compartilhada e
não correspondida entre o primeiro ministro israelense, Benjamin Natanyahu, e o
atual presidente do Brasil. Um mito que tenta desvincular a imagem de Israel de
suas práticas racistas e inocentá-lo da reciprocidade política e ideológica com
governo Bolsonaro. No entanto, mais que um sintoma de uma política de mutualidade
e cumplicidade, o levantar da bandeira israelense – suja de sangue palestino –
simboliza o flerte de uma paixão incomum pelo extermínio e desumanidade. Ambos
têm feito uso político da pandemia para intensificar e ampliar políticas
autoritárias.
A conhecida imagem autogerida de
Israel como “única democracia do Oriente Médio” atualiza um massacre bélico que
antes fora justificado pelo (também) mito de “guerra de independência
israelense”, e que revela atualmente os porões de uma política de ocupação colonial
e de massacre do povo palestino. Nesse mês de maio, rememoram-se os 72 anos da
catástrofe palestina, ou al-Nakbah, ocorrida com a fundação do Estado de
Israel, em 1948. Data esta que marca a transformação do nacionalismo judaico em
uma campanha militar de limpeza étnica da Palestina, como sugeriu o jornalista
israelense Ilan Pappé, deixando cerca de 800 mil palestinos desalojados de seus
lares, 531 vilarejos destruídos e centenas de nativos mortos, o maior êxodo da
história palestina e um dos maiores do século XX.
No entanto, as políticas
coloniais não pararam com este evento. Elas são prolongadas por um regime de
colonização e segregação da Faixa de Gaza e Cisjordânia (trata-se das regiões
fragmentadas da Palestina histórica). Listarei aqui parte das violações de
direitos humanos e do direito internacional patrocinadas por Israel – aqui me
refiro a uma lógica estrutural de Estado (Judiciário, Executivo e Legislativo),
funcionando independentemente de políticas de governo. Gostaria que o leitor, à
medida que lê essas linhas, refletisse como tais rituais de humilhação podem
continuar ocorrendo em meio a uma pandemia global:
Controle de construção de
residências palestinas em sua própria terra pelas Autoridades Administrativas
israelenses – no dia 28 de abril, a Força de Defesa Israelense (IDF)
distribuiu 22 “ordens de demolição” na comunidade Qarawat Bani Hassan3.
A construção de casas na Cisjordânia para palestinos é proibida em quase todos
os casos, e apenas 1% podem construir casas dentro da legalidade. Isso
significa que a maioria das casas palestinas são “ilegais” perante a lei
militar israelense. A perversa demolição de moradias ocorre dentro da Lei de
Planejamento e Construção (1965) que justifica as demolições como “punitivas”,
“necessidades militares” e “administrativas”. No entanto, o controle de
construção não se aplica aos colonos israelenses que moram no território
ocupado. As ordens de demolição são muitas vezes entregues apenas um dia antes
da destruição – quando são – e força os moradores a derrubarem suas próprias
casas, ou pagar pela demolição militar, o que custaria uma taxa de 60.000 NIS
(equivalente a 96 mil reais na cotação atual);
Demolição em massa de residências
e estruturas palestinas – em abril, 23 casas foram demolidas na região do
Vale do Jordão sob ordens militares, deixando 113 palestinos (incluindo 56
crianças) desabrigados em meio à pandemia4.
Essa estratégia política de despossessão e apropriação de terras palestina
acontece desde 1948, mas foi intensificada em 1967, quando o Estado de Israel
anexou ilegalmente a Cisjordânia e a Faixa de Gaza. Apesar de existirem três tipos
de justificativas para tal prática, as demolições em massa de residências
palestinas ocorrem para que possam dar lugar a novos assentamentos israelenses.
Ver nota da ONU sobre essas demolições como violação do Quarta Convenção de
Genebra para a proteção das pessoas civis em tempo de guerra.5
Construção de colônias judaicas
ilegais no território ocupado – somam-se em torno de 250 colonatos judaicos
e mais de 620 mil cidadãos israelenses morando da Cisjordânia. A transferência
de cidadãos do território ocupante para o território ocupado, a aquisição de
terras pela força e a subjugação de um povo também são consideradas crimes de
guerra pelo Direito Internacional. No entanto, o projeto colonial sionista que
visa construir milhares de novas unidades destas colônias na Cisjordânia foi
aprovado pelo governo Donald Trump durante a pandemia, reconhecendo o Estado de
Israel como “poder soberano” sobre a Palestina. Essa aprovação é fruto do lobby
israelense no congresso americano e da presença massiva do capital israelense
na economia dos EUA.
Roubo de bens pelas autoridades
administrativas – incluindo bens materiais doados por ONG’s de direitos humanos: só
no mês de abril, as autoridades administrativas já confiscaram no Vale do
Jordão centenas de equipamentos médicos, materiais de trabalho de agricultores
e de soldadores palestinos, assim como painéis solares, tanques d’água, tendas
residenciais e materiais de construção. Os materiais estavam destinados à
construção de clínicas e residências comunitárias emergenciais no combate ao
Covid-19. Os confiscos de bens são práticas regulares que tem por objetivo
único dificultar as condições de sobrevivência do povo palestino;
Espancamentos, ameaça e outras
agressões por militares e colonos judeus contra pessoas palestinas – Desde
março (começo do lockdown na Cisjordânia) já foram documentados mais
de 50 incidentes de violência pelo poder ocupante6,
grande parte agressões físicas contra palestinos fazendo uso de cães e armas
letais (ver vídeo da BT’Selem)7,
além de destruição de propriedades privadas, pastagens e roubo de bens
diversos. A sujeição a uma rotina diária de violência e a rituais de humilhação
– que como vimos, não se resume a uma violência apenas física, mas outras
formas de violência estatal organizada – tem deixado milhões de refugiados
palestinos expostos ao sofrimento permanente;
Incursão militar em campos de
refugiados seguida de prisão administrativa em corte militar israelense –
Desde março, 422 adultos e 20 menores foram mantidos em detenção administrativa
nas instalações de Serviço Prisional de Israel (ver dados da organização
B’Tselem). A prisão administrativa é um procedimento que permite aos militares
israelenses prender palestinos por tempo indeterminado, sem acusação formal,
sem julgamento e sem um representante legal. As incursões acontecem sempre à
noite (ver vídeo)8,
os palestinos presos, sejam adultos ou crianças, são submetidos a confinamento
e interrogatórios com tortura física e psicológica.9
Restrição de movimento dos
palestinos em sua própria terra – Enquanto algumas nações do mundo
experenciam restrições de mobilidade e isolamento pela primeira vez no combate
à covid-19, na Cisjordânia e Gaza o controle absoluto de mobilidade e o confinamento
são políticas impostas por Israel desde 1967. Na Segunda Intifada (2002) elas
foram intensificadas com a construção do Muro israelense “muro do apartheid”,
com os postos militares de controle (checkpoints), com o regime de permissão
que controla a mobilidade dos palestinos dentro e fora da Cisjordânia, pelo
toque de recolher e outros sistemas de encarceramentos. Gaza – bombardeada,
inclusive, no dia 28 de abril por Israel – é considerada a maior prisão a céu
aberto no mundo que sofre bloqueio militar e econômico permanente.
Devido ao fechamento das
“fronteiras” (uso aspas para reafirmar o mito de uma fronteira entre
Israel/Palestina), os mais de 50 mil trabalhadores palestinos que prestam
serviços em Israel foram obrigados pelo governo israelense a decidir entre
fazer isolamento social na Cisjordânia ou morar em Israel por tempo
indeterminado, sob condições de perderem seus vistos de trabalho e o emprego.
Mesmo com o alto risco de contágio do novo coronavírus, o governo israelense
não está realizando testes de covid-19 nestes trabalhadores que estão
temporariamente em Israel e sem condições adequadas de segurança. Eles estão
prestando serviços considerados “essenciais”, majoritariamente em trabalhos de
construção civil, agricultura e indústria.10
De acordo com a Autoridade
Palestina, a maioria dos palestinos na Cisjordânia com covid-19 (527
atualmente) foram infectados enquanto trabalhavam em assentamentos israelenses,
e outros foram contaminados enquanto trabalhavam em Israel. O primeiro caso
de Covid-19 na Faixa de Gaza surgiu com um palestino que havia ido ao
Paquistão, atualmente são 20 confirmados.
Além da violência permanente, os
palestinos enfrentarem a chegada do novo coronavírus com grande escassez de
abastecimento de água, remédios, testes do vírus, respiradores, equipe médicas
e hospitais. No final de abril, por exemplo, militares israelenses invadiram um
centro de saúde em Silwan, um bairro palestino localizado em Jerusalém Oriental
(ocupada por Israel) que fazia diagnóstico do Covid-19. Na ocasião, foram
levados presos os funcionários da clínica e quatro ativistas palestinos. Como
se vê, à potência de morte do vírus, soma-se o desejo de eliminação física e
simbólica do povo palestino.
Notas:
1 Utilizo
a ideia de mito a partir do senso comum, sem me adentrar no sentido antropológico
do termo.
2 Ver
matéria da DCM: “O sequestro da bandeira de Israel em cena que lembra o filme
nazista ‘Triunfo da Vontade’”.
3Ver
matéria do MEE: https://www.middleeasteye.net/news/coronavirus-palestinian-village-israel-demolition-order-amid-lockdown
4 Ver
dados da B’Tselem: https://www.btselem.org/planning_and_building/statistics
5 https://reliefweb.int/report/israel/opt-legality-house-demolitions-under-international-humanitarian-law
9 Ver
dados da organização não governamental Addameer: https://www.addameer.org/
10 Ver https://www.haaretz.com/israel-news/.premium-israel-doesn-t-oversee-palestinian-workers-health-amid-coronavirus-1.8783881
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