#Publicado e escrito em português do Brasil
As três fases de desenvolvimento, a partir da revolução. A articulação entre setor privado cada vez mais forte e a coordenação do Estado. As mudanças globais resultantes, segundo teóricos como Wallerstein e Giovanni Arrighi
Bruno
Hendler, no A Terra é Redonda
|
1.
A
ascensão chinesa pode ser encarada por diversos ângulos que ora se
complementam, ora se negam mutuamente. O esforço mais importante para quem
busca interpretar esse processo é fugir das teses mais alarmistas (como o
possível confronto militar entre EUA e China) e previsões imediatistas (como as
que prenunciam, há décadas, que o regime político chinês está prestes a
colapsar diante de uma crise econômica – que nunca chega).
Dois
processos são fundamentais para se entender a ascensão chinesa na economia
global. Um deles corresponde a uma mudança no padrão de acumulação doméstico em
relação à Era Mao (1949-1976), a qual foi marcada por reformas de base,
industrialização da zona rural e um plano quinquenal que causou milhões de
mortes no campo. Dois anos após a morte de Mao Tsé-Tung, mais precisamente em
1978, sob a liderança de Deng Xiaoping, a China iniciou o que eles chamam de
“período de reforma e abertura”. Abriu-se ao comércio, investimento e
tecnologia estrangeiros e passou a experimentar fortes processos de
urbanização, industrialização, investimento público, superávit comercial,
exploração de mão de obra barata e um crescimento econômico acelerado que, se
por um lado, manteve-se na média de 10% por cerca de três décadas, por outro,
provocou forte desequilíbrio regional, social e ambiental.
Desde
meados dos anos
O
segundo processo é a transformação da aliança capital-Estado advinda com a
consolidação de empresas nos setores de infraestrutura de energia, de
transportes (a maioria estatal) e em setores de tecnologia de ponta e inovação
(em geral privadas). Em ambos os casos, o governo exerce um papel crucial na
tomada de decisão, na alocação de recursos, na oferta de subsídios financeiros
e na criação de incubadoras de startups que congregam universidades,
laboratórios, empresários e líderes políticos.
Ainda
que a parcela da iniciativa privada tenha crescido muito nos últimos anos,
principalmente entre as pequenas e médias empresas, muitos especialistas
apontam para o dirigismo estatal como um fator crucial no fomento a tecnologia
autóctone, na absorção de propriedade intelectual de empresas do Norte Global e
na consolidação dos “campeões nacionais” em setores que o governo considera
estratégicos, como siderurgia, petróleo, construção civil, ramos militares,
tecnologia da informação etc. Em suma, há evidências de que a China não foi
impulsionada à condição de grande potência graças a um choque de abertura do
socialismo para o capitalismo neoliberal. Ao contrário, o capitalismo foi
enquadrado por um projeto chinês de desenvolvimento de mercado no longo prazo.
Não obstante, os slogans de harmonia e do “sonho chinês”, preconizados por Xi Jinping, escondem várias contradições e disputas internas no jogo de poder no Partido Comunista. Há muita contestação dos novos milionários chineses em relação a projetos definidos pelo governo e a nova classe-média, mais rica e cosmopolita, tende a lutar por mais liberdades individuais e por novas agendas de gênero, de sexualidade e de minorias étnicas. Mas essas disputas têm um tempero particular da mentalidade chinesa, confuciana e asiática, e qualquer generalização a partir de um viés ocidental corre o risco de errar feio. As forças sociais da China profunda são muito diferentes de qualquer coisa que exista no Ocidente e replicar nossos modelos teóricos para entendê-las pode gerar visões muito distorcidas da realidade.
2.
Na
primeira metade da década de 1970, Immanuel Wallerstein propôs uma visão das
ciências sociais que rompesse com as fronteiras metodológicas e epistemológicas
entre sociologia, economia, ciência política e história. Para ele, essas
disciplinas haviam se encastelado em seus próprios reinos de teorias e
conceitos e perdido a noção do todo, isto é, o sistema social que surgiu na
Europa Ocidental, no “longo século XVI”, e que passou a abranger todo o planeta
desde o século XIX. É esse sistema, que tem uma divisão internacional do
trabalho baseada na acumulação incessante de capital e um campo de disputa por
poder entre Estados nacionais soberanos, que Wallerstein chama de sistema-mundo
moderno ou economia-mundo capitalista.
Outra
contribuição de Wallerstein é a construção de pontes entre as teorias abstratas
das ciências sociais e os acontecimentos concretos da história. Ao dizer que o
sistema-mundo moderno existe apenas em um lugar e um tempo definidos (o
“TempoEspaço”) ele reconhece que nenhum conceito é eterno e imutável, mas
alguns padrões sociais podem existir por muito tempo, às vezes séculos ou
décadas – e essas são as estruturas e conjunturas que moldam o tempo curto dos
fatos.
Compreender
a obra de Wallerstein não é uma tarefa fácil. Trata-se de uma leitura densa que
gera inquietação e muito trabalho, pois te força a buscar as raízes mais
profundas das notícias do cotidiano. Isso porque os acontecimentos mais
imediatos são condicionados por estruturas (sociais, políticas, econômicas e
culturais) que vieram se desenvolvendo há muito tempo e que, portanto, não
mudam facilmente. É essa presença das estruturas que nos faz voltar ao século X
para entender a ascensão da China contemporânea ou ao século XIX para
compreender o poder dos EUA no século XXI. É pensar, por exemplo, no racismo
estrutural no Brasil e nos EUA a partir de ciclos de “segregação” (de renda, de
direitos civis, educacional, habitacional, de direito penal) mesmo depois da
abolição da escravidão. Em suma, é um constante esforço de entender a realidade
social para além daquilo que passa no telejornal – ou melhor, é entender a
notícia do telejornal pelo prisma da longa duração.
Autores
como Immanuel Wallerstein e Giovanni Arrighi tratam de ciclos de hegemonias que
tornaram global um sistema de poder e riqueza que surgiu na Europa em fins da
Idade Média. Esse processo, que já tem mais de cinco séculos, enquadrou o mundo
não europeu e não ocidental em sucessivas redes de centro-periferia, primeiro
com o ciclo ibérico-genovês, depois o holandês, o inglês e, finalmente, o
norte-americano. O que esses ciclos têm em comum? Eles foram produto de
alianças bem-sucedidas entre Estados e empresas que se tornaram mais ricos e
poderosos e empurraram para a periferia do sistema (primeiro com colônias,
depois com esferas de influência sobre o Sul Global) os custos de produção
econômica e o uso intensivo da violência.
Assim,
os cem anos de relativa paz e “civilidade” na Europa de
3.
Wallerstein
sugere que “o mundo como o conhecemos” está fadado a desaparecer e ser
substituído por algum outro sistema. Mas o que virá a seguir? Nem o próprio
autor sabe ao certo, limitando-se a sugerir uma bifurcação entre uma ordem mais
autoritária e violenta, e outra mais democrática e emancipatória. Já Giovanni
Arrighi é mais incisivo, pois sua tese não trata de uma crise do sistema em si,
mas uma crise no sistema, em que a hegemonia do século XX, a dos EUA, tende a
ser ofuscada por uma potência ascendente, a China.
Arrighi
aponta para o gigante asiático como o motor de um novo ciclo de expansão
econômica mundial, mas sem a supremacia militar que caracterizou as hegemonias
da Inglaterra e dos EUA. Logo, a liderança chinesa tende a ser híbrida, pois
pode se tornar um centro econômico mais pujante do que o norte-americano, mas
ainda está longe de se tornar mais poderoso do que os EUA em termos militares
ou de apelo cultural. Outro autor dessa corrente, Andre Gunder Frank, reforça a
tese de Arrighi: para ele, a ascensão da Ásia Oriental, e da China em
particular, não é uma novidade e sim o retorno ao padrão histórico de
centralidade asiática anterior ao século XIX. Disto, deriva o nome de seu livro
clássico: “ReOrient” [ReOrient : Global Economy in the Asian Age (University
of California Press)].
Em
todo caso, a simples ascensão da China como força desafiante e alternativa ao
modelo liberal e democrático pregado pelos EUA já é suficiente para se pensar
na crise da hegemonia ocidental. Junte-se a isso a crise de legitimidade dos
regimes políticos dos países europeus e da União Europeia, os rompantes
antidemocráticos e protecionistas da administração Trump, os atritos entre
norte-americanos e europeus no âmbito da OTAN, a questão dos refugiados do
Oriente Médio e do norte da África na Europa e o alinhamento de interesses,
ainda que sutil, de um bloco eurasiano Pequim-Moscou-Berlim: está desenhado o
cenário de fragmentação do bloco ocidental do Atlântico Norte, que foi o centro
do mundo por cinco séculos e que foi comandado, nos últimos duzentos anos, por
um arranjo anglófono com a Inglaterra e depois com os EUA.
Trata-se,
porém, de um processo de longa duração e não será amanhã nem depois de amanhã
que o Ocidente será suplantado por outra grande civilização. Segundo Arrighi,
resta à China e Índia encabeçarem o grupo de países do Sul Global que darão
origem a “uma comunidade de civilizações menos desigual”, mas esta é uma visão
otimista diante dos enormes obstáculos sociais que ainda lhes restam e dos
empecilhos a serem impostos pelos países desenvolvidos. Um exemplo destes
obstáculos é o recuo da posição brasileira em relação ao BRICS (grupo que foi
criado com grande protagonismo do Brasil) e do alinhamento do atual governo com
os EUA.
4.
É
importante lembrar que até o século XIX China e Índia eram as economias mais
pujantes do mundo e suas regiões adjacentes (Oriente Médio, Ásia Central e
Leste Asiático) faziam parte de circuitos de comércio de longa distância que,
quando foram conectadas pelas companhias de comércio europeias a partir do
século XVI, chegavam até a Europa e a América. Depois de dois séculos de
declínio oriental frente à ascensão de um Ocidente impulsionado pela Revolução
Industrial, o que vemos é um retorno da riqueza (e do poder) mundial para a
Ásia. Hoje, a China é o ator mais relevante na região, mas está longe de ser o
único. As origens desse processo remontam ao período do após-Segunda Guerra
Mundial, quando os EUA forneceram recursos para a reconstrução do Japão. Este país
tornou-se o centro de uma economia asiática baseada em redes de produção mais
ágeis, com empresas menores e mais flexíveis e que terceirizaram atividades de
menor valor agregado para os Tigres Asiáticos de primeira geração (Coreia do
Sul, Taiwan, Hong Kong e Singapura) e de segunda geração (países do Sudeste
Asiático como Indonésia, Malásia e Tailândia).
É
neste cenário, conhecido como o “milagre asiático de crescimento”, que a China
pegou carona e iniciou sua ascensão nas cadeias globais de valor. Mas, conforme
dito, engana-se quem defende que o crescimento chinês deveu-se ao toque mágico
da “varinha de condão” do capitalismo e da abertura do mercado doméstico. As
primeiras décadas de reforma econômica pós 1978 foram de pesado investimento
público, protecionismo e controle estatal de setores estratégicos – isto é, foi
o enquadramento do mercado pelo projeto nacional de longo prazo. Soma-se a isso
o aumento da poupança das famílias, os lucros crescentes das pequenas empresas
privadas voltadas para as exportações e a gradual transferência de tecnologia
estrangeira com joint-ventures nas zonas econômicas especiais e voilà:
a China chegou à virada do século XXI comoa “fábrica do mundo”.
5.
A
projeção externa é fundamental para se entender essa terceira era da economia
chinesa contemporânea. Enquanto a Era Deng (de
Considero
que essa projeção sobre o Sul Global decorre de três “motores” que mais se
reforçam do que se contrapõem – ainda que haja importantes contradições: (a) o
motor geopolítico/estratégico, pensado por militares e instituições ligadas às
questões de defesa; (b) o motor de economia política, gerido por grupos e
instituições ligados ao Ministério do Comércio (MOFCOM), aos grandes bancos
públicos e a grandes empresas estatais; (c) e o motor simbólico/institucional
ligado ao Ministério das Relações Exteriores e a outros atores responsáveis
pela difusão do soft power chinês. Por fim, os membros do Partido
Comunista Chinês exercem forte influência em todas essas esferas.
Esses
“motores” são modelos teóricos e, na prática, a atuação internacional da China
resulta da interação entre seus agentes. Costumo dizer que para nós, aqui no
Brasil, entendermos o modus operandi chinês e buscarmos benefícios
nas interações bilaterais é importantíssimo estudar a relação deles com seus
vizinhos, e o Sudeste Asiático é um ótimo “laboratório” de análise. Entre os
séculos X e XIX a China teve um papel importante na dinâmica de poder e riqueza
do Sudeste Asiático – primeiro com o protagonismo dos emissários e navegadores
a serviço dos imperadores e depois com o protagonismo das famílias e guildas de
comerciantes do litoral de Shanghai, Fujian e Guangzhou.
Por
um lado, as relações de centro-periferia que a China tem construído no Sudeste
Asiático não são muito diferentes do que países como Alemanha, Japão, Rússia e
EUA fizeram (e fazem) em seus entornos regionais. Em geral, vemos uma mescla de
atração econômica, superioridade militar que pode ser usada para proteção ou
coerção e simbolismos que reforçam a assimetria. Mas entre todos os casos, a
projeção chinesa em seu entorno – não só no Sudeste Asiático, mas também na
Ásia Central – talvez seja, junto com os EUA, o caso mais robusto de
convergência desses três vetores. O exemplo mais claro é a Nova Rota da Seda (a Belt
and Road Initiative) que, por não ter uma definição clara, funciona como um
amplo guarda-chuva de relações estratégicas, econômicas e simbólicas que têm a
China como centro. E para nós obtermos ganhos práticos nessas interações, aqui
no Brasil, é fundamental estudar a forma como Indonésia, Malásia e Filipinas
têm reagido à ascensão chinesa, por exemplo.
6.
Giovanni
Arrighi sugere que o mundo entra em uma fase de caos sistêmico quando uma
hegemonia está em declínio e a luta por poder e riqueza entre países, empresas
e classes torna-se mais aguda. É uma janela de oportunidade para que atores da
periferia busquem um lugar ao sol, mas é também um momento de luta dos grupos
“de cima” para manter suas vantagens, monopólios e privilégios. A primeira
crise (sinalizadora) da hegemonia norte-americana teria ocorrido nos anos 1970
com a Guerra do Vietnã e o fim do padrão dólar-ouro e a segunda crise
(terminal) teria ocorrido nos anos 2000, com a Guerra do Iraque e a crise
financeira de 2008.
Parafraseando
Gramsci, “o velho resiste em morrer e o novo não consegue nascer” – porque os
EUA ainda retêm boa parte da riqueza e do poder mundiais e a China, na condição
de grande potência emergente, ainda não consegue dar respostas sistêmicas para
os grandes problemas do mundo, tal como os norte-americanos o fizeram no
pós-guerra, em 1945. Porém, o retraimento da política externa dos EUA e o
protagonismo da China em foros multilaterais e na criação de instituições
paralelas às ocidentais, como o Banco de Investimento e Infraestrutura
Asiático, são sinais claros de que o caos sistêmico pode ser substituído por um
novo mundo sinocêntrico ou um consórcio sino-americano ou mesmo
asiático-ocidental.
Neste
período de transição uma guerra de grandes proporções é quase impossível, mas
atritos entre EUA e China são esperados e já vêm acontecendo. Sob um viés
teórico realista, o confronto direto é improvável porque se trata de duas
potências nucleares capazes de destruir-se mutuamente, de forma que a disputa
militar será empurrada para setores não convencionais como guerra cibernética,
domínio de tecnologia aeroespacial e até mesmo a corrida por rotas e recursos
no polo norte – e a proximidade sino-russa poderá fazer a diferença nessas
áreas.
Sob
um viés marxista, a disputa por áreas de influência, tão comum na Guerra Fria,
também tende a reaparecer, principalmente na Ásia, mas também na África, no
Oriente Médio e na América Latina. Nesse caso, veremos mais do mesmo: cooptação
de elites políticas e incentivos e/ou punições econômicas para moldar o
alinhamento de política externa de países do Sul Global. Se, por um lado, a
China parece ter mais cacife financeiro e vontade política para isso, vide a
Nova Rota da Seda, os EUA serão pressionados a fazer valer suas alianças
construídas na Guerra Fria e os “conflitos por procuração” podem ressurgir.
A
atual crise na Venezuela, por exemplo, só pode ser entendida quando se leva em
conta a atuação das duas potências. Outro caso é a recente onda de formalização
de relações diplomáticas de países da América Central e Caribe com Pequim
(República Dominicana, El Salvador, Panamá, Costa Rica, entre outros), isolando
Taiwan em troca de incentivos econômicos. É curioso notar que a região que foi
alvo da “diplomacia do Dólar” no começo do século XX tornou-se alvo da
“diplomacia do Yuan” no século XXI.
Sob
um viés liberal, a guerra é improvável porque as economias de China e EUA são
interdependentes: se uma quebra, a outra também quebra. Porém, ambos têm
buscado alternativas para essa “destruição econômica mútua assegurada”: os EUA
pela via do protecionismo comercial e a China pela reciclagem de capital em
setores não financeiros no Sul Global e na Europa. No limite, não acredito que
a interdependência econômica seja um fator suficiente ou necessário para evitar
a guerra, já a dissuasão nuclear, sim.
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