quinta-feira, 30 de julho de 2020

Portugal | Porque há racismo no homicídio de Bruno Candé?

Pedro Tadeu | TSF | opinião

O assassinato do ator Bruno Candé Marques foi um crime racista. Porquê?...

É verdade que, pelo que se lê nos relatos jornalísticos, a motivação próxima que levou um homem de 80 anos a disparar quatro tiros no ator negro nada parece ter a ver com racismo: foi o desfecho terrível de uma briga, com vários dias, por causa de uma cadela.

Não faço a mínima ideia quem tinha razão nessa discussão, não faço a mínima ideia como ela se iniciou, não faço a mínima ideia como escalou para o nível de violência que resultou em morte sangrenta no meio da via pública de Moscavide. Aparentemente ninguém sabe ou, pelo menos, não encontrei, nos vários trabalhos jornalísticos a que tive acesso, uma descrição pormenorizada dessa centelha de ira que deflagrou o crime fatal.

Sei que um relato, em comunicado, da família do ator informa que durante as primeiras discussões o futuro assassino utilizou várias vezes o insulto racista como arma de arremesso contra o seu oponente.

Ao trazer para a altercação a ideia de associar à cor da pele do seu antagonista uma hipotética deformação de carácter, como se fosse uma característica inata a todos os que têm o mesmo tom de pele, o homicida de Bruno Candé Marques, factualmente, acrescentou ao ódio pelo individuo com quem discutia não sei o quê sobre uma cadela, um preconceito racial contra os negros em geral - e isso é, como é óbvio, racismo.

O assassino talvez não tenha disparado quatro balas no corpo de Bruno Candé Marques por ele ser negro, mas usou a negritude do ator para o ferir psicologicamente durante a subida da tensão nervosa que o levou a cometer homicídio e, por isso, o quadro completo do crime não pode ser desenhado sem lhe acrescentar essa tinta estigmatizadora do racismo, que envenena a paz das nossas sociedades.

Nenhum relato o indica mas poderemos, em tese, admitir que Bruno Candé Marques até era o culpado pela discussão sobre a cadela, que terá sido irrazoável na argumentação, que terá provocado o descontrolo emocional de um homem de 80 anos, que terá até abusado da fragilidade de um velho: podemos pensar em muitas circunstâncias capazes de menorizar o grau de responsabilidade do assassino e de atribuir também responsabilidades ao assassinado, mas mesmo esse exercício mirabolante nada explica sobre a utilização de insultos racistas por parte do autor dos disparos - a não ser o facto de esse homem ser um racista.

Se eu estiver de cabeça perdida e der um tiro que mate alguém não deixo de ser um assassino. Se eu estiver de cabeça perdida e espancar uma mulher, não deixo de ser um agressor violento. Se eu estiver de cabeça perdida, entrar numa rixa e ferir alguém, não deixo de ser um mutilador.

Seguindo esta lógica, se eu estiver de cabeça perdida e lançar um insulto a um negro por ele ser negro, não deixo de ser um racista.

Mas enquanto um assassino, um agressor ou um mutilador podem ter circunstâncias atenuantes que levem a sociedade e a justiça, embora reconhecendo o crime, a aceitar a diminuição do castigo ou até a declarar a inocência do ato, é difícil encontrar atenuantes num insulto racista.

Um insulto racista não é algo que saia espontaneamente de dentro de nós. O racismo é algo que amadurece na nossa mente ao longo do tempo, é algo que se desenvolve num fraseado, numa anedota, numa linguagem, numa cultura. Por isso, por ser alimentado ao longo da vida, mesmo inconscientemente, um insulto racista muito dificilmente tem desculpa - ele revela, cru (eventualmente até aí subjugada pela civilidade e pela educação), a personalidade de um puro racista.

Claro que, apesar deste incidente ser entre dois indivíduos que só se representam a si mesmos, a política chegou, entretanto, ao caso e já está aí, de volta, o debate recorrente: Portugal é, ou não é, um país racista?

O homem que matou a tiro o português Bruno Candé Marques deverá ser julgado em tribunal por homicídio. Nessa altura a justiça dirá se há ou não há atenuantes para esse crime. Mas se a justiça recusar trazer ao julgamento deste indivíduo o crime de racismo, analisando com serenidade e tempo, como só um tribunal pode fazer, todas as circunstâncias e envolventes da ocorrência, então sim, com essa falha institucional, com essa falha do Estado, quem passa do racismo individual que tristemente polui as almas de uma parte dos portugueses para a acusação geral de que Portugal é um país racista vai poder dizer, como facto indesmentível, que esteve sempre cheio de razão.

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