Ferreira
Fernandes | Diário de Notícias | opinião
Eu
não vou falar da coelha anã "Acácia, a coelha anã do deputado do
Chega", fotografada em pose e em gesto fofo com o referido
político. Não vou porque também tive um sagui com o qual dormia, agarradinho ao
meu pescoço. É certo que eu ainda não tinha idade para ser elegível, tinha oito
anos, mas defendo que todos temos direito às nossas idiossincrasias peludas e não
devemos ser julgados por elas.
Outra
coisa é o caráter que um eleito revela em público. Se for muito
peçonhento há que estar atento. Vota-se, espero, pelas propostas políticas de
um candidato, mas alguns traços da personalidade ajudam ou desajudam - e, às
vezes chegam a ser determinantes. Ao André Ventura, chegam-me as suas
ideias políticas, que me repugnam. Acresce, porém, que o homem, pessoa, vai
consoante o seu papel político.
Sorte
a do bem público, porque assim, juntar a pessoa mais as ideias, tudo mau,
então, aumentam as probabilidades do político ser rechaçado - dirá um ingénuo.
Errado. Primeiro, porque aquelas inomináveis criaturas serem o Donald e o Jair,
não as impediu de serem eleitas com os execráveis programas deles. Segundo,
porque o narcisismo patológico, de um, e o ser calhau, de outro, tiveram um
efeito de corrupção sobre as sociedades respetivas. E a maré pútrida já se
espalhou mundo fora.
É
assim que os malefícios que são de prever vindos do político André Ventura,
mesmo antes de se transformarem em leis, salvo seja, já o seu comportamento
público faz razias sociais. Deixar-se enxovalhar num programa televisivo da
CMTV, engolir os insultos, de "vigarista!" a "palhaço!",
não desminto a justeza, preocupa-me é o exemplo, é de um, como dizer...
pusilânime. Repetir semanas a fio esses tristes diálogos com o mesmo indivíduo
que o amarrota e humilha é de um... de um... não há volta a dar, um pusilânime.
E
que é um pusilânime? É uma coisa em forma de descer as escadarias da Assembleia
da República, numa manif de polícias, os olhinhos circundantes, medrosos,
"onde m"estou a meter, valha-me Deus...", apesar do seu grupinho
lhe ter garantido o afeto, "e, credo!, se eles me confundem com um
político a sério..." Um pusilânime nota-se pelos olhinhos e transpira
pusilanimidade pelos poros.
Também
há pusilânimes lá fora. O mais famoso foi um adepto de futebol, desses
raquíticos e língua de víbora, com um truque: ele insultava os atletas famosos
porque estes tinham tudo a perder se respondiam... Ter na mão um poderoso, ah o
prazer cobarde da chantagem!
A amiba, num dia de 1995, apanhou o Cantona a caminho do
balneário. Cantona, soberbo, costas direitas, cabeça erguida, gola
levantada, e o nosso pusilânime, a metro e meio, tungas: insultou. O Cantona
levou nove meses de suspensão, e os adeptos do truque sentiram um choque (um
deles, literalmente): se calhar é melhor não... Foi remédio santo.
Onde
é que eu estava? Ah, no André Ventura, esse que tem um truque: diz o que lhe
vem à cabeça, tem parangonas, mobiliza os excitados e recolhe os votos dos
cobardes. Esta semana, ele disse ser necessário "um plano de confinamento
específico para a comunidade cigana." E aqui faço um salto epistemológico,
do indivíduo André, o pusilânime, para o político Ventura, o sem princípios. O
que disse o líder do Chega, o deputado Ventura, foi indecente.
Antes
desta bojarda de Ventura, o futebolista Quaresma, no início da quarentena, publicou um vídeo, no Facebook, em casa com a família. Ele,
a mulher e o casalinho de filhos jogavam cartas, riam e fingiam discutir. Olhem
um cidadão, pelo texto que escreveu: "Desta vez quem resolve o jogo é a
quarentena não é o Quaresma! Cumpram as regras que vos são pedidas pelas
autoridades. Metam a bandeira portuguesa na janela de casa para apoiar os
nossos campeões que estão a trabalhar nos hospitais. Em breve teremos uma
vacina, mas até lá a melhor vacina é ser solidário uns com os outros. Obrigado
Portugal." 15 de março.
Um
mês e picos depois, o cidadão Ricardo Quaresma soube que um deputado português
propôs que ele, a mulher e os dois filhos podiam não estar na casa que ele
comprou com o seu trabalho e talento e que tantas alegrias deram a Portugal. O
tal deputado propunha que se discutisse como pôr as famílias ciganas - o que
quer dizer, a de Quaresma também - num "confinamento específico" para
ciganos.
Eu
estou a transmitir um facto, as minhas palavras são substantivas. Cito André
Ventura por palavras da boca dele. Vão lê-las. Sobre isso, para mim, ponto final. Se
o leitor, o meu patrão, o polícia da rua, o meu dentista, um parente chegado e
a quem devo muito, o cardeal patriarca, Costa ou Marcelo, se alguém quiser
ponderar a questão do confinamento específico de ciganos, já não aviso segundo
ponto final. Mando à merda.
Já
discuto gostosamente sobre o que Quaresma fez por nós. Se o leitor não
teve a dita de ver ao vivo, recorra a vídeos. Os cruzamentos de trivela de
Quaresma são dos maiores momentos do futebol mundial. Um misto de ciência, pela
curva traçada, um sentido dramático pelo espanto de colegas, adversários e
público, e uma beleza pegada. Como o outro, Garrincha, também magnífico e
demasiado povo, Quaresma teve como destino ser a alegria do povo.
Dito isto, Ricardo Quaresma é soberbo, costas
direitas, cabeça erguida, gola levantada, um senhor como Cantona, e ainda maior
talento. A Quaresma podia ter-lhe dado na veneta lembrar-se do ocorrido numa
tarde de futebol em 1995. Mas não, e um artista da Net, a bela página Insónias
em Carvão, criou esta semana um Quaresma, príncipe do séc. XIX, farda de gala e
condecorações. Apanhou-o bem: apesar da indecência do pusilânime desbocado,
Quaresma não sujou as botas nas trombas dele.
Ricardo Quaresma voltou ao twitter e publicou:
"Olhos abertos, amigos, a nossa vida é demasiado preciosa para ouvirmos
vozes de burros..." Que frase política, de quem podia aproveitar-se para
soprar no fogo, e não o fez. Sem ter andado em seminário, nem universidade
inglesa, que respeito pela comunidade, a estreita e a Pátria. Que sentido de
Estado!
Que
sabedoria de quem, sabendo que há problemas, quer resolver e não inquinar.
Quanto mais fácil seria, para uma vedeta que tem a sua vida e a dos seus
materialmente resolvida, poder juntar a isso a vã glória de cavalgar uma
qualquer rebeldia. Os meus, disse Quaresma aos seus e a nós, somos nós todos.
Que lição do que é ser português!
Até
a mim enganaste, Ricardo Quaresma, com o teu entrar em campo sempre de
sobrecenho carregado, o último gole de água bocejado e cuspido, um agarrar
impudico nas partes baixas, as tatuagens expostas... Sabia-te artista mas
misturado com um bruto. Mas o que tu és é isso tudo e também um homem
comovedor. Chapeau. Respect. Dá cá um abraço.
E
ontem, ainda no Facebook, publicas a recordação do teu tio-avô, também
futebolista, Artur Quaresma, do Belenenses. Num Portugal-Espanha, 1938, ele e
dois colegas da seleção e do clube (José Simões e Mariano Amaro), não fizeram a
saudação fascista. Portugal-Espanha, resultado: um hat-trick, ganhámos nós
todos a memória de uma coragem. Não era um gesto sem risco: depois daquilo,
Cândido dos Reis, treinador dos três no clube e na seleção, foi parar ao campo
de concentração do Tarrafal.
Ricardo
Quaresma à escrita: "Ontem como hoje, a família Quaresma sempre soube
estar do lado certo da história." Talvez cientificamente a frase não
valha uma passagem por universidade inglesa, mas há mestrados que são
desmentidos à primeira oportunidade. Já a tua frase tem a vantagem de ser dita
com o penhor de uma vida assim cumprida. Quaresma, não chegarás a deputado mas
chega para eu me sentir honrado em atravessar a rua para te dizer,
"Obrigado, senhor."
Sobre
tudo isto, André Ventura, que em programas sobre futebol na CMTV ganhou a
notoriedade que lhe permitiu ser eleito deputado, disse ao Correio da Manhã:
"É lamentável que um jogador da seleção nacional se envolva em
política." Quer dizer, além de confinamento específico por ser
cigano, avisa-se Quaresma com a mordaça por ser jogador da seleção.
E
para remate final, André Ventura ainda disse: "Espero que as autoridades
do futebol não deixem que isto se torne o novo normal." É a posição em que
o político Ventura melhor joga. Mandar os outros dar porrada porque com o André
ele não conta, é um fraco.
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