Carvalho da Silva* | Jornal de
Notícias | opinião
Nos últimos dias, as notícias
relativas à evolução da pandemia na região de Lisboa trouxeram-me à memória a
extraordinária comédia de Ettore Scola "Feios, porcos e maus".
Por vezes é preciso fazer-se um
retrato exagerado de uma realidade dura e persistentemente colocada na margem,
para que as consciências dos acomodados despertem e o coletivo abandone a
indiferença.
É confrangedor olhar para o mapa
das freguesias da Área Metropolitana de Lisboa - um cordão infecioso em torno
da capital que só exclui Oeiras e Cascais - onde está inscrita toda uma
trajetória de segregação espacial de classe. De que é que estou a falar? De
processos de décadas, recentemente muito acelerados pelo frenesim turístico e
imobiliário, de expulsão das populações trabalhadoras e de imigrantes para as
periferias de Lisboa. Essas populações estão sujeitas a penosas mobilidades
diárias casa-trabalho-casa que acrescentam horas de incómodo aos horários de
trabalho já de si longos, à vida em urbes degradadas onde não há condições para
garantir os direitos fundamentais. Em muitos casos têm domicílios sem condições
de higiene e habitabilidade.
Apanhadas no turbilhão da covid,
parte significativa dessas populações teve de continuar a trabalhar. O seu
trabalho não pode ser feito a partir de casa e sem ele todos os cidadãos teriam
ficado privados de bens e serviços essenciais e impedidos de se confinarem.
Encontraram, no seu vaivém diário, transportes servidos a meio gás, muitas
vezes apinhados como dantes. Passaram os dias em espaços de trabalho sem a
necessária higienização e adequadas medidas de proteção, espaços esses tão
congestionados como as festas de aniversário de que o coronavírus gosta para
proliferar.
Agora, na Grande Lisboa, há mais
contaminados que em todas as outras regiões. No início da pandemia viveu-se
essa situação nas periferias industriais da região do Porto. E são tão
patéticas as afirmações que no início da pandemia insinuavam que a sua extensão
no Norte era inerente a pressupostos défices culturais da população, como
aquelas que hoje atribuem as culpas do alastramento na região de Lisboa aos
descuidos dos cidadãos que aqui habitam.
Sem diminuir a condenação de
todos os descuidos e desrespeitos, há que dizer: o problema central é nunca
termos estado todos no mesmo barco. E o mais perverso é que nas entrelinhas do
discurso público se vão encontrando alusões, por enquanto envergonhadas, a
"bairros perigosos" e "classes perigosas" que devem ser
confinados com todo o rigor.
O coronavírus é um vírus muito
discriminatório: começa por preferir idosos e pessoas com saúde frágil, gosta
de trabalhadores das periferias urbanas, delicia-se com imigrantes
desprotegidos, com trabalhadores precários e temporários e, vai-se lá saber
porquê, até distingue ramos de atividade - a indústria de processamento de
carnes, a construção civil e, claro, os profissionais de saúde e de prestação
de cuidados a idosos.
Uma resposta decente e porventura
eficaz à covid e às suas consequências será tudo fazer para nos metermos todos
no mesmo barco. Isso aconselha a que se abandonem respostas discriminatórias baseadas
na identificação de alvos de confinamento cada vez mais finos, que se proteja a
sério trabalhadores e populações mais carenciadas e se trabalhe, com visão
estratégica, uma sociedade mais igual e coesa.
*Investigador e professor
universitário
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