#Escrito e publicado em português do Brasil
Com menos de 3% da população do
planeta, Brasil já tem quase 15% dos mortos por covid. Mas Bolsonaro ainda
consegue fugir à responsabilidade. E mais: na prisão arbitrária de Franco
Netto, provável ataque à Fiocruz
Maíra Mathias | Outras Palavras
O SILÊNCIO DOS VIVOS
No sábado, chegamos às cem mil
mortes e três milhões de infecções pelo novo coronavírus conhecidas no Brasil.
A tragédia sem precedentes na história do país não mereceu panelaços. A
imprensa tem se esforçado para dimensionar seu significado em histórias, comparações, simulações e gráficos diversos. Mas alguma coisa parece ter
estancado a indignação que era demonstrada numa base diária meses atrás.
Concordamos com o advogado Thiago Amparo quando ele diagnostica que o luto
coletivo existe, só que está sendo esmagado pela necropolítica. “Bolsonaro está vencendo pelo cansaço”, constata, por sua vez, o
jornalista Bernardo Mello Franco.
No dia do fatídico marco, só
atingido até agora pelos Estados Unidos, Jair Bolsonaro celebrou a vitória do Palmeiras e replicou a
propaganda da sua secretaria de Comunicação que distorce informações para comemorar números catastróficos.
Como os milhões de “recuperados” – conceito extremamente duvidoso em se
tratando de uma síndrome que tem mostrado poder para desabilitar
permanentemente suas vítimas, com pulmões lesionados, rins danificados. Ou o
número de mortes por milhão de habitantes, métrica que não serve. “Se cai um
avião com 210 pessoas ninguém diz que foi uma morte por milhão de habitantes”,
explica Ricardo Parolin, em entrevista ao UOL. “Com cerca de 3% da
população mundial, concentramos 14% dos óbitos registrados por covid-19”,
situam as pesquisadoras Jurema Werneck, Gulnar Azevedo e Zeliete Zambon.
Hoje, a quantidade de vidas
perdidas já aumentou mais um “muito”: mil cadáveres se acumularam de lá para
cá. “E seguimos contando os corpos que não podemos velar”, escreve Antonio
Prata, resgatando a conclusão do atual presidente sobre a ditadura – ‘o erro
foi ter torturado e não matado’, disse Bolsonaro no rádio em 2016 – para
inferir: “Era óbvio, mas segue sendo surpreendente que um presidente eleito
hasteando a bandeira da morte nos entregue, vejam só, a morte.”
Diante dos cem mil mortes, Supremo
e Congresso decretaram luto oficial. Não há punição à vista para quem
optou pelo “caminho da insensatez”. “A responsabilização por esta tragédia humana não pode deixar de
ser feita”, defendem as entidades da ciência, da advocacia, da imprensa,
etc. O difícil é achar quem tenha poder para tal e esteja disposto a assumir a
tarefa. Aparentemente, estão todos “tocando a vida”.
OUTRAS ENGRENAGENS
Na sexta, o ministro da Justiça,
André Mendonça admitiu que a Secretaria de Operações Integradas (Seopi) do
ministério produziu um “relatório” sobre 579 policiais que se declararam
antifascistas na internet. O reconhecimento aconteceu depois de dias em que o
ministro tentou abafar o escândalo do dossiê de inteligência, revelado por
Rubens Valente, no UOL. Segundo parlamentares, ele se defendeu, dizendo
que tomou conhecimento do documento só depois da reportagem.
As declarações de Mendonça foram
dadas em reunião da comissão mista do Congresso que trata do tema, fechada ao
público. “Para mim ficou patente e caracterização de que vivemos um caso clássico de espionagem política do governo em
relação a opositores“, avaliou o senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP),
presente no encontro.
Em 2019, um dos primeiros atos do
presidente foi transformar a Seopi em um serviço de informação. Antes, a
Secretaria tinha a missão de intermediar ações policiais. Na mesma linha, o governo
Bolsonaro gastou 68% a mais com ações de inteligência e segurança institucional
do que a média verificada na gestão de Michel Temer. Ao todo, foram R$ 90,9
milhões – e esse ano, os gastos já tinham alcançado R$ 41,7 no início de agosto,
segundo levantamento do Globo.
Em 31 de julho, a Abin
passou por uma reestruturação e foi criado um Centro de Inteligência Nacional,
com mais cargos e a atribuição de enfrentar “ameaças à segurança e à
estabilidade do Estado e da sociedade” – bem no espírito da Lei de Segurança
Nacional, entulho autoritário cada vez mais usado pelo governo.
O relatório do Ministério da
Justiça, os gastos crescentes com vigilância e a criação do Centro da Abin dão
concretude às declarações que vieram à tona com a divulgação do vídeo da
reunião ministerial do dia 22 de abril, quando Bolsonaro cobrou relatórios
diários de inteligência da Polícia Federal, que não tem essa atribuição, e
disse que tinha um sistema “particular” de informação.
Naquele mesmo dia 22, Bolsonaro
afirmou que iria intervir no Supremo, conforme reportagem da revista Piauí –
que até agora não foi negada pelo Planalto. O El País constatou que
nem os próprios ministros da corte parecem dispostos a dar a importância que a
revelação merece. Preferem botar panos quentes por avaliarem que o pior
momento da crise institucional já passou. “Se você não puder e/ou não quiser
fazer impeachment e cadeia, é mais fácil não dizer em voz alta que Bolsonaro
tentou um autogolpe”, nota Celso Rocha de Barros em sua coluna na Folha.
Tem pouco mais de um mês que
o presidente não ataca os outros poderes. Bolsonaro está mais pragmático em
meio às investigações e denúncias que pesam sobre si e sua família. Só nos
últimos dias, foram reveladas inconsistências nas suas declarações sobre os depósitos feitos
por Fabrício Queiroz e Márcia Aguiar na conta de Michelle Bolsonaro.
Foram rastreados 27 depósitos num total de R$ 89 mil. Quando o caso estourou em
2018, o presidente disse que o dinheiro (então depósitos que totalizavam R$ 24
mil) era parte do pagamento de um empréstimo feito por ele a Queiroz no valor
de R$ 40 mil. Já a última envolvendo o senador Flávio Bolsonaro
(Republicanos-RJ) dá conta de que ele usou R$ 86 mil em espécie para pagar salas comerciais
no Rio.
“Por mais grave que seja, o já
revelado está longe do que pode alcançar. Bolsonaro sabe o que esconde e se preparou desde a campanha para montar um sistema protetor”,
nota Janio de Freitas.
E parte do mecanismo que dá
hoje sustentação ao presidente (e casa bem ao pragmatismo recém-adotado) é o
auxílio emergencial. Para André Singer, a “pandemia criou uma situação
inesperada que pode facilitar uma transição inesperada”, já que para receber os
R$ 600 a
maioria dos beneficiários do Bolsa Família teve de abrir mão do programa criado
–e super identificado – com Lula e com o PT. “É como se as pessoas tivessem
saindo do programa lulista e entrando num programa bolsonarista. O governo
começou a pensar numa estratégia inteligente, mas depende de ter recursos, que é fazer com que as pessoas não voltem mais para o Bolsa
Família, mas entrem direto no Renda Brasil”, analisou, numa entrevista ao Globo em
que fala que, pela primeira vez, vê se delinear no horizonte uma ameaça
concreta ao lulismo.
ENQUANTO ISSO…
Alexander Lukashenko, que
recomendou à população da Bielorrússia tomar vodca e ir à sauna para combater o
novo coronavírus, foi reeleito presidente do país ontem. O processo
eleitoral foi marcado por forte repressão. Na véspera do pleito, a
líder da campanha de Svetlana Tikhanovskaya, candidata da oposição, foi presa.
Svetlana é casada com o youtuber Siarhei Tikhanovski, que liderava as pesquisas
informais da corrida presidencial, mas foi preso em maio – destino de outro
candidato, Viktor Barbariko, detido em junho.
O acesso a sites da oposição
e da comissão eleitoral, assim como a redes sociais e serviços de mensagens foi
limitado pelo governo – que, ainda por cima, estabeleceu o voto antecipado,
aumentando as suspeitas de fraude. O mecanismo nada tem a ver com a pandemia:
Lukashenko é um dos poucos chefes de Estado que não estabeleceu medidas de
distanciamento social, e já chegou a declarar que a crise sanitária não passava
de “psicose”. Ontem, depois da divulgação da sondagem oficial que deu 79% ao
político no poder desde 1994, houve protestos na capital Minsk. A polícia
ocupou as ruas, usou canhões d´água para dispersar a população e prendeu manifestantes.
PESQUISADOR SOLTO
O pesquisador da Fiocruz
Guilherme Franco Netto foi solto na tarde de ontem. Ele havia sido preso na
manhã da quinta, no âmbito da Operação Dardanários que teve como
principal alvo o secretário de Transportes do governo Doria, Alexandre Baldy. A
prisão do pesquisador foi baseada nas delações de Edson Giorno e Ricardo
Brasil, donos da empresa de tecnologia da informação Vertude. Eles acusaram
Baldy e seu primo – Rodrigo Dias, ex-presidente da Funasa e do Fundo Nacional
de Desenvolvimento da Educação – de receberem propinas em troca de vantagens
à Vertude. Um dos contratos do suposto esquema de corrupção teria sido
firmado com a fundação de apoio da Fiocruz, a Fiotec. Segundo o repórter Fausto Macedo, os delatores apontaram o
pesquisador da Fundação como seu “contato” na autarquia.
Franco Netto é um dos
cientistas mais respeitados do país na área de saúde ambiental e tem recebido
solidariedade de diversas entidades e pesquisadores da área, que viram com
estranheza todo o caso. Outra Saúde apurou que, nos bastidores, é
disseminada a avaliação política de que a prisão teve como objetivo
desacreditar a Fiocruz e colocar lenha na fogueira para uma intervenção do
governo federal nas eleições à presidência da Fundação, que acontecem este ano.
Um site para coletar assinaturas em apoio ao pesquisador foi
criado no fim de semana.
PODE FALTAR O BÁSICO
Semana passada, destacamos por
aqui o anúncio feito pelo secretário de Ciência, Tecnologia e Insumos
Estratégicos, Hélio Angotti, de que o ministério da Saúde havia encomendado 110
milhões de seringas e agulhas para viabilizar a vacinação contra o coronavírus
– caso o imunizante seja aprovado, é claro. Mas a entidade que representa os
produtores de itens hospitalares faz um alerta: o tempo que a indústria
nacional leva para produzir 50 milhões de seringas é de cinco meses. Entrevistado pela coluna de Mônica
Bergamo, o superintendente da Abimo Paulo Henrique Fraccaro, lembra ainda que a
importação pode ser um caminho difícil, já que a demanda pelo insumo vai
crescer em todo mundo, e que não existe gordura para cortar, uma vez que o
calendário nacional tem que continuar garantindo a aplicação de outras
vacinas.
Aliás, pesquisadores estão
contestando pesadamente – e com toda a razão – a ideia do Ministério de
replicar os critérios de vacinação da influenza para o coronavírus. As
crianças, por exemplo, estão no grupo de risco da gripe, mas não da covid-19.
Na pandemia de H1N1, os critérios foram definidos por um comitê de especialistas.
“É um absurdo as possíveis vacinas contra Sars-Cov-2 seguirem a mesma lógica de
vacinação da Influenza. É um erro. Doenças diferentes requerem estratégias diferentes“,
defende Fernando Hellmann, da Universidade Federal de Santa Catarina, em
entrevista ao Globo.
ÚLTIMOS ANÚNCIOS
A candidata a vacina da empresa
chinesa CanSino começará a fase 3 dos testes clínicos na Arábia Saudita. O
objetivo é angariar cinco mil voluntários por lá. Outros países, como o Brasil,
já foram sondados pela farmacêutica para participar desta etapa, mas ainda não
há nada fechado. A tecnologia, desenvolvida em conjunto com a unidade de
pesquisa militar da China, usa um vírus de resfriado humano enfraquecido (o
adenovírus 5) para ensinar o sistema imunológico a reconhecer o SARS-CoV-2.
Como já falamos por aqui, existem candidatas a vacina contra o HIV que
usam esse mesmo mecanismo, mas estudos apontaram o aumento do risco de infecção nesses
casos. A vacina recebeu licença para o uso nas Forças Armadas antes mesmo
da divulgação dos resultados da fase 2, que parecem promissores e foram
publicados na Lancet no final do mês passado.
Na sexta, foi a vez de o
governo russo anunciar que vai conceder esta semana o registro da vacina
desenvolvida pelo Instituto Gamaleya de Epidemiologia e Microbiologia. O
plano já havia sido divulgado: começar a vacinar a população em setembro. Esse
imunizante também usa adenovírus, mas é cercado de controvérsias. Primeiro
porque os pesquisadores afirmaram ter aplicado a candidata neles mesmos, o que
segundo a própria associação russa de pesquisa clínica (Racra) constituiu violação dos princípios desse tipo de teste e das
regulações internacionais. Depois, porque se sabe muito pouco sobre os
estudos, que não chegaram à fase 3.
A fase “1-2” teria envolvido apenas 38 voluntários.
“No momento todas as vacinas sérias
feitas por empresas e universidades de renome estão comprometidas com a
transparência. Isso não foi feito com a vacina da Rússia que para nós,
cientistas, não existe. Não sabemos nada sobre ela até agora, qual é a tecnologia
empregada, os resultados da fase pré-clínica. Não foi feita uma única
publicação”, critica Natália Pasternak, do Instituto Questão de Ciência, em
entrevista à Folha.
FALANDO EM VACINA
O plenário do Supremo Tribunal
Federal pode julgar se os responsáveis têm o direito de decidir não
vacinar crianças com base em justificativas ‘filosóficas, religiosas, morais e
existenciais’. O julgamento deve colocar em embate dois argumentos: a liberdade
dos pais versus o bem estar das crianças e adolescentes. O caso em análise
subiu para o STF depois de diferentes decisões nas instâncias inferiores. Tudo
começou em 2019, quando o Ministério Público de São Paulo entrou na Justiça contra um casal de Paulínia que nunca havia vacinado o
filho, então com três anos. O processo corre sob sigilo, mas se sabe que
entre os argumentos, os pais dizem ser “adeptos da filosofia vegana” e
caracterizam a imunização como “intervenção invasiva”. A primeira instância
acatou essas justificativas; o Tribunal de Justiça, não. O relator de ação
no Supremo é Luís Roberto Barroso, que propôs atribuir repercussão geral levando o caso ao
plenário. Os ministros vão decidir se o julgamento pelo pleno se justifica.
ASSINE DE GRAÇA
Esta é a edição do dia 10 de agosto da nossa newsletter diária: um resumo interpretado das principais notícias sobre saúde do dia. Para recebê-la toda manhã em seu e-mail, é só clicar aqui.
Esta é a edição do dia 10 de agosto da nossa newsletter diária: um resumo interpretado das principais notícias sobre saúde do dia. Para recebê-la toda manhã em seu e-mail, é só clicar aqui.
Gostou do texto? Contribua para
manter e ampliar nosso jornalismo de profundidade: OUTROS QUINHENTOS
Sem comentários:
Enviar um comentário