Pedro Tadeu | TSF | opinião
O
assassinato do ator Bruno Candé Marques foi um crime racista. Porquê?...
É
verdade que, pelo que se lê nos relatos jornalísticos, a motivação próxima que
levou um homem de 80 anos a disparar quatro tiros no ator negro nada parece ter
a ver com racismo: foi o desfecho terrível de uma briga, com vários dias, por
causa de uma cadela.
Não
faço a mínima ideia quem tinha razão nessa discussão, não faço a mínima ideia
como ela se iniciou, não faço a mínima ideia como escalou para o nível de
violência que resultou em morte sangrenta no meio da via pública de Moscavide.
Aparentemente ninguém sabe ou, pelo menos, não encontrei, nos vários trabalhos
jornalísticos a que tive acesso, uma descrição pormenorizada dessa centelha de
ira que deflagrou o crime fatal.
Sei
que um relato, em comunicado, da família do ator informa que durante as
primeiras discussões o futuro assassino utilizou várias vezes o insulto racista
como arma de arremesso contra o seu oponente.
Ao
trazer para a altercação a ideia de associar à cor da pele do seu antagonista
uma hipotética deformação de carácter, como se fosse uma característica inata a
todos os que têm o mesmo tom de pele, o homicida de Bruno Candé Marques,
factualmente, acrescentou ao ódio pelo individuo com quem discutia não sei o
quê sobre uma cadela, um preconceito racial contra os negros em geral - e isso
é, como é óbvio, racismo.
O assassino talvez não tenha disparado quatro balas no corpo de Bruno Candé Marques por ele ser negro, mas usou a negritude do ator para o ferir psicologicamente durante a subida da tensão nervosa que o levou a cometer homicídio e, por isso, o quadro completo do crime não pode ser desenhado sem lhe acrescentar essa tinta estigmatizadora do racismo, que envenena a paz das nossas sociedades.
Nenhum
relato o indica mas poderemos, em tese, admitir que Bruno Candé Marques até era
o culpado pela discussão sobre a cadela, que terá sido irrazoável na
argumentação, que terá provocado o descontrolo emocional de um homem de 80
anos, que terá até abusado da fragilidade de um velho: podemos pensar em muitas
circunstâncias capazes de menorizar o grau de responsabilidade do assassino e
de atribuir também responsabilidades ao assassinado, mas mesmo esse exercício
mirabolante nada explica sobre a utilização de insultos racistas por parte do
autor dos disparos - a não ser o facto de esse homem ser um racista.
Se
eu estiver de cabeça perdida e der um tiro que mate alguém não deixo de ser um
assassino. Se eu estiver de cabeça perdida e espancar uma mulher, não deixo de
ser um agressor violento. Se eu estiver de cabeça perdida, entrar numa rixa e
ferir alguém, não deixo de ser um mutilador.
Seguindo
esta lógica, se eu estiver de cabeça perdida e lançar um insulto a um negro por
ele ser negro, não deixo de ser um racista.
Mas enquanto um assassino, um agressor ou um mutilador podem ter circunstâncias atenuantes que levem a sociedade e a justiça, embora reconhecendo o crime, a aceitar a diminuição do castigo ou até a declarar a inocência do ato, é difícil encontrar atenuantes num insulto racista.
Um
insulto racista não é algo que saia espontaneamente de dentro de nós. O racismo
é algo que amadurece na nossa mente ao longo do tempo, é algo que se desenvolve
num fraseado, numa anedota, numa linguagem, numa cultura. Por isso, por ser
alimentado ao longo da vida, mesmo inconscientemente, um insulto racista muito
dificilmente tem desculpa - ele revela, cru (eventualmente até aí subjugada
pela civilidade e pela educação), a personalidade de um puro racista.
Claro
que, apesar deste incidente ser entre dois indivíduos que só se representam a
si mesmos, a política chegou, entretanto, ao caso e já está aí, de volta, o
debate recorrente: Portugal é, ou não é, um país racista?
O homem que matou a tiro o português Bruno Candé Marques deverá ser julgado em tribunal por homicídio. Nessa altura a justiça dirá se há ou não há atenuantes para esse crime. Mas se a justiça recusar trazer ao julgamento deste indivíduo o crime de racismo, analisando com serenidade e tempo, como só um tribunal pode fazer, todas as circunstâncias e envolventes da ocorrência, então sim, com essa falha institucional, com essa falha do Estado, quem passa do racismo individual que tristemente polui as almas de uma parte dos portugueses para a acusação geral de que Portugal é um país racista vai poder dizer, como facto indesmentível, que esteve sempre cheio de razão.
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