#Escrito em português do Brasil
Anúncio da retirada parcial dos
militares americanos em solo alemão força a repensar a estratégia de segurança
de todo o continente. A Alemanha deverá assumir mais responsabilidade e rever
sua política nuclear.
O choque ainda não foi absorvido:
poucos dias após o anúncio do
presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, de que retiraria cerca de um terço
de suas tropas da Alemanha, o assunto ocupa todas as camadas da política
nacional alemã.
Prefeitos de regiões
estruturalmente fracas preocupam-se com uma perda maciça de poder aquisitivo; o
ministro do Exterior Heiko Maas teme por uma debilitação ainda maior das
relações teuto-americanas; e os planejadores militares se perguntam o que essa
decisão significa para a estrutura de segurança europeia.
Afinal, a Alemanha é um dos componentes
centrais das estratégias de defesa americanas na Europa, sendo até mesmo local
de estacionamento de armas nucleares dos EUA, a serem transportadas por aviões
de combate até seu alvo, caso necessário.
No entanto, essa presença será
consideravelmente enfraquecida. Trump quer retirar cerca de 9.500 soldados da
Alemanha. Caso grande parte deles não seja transferida a outros postos no
continente, retornando ao país natal, as relações de poder na Europa se
alterarão.
"Ainda é totalmente obscuro
aonde essa viagem levará e que lacunas de segurança acarretará", comenta
Thomas Kleine-Brockhoff, vice-presidente do German Marshall Fund, instituição
de cunho transatlântico sediada em Berlim. No momento, ele não vê quem possa lucrar
com a decisão, nem mesmo a vizinha Polônia, que poderia esperar um aumento do
contingente americano em seu território.
O enfraquecimento dos laços entre
Alemanha e EUA prejudicam toda a Europa, fato que reconhecem também os países
do Centro e Leste do continente, destaca Kleine-Brockhoff. Mas, apesar de tudo,
a União Europeia (UE) precisa encontrar respostas à retirada dos
americanos.
"A Europa vai ter que
assumir mais responsabilidade", conclui Roderich Kiesewetter, ex-oficial
militar atualmente encarregado de política externa da União Democrata Cristã
(CDU) no parlamento federal. Ele repete assim uma reivindicação que se tem
escutado tanto da chefe de governo Angela Merkel quanto dos departamentos
competentes.
A política alemã ainda não
definiu o que seria esse acréscimo de responsabilidade. Está-se falando de um
pouco mais engajamento numa ou outra região de crise, a fim de aliviar os EUA,
que deverá se concentrar fortemente no rival chinês e na Ásia? Ou a pressão
causada pela retirada levará Berlim a ceder às reivindicações feitas há anos
pelos EUA e a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), aumentando
significativamente seus gastos de defesa?
O especialista em política
externa Kleine-Brockhoff recomenda exatamente essa reação. "A Alemanha
provou na crise de refugiados, e agora na crise do coronavírus, que é bem capaz
de lançar mão de grandes somas de dinheiro." Ou seria cogitável Berlim até
mesmo adotar uma mudança de paradigma, passando a trabalhar por uma Europa
capaz de garantir a própria segurança, mesmo em caso extremo?
Caso seja esse o desejo secreto
dos políticos alemães, sua realização inevitavelmente envolveria Berlim e
Paris, os pesos-pesados políticos e militares remanescentes da UE. E para a
Alemanha, isso voltaria a colocar em primeiro plano uma questão incômoda: seu
posicionamento quanto às armas atômicas. Pois a dissuasão nuclear é considerada
a garantia de vida final para a independência do Estado.
Alemanha e o dilema das armas
nucleares
Há décadas a Alemanha se encontra
sob o escudo protetor atômico da Otan e, portanto, dos EUA. Se a UE quisesse
assumir a própria segurança, teria que encontrar um substituto europeu para
esse escudo. Nas circunstâncias atuais, só a França estaria em cogitação.
Há décadas, os franceses investem
muito em suas forças de dissuasão nuclear, a assim chamada Force de Frappe,
mantendo distância dos EUA e da Otan nesse aspecto: até hoje as armas da França
não estão integradas no planejamento da aliança de defesa.
No entanto já houve diversas
tentativas de interessar a Alemanha pelas armas nucleares francesas, de uma
forma ou de outra. Nos anos 1990, o então presidente da França Jacques Chirac
chegou a considerar uma divisão das responsabilidades. E durante sua presidência,
Nicolas Sarkozy teria oferecido a Merkel a possibilidade de uma participação
financeira. Porém em ambas as ocasiões Berlim declinou, aludindo ao escudo
protetor dos EUA.
No começo de 2020, o presidente
francês, Emmanuel Macron, lançou uma nova tentativa, ao convidar os parceiros
europeus para um "diálogo estratégico" sobre as armas atômicas de seu
país. Embora não estivesse bem claro qual era exatamente a ideia, a ministra
alemã da Defesa, Annegret Kramp-Karrenbauer, aceitou ir até Paris – sem deixar
de imediatamente frisar a importância do escudo americano.
Quatro meses mais tarde, o
"diálogo estratégico" ainda não produziu quaisquer resultados
públicos. Um porta-voz do Ministério da Defesa simplesmente confirma que foram
discutidas com a França "no âmbito das deliberações de rotina sobre
questões estratégicas, também questões de dissuasão nuclear na
Europa".
A carência de informações para o
público certamente também se deve ao caráter sensível das questões de dissuasão
militar. "Se o escudo protetor americano e a participação americana na
Europa e em outros locais for questionada, então diversas pequenas e médias
potências também sentirão a necessidade de se tornarem potências
nucleares", explica Kleine-Brockhoff.
Ou seja: a mera dúvida já poderia
lançar uma reação em cadeia, desestabilizando tanto parceiros quanto rivais.
Ainda assim, em algum momento a noção de um escudo nuclear europeu deverá
entrar em pauta, caso prossiga a retirada militar americana da UE, já iniciada
muito antes de Trump.
"Eu aconselharia o governo
alemão a proceder em pista dupla", propõe Christian Mölling, especialista
em segurança da Associação Alemã de Política Externa (DGAP). "Ou seja,
manter aberta a possibilidade de se voltar para um potencial francês", já
que uma guinada desse gênero exige décadas de preparação.
Uma possibilidade de dar partida
a essa dinâmica poderia ser o avião de combate franco-alemão FCAS, a ser
desenvolvido até 2040, devendo assumir um papel importante na estratégia de
dissuasão francesa. "Vinte anos para criar confiança e uma perspectiva
comum, não é muito tempo. Pelo menos para uma mudança de rumo de política de
Estados", antecipa Mölling.
Um indicador de quão difícil
seria esse caminho, paralelamente a todas as questões técnicas, é o fato de
que, para a França, a dissuasão nuclear é o fulcro de toda sua arquitetura de
segurança, enquanto na Alemanha amplas parcelas da política atualmente exigem
uma retirada das armas atômicas americanas ainda no país.
No tocante a uma "bomba
europeia", já parece quase impossível de solucionar a questão de quem
decidiria sobre o emprego das armas, em prazo mínimo, em caso de conflito. Na
França, a dissuasão é totalmente centrada no presidente, que está sempre
acompanhado de perto por um alto oficial munido do código atômico de
emergência.
Não haverá respostas simples a
essas questões, mas nos próximos anos os alemães possivelmente terão que se
envolver mais de perto com a mentalidade nuclear francesa. Segurança na Europa
sem os EUA – se isso é sequer possível – é um assunto para décadas. Porém, é
preciso começar bem mais cedo a brincar com a ideia.
Andreas Noll (av) | Deutsche
Welle
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