quinta-feira, 20 de agosto de 2020

Acordo Israel-Emirados: uma comédia de enganos


Israel e os Emirados Árabes Unidos, com mediação activa dos Estados Unidos, assinaram um acordo de paz para pôr termo a uma guerra que não existia. A comunidade internacional, salvo honrosas excepções, aplaudiu e respirou de alívio fingindo acreditar que Israel vai desistir da anexação da Cisjordânia e viabilizar a solução dos dois estados.


Israel e os Emirados Árabes Unidos, com mediação activa dos Estados Unidos, assinaram um acordo de paz para pôr termo a uma guerra que não existia. A comunidade internacional, salvo honrosas excepções, de consciência pesada quanto à questão palestina, aplaudiu e respirou de alívio fingindo acreditar que Israel vai desistir da anexação da Cisjordânia e viabilizar a solução dos dois estados. Mas Netanyahu, que poderá ter muitos defeitos, mas não o de esconder o que pensa, já disse que concordou em atrasar a anexação, como parte do acordo, mas que os planos continuam em cima da mesa.

Israel e os Emirados Árabes Unidos concordaram, na passada quinta-feira, em normalizar as suas relações num acordo mediado pelo Presidente dos EUA. O acordo surgiu após uma conferência telefónica entre o Presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, o Primeiro Ministro israelita, Benjamin Netanyahu e o Xeque Mohammed bin Zayed Al Nahyan, príncipe herdeiro de Abu Dhabi.

Os Emirados Árabes Unidos tornaram-se o primeiro país do Golfo Arábico a alcançar um acordo sobre a normalização das relações com Israel, culminando anos de contactos discretos entre os dois países no comércio e na tecnologia.

O acordo prevê que Israel suspenda os seus planos de anexar as áreas palestinas da Cisjordânia ocupada e tem sido saudado como um passo histórico para a paz na região e para o fim do “conflito israelo-palestino”. Mas nada se diz no acordo que comprometa Israel com a viabilização da solução dos dois estados, como a retirada dos territórios ocupados em 1967 ou sequer o congelamento da expansão dos colonatos. Na realidade, houve o cuidado de assegurar que a Palestina e os palestinos estão totalmente ausentes do acordo: as áreas que Israel pretende anexar são referidas como “as áreas delineadas na Visão do Presidente para a Paz”!

O analista Omar Baddar disse à Al Jazeera que o acordo não tem nada de histórico ou de inovador: «Israel não “travou” a anexação da Cisjordânia – a anexação é já uma realidade de facto no terreno. Israel apenas “suspendeu” o seu anúncio de uma realidade que já tinha imposto ilegalmente aos palestinos. É falso dizer que Israel a suspendeu a pedido dos EAU».

E de facto, dirigindo-se mais tarde aos jornalistas em Telavive, o primeiro-ministro israelita Benjamin Netanyahu disse ter concordado em “atrasar” a anexação como parte do acordo com os EAU, mas que os planos continuam “em cima da mesa”.

Sobre o que esperam os EAU deste acordo, a opinião de Lisa Goldman, co-fundadora do site 972Mag, é de que os EAU estão «a reclamar uma vitória diplomática em troca do que é provavelmente uma cooperação de segurança muito valiosa por parte de Israel».

Também para Trita Parsi, vice-presidente executivo do Quincy Institute, o principal objectivo da decisão dos EAU e de Israel de normalizar os laços é mente de Washington «militarmente empenhado na região» com o espectro da ameaça do Irão.


As reacções dos protagonistas

Donald Trump, que vê nesta iniciativa um bálsamo para a sua reeleição ameaçada, deu a entender que os EAU podem não ser o último país a fazer um acordo com Israel, que até agora só teve relações diplomáticas formais com duas outras nações árabes, Egipto e Jordânia.

O candidato presidencial democrata Joe Biden, não podendo ficar atrás, saudou o acordo Israel-UAE como um passo histórico em direcção a um Médio Oriente mais estável. «A anexação seria um golpe duro para a causa da paz, razão pela qual me oponho agora e me oporia a ela como presidente».

Entretanto, a Casa Branca procura aproveitar o impulso do acordo entre Israel e os EAU para apelar a mais países árabes e muçulmanos para fazerem acordos semelhantes.

Em Israel, o Primeiro-Ministro israelita Benjamin Netanyahu, a braços com um processo judicial por corrupção, agradeceu aos líderes do Egipto, Omã e Barém pelo seu apoio ao acordo.

O acordo foi também saudado pelo primeiro-ministro alternativo e ministro da Defesa Benny Gantz e pelo ministro dos Negócios Estrangeiros Gabi Ashkenazi.

O líder da oposição Yair Lapid disse que «negociações e acordos, e não medidas unilaterais como a anexação» eram fundamentais para as relações diplomáticas de Israel.

Quem não está satisfeito com o acordo são os colonos israelitas extremistas. David Elhayani, chefe do Conselho Yesha dos colonos israelitas, criticou fortemente o Primeiro-Ministro israelita: «Netanyahu prometeu repetidamente a aplicação da soberania israelita na Judeia, Samaria e no Vale do Jordão», disse Elhayani. «Ele enganou-nos. Enganou meio milhão de residentes da zona e centenas de milhares de eleitores».

Nos Emirados Árabes Unidos o Ministro de Estado dos Negócios Estrangeiros, Anwar Gargash, saudou o acordo. «Embora a decisão de paz continue a ser basicamente israelo-palestina, a ousada iniciativa do xeque Mohammed bin Zayed permitiu, ao banir o espectro da anexação de terras palestinas, mais tempo para oportunidades de paz através da solução de dois Estados».

As reacções dos palestinos

«A liderança palestina rejeita e denuncia o anúncio trilateral e surpreendente dos EAU, de Israel e dos EUA», disse Nabil Abu Rudeineh, um conselheiro sénior de Mahmoud Abbas lendo uma declaração feita em Ramala, na Cisjordânia ocupada. «O acordo é uma traição a Jerusalém, à Al-Aqsa e à causa palestina». A declaração exortava ainda a Liga Árabe e a Organização de Cooperação Islâmica a reunirem-se para rejeitar o acordo, acrescentando «nem os EAU nem qualquer outra parte tem o direito de falar em nome do povo palestino».

Mustafa Barghouti, secretário-geral e co-fundador da Iniciativa Nacional Palestina disse que o acordo entre Israel e os EAU não irá impedir os planos de anexação do primeiro-ministro israelita Benjamin Netanyahu. «Os israelitas e os Emirados já tinham relações, nunca houve uma luta entre eles, por isso não sei por que razão precisam de lhe chamar um acordo de paz», disse Barghouti à Al Jazeera.

Também o Hamas, pelo seu porta-voz Hazem Qassem, rejeitou o acordo: «Este acordo não serve absolutamente a causa palestina, serve antes a narrativa sionista. Este acordo encoraja a ocupação [israelita] a continuar a negar os direitos do nosso povo palestino, e mesmo a continuar os seus crimes contra o nosso povo».

As vozes críticas

Até ao momento, foram poucas as vozes que se levantaram para denunciar o acordo.

A Turquia disse que a história não esquecerá e nunca perdoará o “comportamento hipócrita” dos Emirados Árabes Unidos ao concordar com um acordo com Israel para normalizar as relações «traindo a causa palestina em nome dos seus estreitos interesses».

O Presidente iraniano Hassan Rouhani desacreditou o acordo considerando-o um “enorme erro”: «Os governantes dos Emirados pensam que se se aproximarem da América e do regime sionista, a sua segurança irá melhorar e a sua economia irá crescer. Mas isto é totalmente errado».

Já o Paquistão, que mantém laços comerciais com a península arábica, tem uma abordagem mais cautelosa: «O Paquistão tem um compromisso permanente com a plena realização dos direitos legítimos do povo palestino, incluindo o direito à autodeterminação. A paz e a estabilidade na região do Médio Oriente são também a principal prioridade do Paquistão».

Mohamed Amari Zayed, membro do Conselho Presidencial líbio, disse à Al-Jazeera TV que «isto é uma traição dos EAU que não surpreende. Com o seu papel destrutivo na Líbia, Síria e Iémen, é um resultado natural do embargo imposto ao Qatar, à Palestina e às nações independentes da região».

O líder do movimento Hezbollah, Hassan Nasrallah, condenou o acordo entre Israel e os EAU para normalizar os laços como uma traição ao Islão e aos árabes, dizendo que foi feito como um favor ao Presidente dos Estados Unidos Donald Trump.

Ras Mubarak, um parlamentar do Gana, recordou que «durante a luta do povo sul-africano contra o apartheid, os Estados africanos formaram a linha da frente da resistência contra o regime brutal de Pretória. Da Zâmbia à Tanzânia, ao Gana e à Argélia, países de todo o continente africano prestaram apoio logístico, político e económico à luta de libertação da África do Sul», para exortar todos os Estados árabes a «tratar o Estado de apartheid de Israel da mesma forma que os Estados africanos trataram a África do Sul do apartheid».

Os aplausos generalizados

A grande maioria das reacções são de satisfação pelo acordo e de convicção de que ele abrirá caminho para uma solução negociada de dois Estados na Palestina.

«O secretário-geral das Nações Unidas congratula-se com este acordo, esperando que ele crie uma oportunidade para os líderes israelitas e palestinos se empenharem de novo em negociações significativas, que realizem uma solução de dois Estados em conformidade com as resoluções relevantes das Nações Unidas, o direito internacional e os acordos bilaterais», disse um porta-voz de António Guterres.

«A China saúda quaisquer medidas que ajudem a aliviar as tensões entre os países do Médio Oriente, promovendo a paz e estabilidade regionais», disse o porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros chinês, Zhao Lijian, acrescentando que a China esperava que em breve fossem tomadas medidas concretas para colocar a questão palestina «no caminho do diálogo em pé de igualdade».

O Alto Representante da União Europeia para os Negócios Estrangeiros e a Política de Segurança, Josep Borrell, saudou o acordo EAU-Israel: «A suspensão da anexação é um passo positivo, os planos devem agora ser abandonados por completo. A UE espera que sejam retomadas as negociações israelo-palestinas sobre a solução de dois Estados com base em parâmetros internacionalmente acordados».

A Alemanha congratulou-se com o acordo “histórico” entre Israel e os Emirados Árabes Unidos. A normalização dos laços entre os dois países «é uma importante contribuição para a paz na região», afirmou o Ministro dos Negócios Estrangeiros alemão Heiko Maas.

O Primeiro-Ministro do Reino Unido Boris Johnson congratulou-se com o acordo entre Israel e os EAU que levará a uma total normalização das relações diplomáticas entre os dois Estados. «A decisão dos EAU e de Israel de normalizar as relações é uma notícia extremamente boa», disse Johnson no Twitter. «Era minha profunda esperança que a anexação não se concretizasse na Cisjordânia e o acordo de hoje de suspender esses planos é um passo bem-vindo no caminho para um Médio Oriente mais pacífico».

O Presidente francês Emmanuel Macron saudou a “decisão corajosa” dos Emirados Árabes Unidos de normalizar os laços com Israel esperando «que ela contribua para o estabelecimento

*O Diário.info

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