sexta-feira, 8 de maio de 2020

Portugal | Trivela contra vozes de burros, cabazada de Quaresma


Ferreira Fernandes | Diário de Notícias | opinião

Eu não vou falar da coelha anã "Acácia, a coelha anã do deputado do Chega", fotografada em pose e em gesto fofo com o referido político. Não vou porque também tive um sagui com o qual dormia, agarradinho ao meu pescoço. É certo que eu ainda não tinha idade para ser elegível, tinha oito anos, mas defendo que todos temos direito às nossas idiossincrasias peludas e não devemos ser julgados por elas.

Outra coisa é o caráter que um eleito revela em público. Se for muito peçonhento há que estar atento. Vota-se, espero, pelas propostas políticas de um candidato, mas alguns traços da personalidade ajudam ou desajudam - e, às vezes chegam a ser determinantes. Ao André Ventura, chegam-me as suas ideias políticas, que me repugnam. Acresce, porém, que o homem, pessoa, vai consoante o seu papel político.

Sorte a do bem público, porque assim, juntar a pessoa mais as ideias, tudo mau, então, aumentam as probabilidades do político ser rechaçado - dirá um ingénuo. Errado. Primeiro, porque aquelas inomináveis criaturas serem o Donald e o Jair, não as impediu de serem eleitas com os execráveis programas deles. Segundo, porque o narcisismo patológico, de um, e o ser calhau, de outro, tiveram um efeito de corrupção sobre as sociedades respetivas. E a maré pútrida já se espalhou mundo fora.

É assim que os malefícios que são de prever vindos do político André Ventura, mesmo antes de se transformarem em leis, salvo seja, já o seu comportamento público faz razias sociais. Deixar-se enxovalhar num programa televisivo da CMTV, engolir os insultos, de "vigarista!" a "palhaço!", não desminto a justeza, preocupa-me é o exemplo, é de um, como dizer... pusilânime. Repetir semanas a fio esses tristes diálogos com o mesmo indivíduo que o amarrota e humilha é de um... de um... não há volta a dar, um pusilânime.

E que é um pusilânime? É uma coisa em forma de descer as escadarias da Assembleia da República, numa manif de polícias, os olhinhos circundantes, medrosos, "onde m"estou a meter, valha-me Deus...", apesar do seu grupinho lhe ter garantido o afeto, "e, credo!, se eles me confundem com um político a sério..." Um pusilânime nota-se pelos olhinhos e transpira pusilanimidade pelos poros.

Também há pusilânimes lá fora. O mais famoso foi um adepto de futebol, desses raquíticos e língua de víbora, com um truque: ele insultava os atletas famosos porque estes tinham tudo a perder se respondiam... Ter na mão um poderoso, ah o prazer cobarde da chantagem!

A amiba, num dia de 1995, apanhou o Cantona a caminho do balneário. Cantona, soberbo, costas direitas, cabeça erguida, gola levantada, e o nosso pusilânime, a metro e meio, tungas: insultou. O Cantona levou nove meses de suspensão, e os adeptos do truque sentiram um choque (um deles, literalmente): se calhar é melhor não... Foi remédio santo.


Onde é que eu estava? Ah, no André Ventura, esse que tem um truque: diz o que lhe vem à cabeça, tem parangonas, mobiliza os excitados e recolhe os votos dos cobardes. Esta semana, ele disse ser necessário "um plano de confinamento específico para a comunidade cigana." E aqui faço um salto epistemológico, do indivíduo André, o pusilânime, para o político Ventura, o sem princípios. O que disse o líder do Chega, o deputado Ventura, foi indecente.

Antes desta bojarda de Ventura, o futebolista Quaresma, no início da quarentena, publicou um vídeo, no Facebook, em casa com a família. Ele, a mulher e o casalinho de filhos jogavam cartas, riam e fingiam discutir. Olhem um cidadão, pelo texto que escreveu: "Desta vez quem resolve o jogo é a quarentena não é o Quaresma! Cumpram as regras que vos são pedidas pelas autoridades. Metam a bandeira portuguesa na janela de casa para apoiar os nossos campeões que estão a trabalhar nos hospitais. Em breve teremos uma vacina, mas até lá a melhor vacina é ser solidário uns com os outros. Obrigado Portugal." 15 de março.

Um mês e picos depois, o cidadão Ricardo Quaresma soube que um deputado português propôs que ele, a mulher e os dois filhos podiam não estar na casa que ele comprou com o seu trabalho e talento e que tantas alegrias deram a Portugal. O tal deputado propunha que se discutisse como pôr as famílias ciganas - o que quer dizer, a de Quaresma também - num "confinamento específico" para ciganos.

Eu estou a transmitir um facto, as minhas palavras são substantivas. Cito André Ventura por palavras da boca dele. Vão lê-las. Sobre isso, para mim, ponto final. Se o leitor, o meu patrão, o polícia da rua, o meu dentista, um parente chegado e a quem devo muito, o cardeal patriarca, Costa ou Marcelo, se alguém quiser ponderar a questão do confinamento específico de ciganos, já não aviso segundo ponto final. Mando à merda.

Já discuto gostosamente sobre o que Quaresma fez por nós. Se o leitor não teve a dita de ver ao vivo, recorra a vídeos. Os cruzamentos de trivela de Quaresma são dos maiores momentos do futebol mundial. Um misto de ciência, pela curva traçada, um sentido dramático pelo espanto de colegas, adversários e público, e uma beleza pegada. Como o outro, Garrincha, também magnífico e demasiado povo, Quaresma teve como destino ser a alegria do povo.

Dito isto, Ricardo Quaresma é soberbo, costas direitas, cabeça erguida, gola levantada, um senhor como Cantona, e ainda maior talento. A Quaresma podia ter-lhe dado na veneta lembrar-se do ocorrido numa tarde de futebol em 1995. Mas não, e um artista da Net, a bela página Insónias em Carvão, criou esta semana um Quaresma, príncipe do séc. XIX, farda de gala e condecorações. Apanhou-o bem: apesar da indecência do pusilânime desbocado, Quaresma não sujou as botas nas trombas dele.

Ricardo Quaresma voltou ao twitter e publicou: "Olhos abertos, amigos, a nossa vida é demasiado preciosa para ouvirmos vozes de burros..." Que frase política, de quem podia aproveitar-se para soprar no fogo, e não o fez. Sem ter andado em seminário, nem universidade inglesa, que respeito pela comunidade, a estreita e a Pátria. Que sentido de Estado!

Que sabedoria de quem, sabendo que há problemas, quer resolver e não inquinar. Quanto mais fácil seria, para uma vedeta que tem a sua vida e a dos seus materialmente resolvida, poder juntar a isso a vã glória de cavalgar uma qualquer rebeldia. Os meus, disse Quaresma aos seus e a nós, somos nós todos. Que lição do que é ser português!

Até a mim enganaste, Ricardo Quaresma, com o teu entrar em campo sempre de sobrecenho carregado, o último gole de água bocejado e cuspido, um agarrar impudico nas partes baixas, as tatuagens expostas... Sabia-te artista mas misturado com um bruto. Mas o que tu és é isso tudo e também um homem comovedor. Chapeau. Respect. Dá cá um abraço.

E ontem, ainda no Facebook, publicas a recordação do teu tio-avô, também futebolista, Artur Quaresma, do Belenenses. Num Portugal-Espanha, 1938, ele e dois colegas da seleção e do clube (José Simões e Mariano Amaro), não fizeram a saudação fascista. Portugal-Espanha, resultado: um hat-trick, ganhámos nós todos a memória de uma coragem. Não era um gesto sem risco: depois daquilo, Cândido dos Reis, treinador dos três no clube e na seleção, foi parar ao campo de concentração do Tarrafal.

Ricardo Quaresma à escrita: "Ontem como hoje, a família Quaresma sempre soube estar do lado certo da história." Talvez cientificamente a frase não valha uma passagem por universidade inglesa, mas há mestrados que são desmentidos à primeira oportunidade. Já a tua frase tem a vantagem de ser dita com o penhor de uma vida assim cumprida. Quaresma, não chegarás a deputado mas chega para eu me sentir honrado em atravessar a rua para te dizer, "Obrigado, senhor."

Sobre tudo isto, André Ventura, que em programas sobre futebol na CMTV ganhou a notoriedade que lhe permitiu ser eleito deputado, disse ao Correio da Manhã: "É lamentável que um jogador da seleção nacional se envolva em política." Quer dizer, além de confinamento específico por ser cigano, avisa-se Quaresma com a mordaça por ser jogador da seleção.

E para remate final, André Ventura ainda disse: "Espero que as autoridades do futebol não deixem que isto se torne o novo normal." É a posição em que o político Ventura melhor joga. Mandar os outros dar porrada porque com o André ele não conta, é um fraco.

Sem comentários:

Mais lidas da semana