Eliminar
a violência contra crianças até 2030: Quantos Países da União Europeia vão
cumprir o objetivo? Nenhum!
Odete
Severino Soares* | Expresso | opinião
Cinco
anos depois da adoção da Agenda 2030 pelos 193 Países da ONU, nenhum dos 27
países da União Europeia (UE) está no bom caminho para alcançar, até 2030, o
Objetivo de Desenvolvimento Sustentável (ODS) 16.2 “acabar com o abuso,
exploração, tráfico e todas as formas de violência e tortura contra crianças”.
A
Agenda 2030 ao introduzir um objetivo específico que apela à eliminação de
todas as formas de violência sobre as crianças fez um avanço histórico.
Pretendia-se criar uma dinâmica única para um movimento à escala mundial para
que os países colocassem termo a este fenómeno.
Segundo
a edição de 2019 do "Relatório de acompanhamento do Eurostat sobre os
progressos para alcançar os ODS no contexto da UE", a avaliação do ODS
16.2 não pode ser medida por falta de dados existentes na UE nos últimos cinco
anos. Não foram aplicadas as metas e indicadores propostos para este ODS no
espaço europeu.
À
escala global, a situação também não é animadora. O que foi feito até agora não
é suficiente e, por isso, é necessário aumentar o nível de ambição, apelando a
um maior esforço e compromisso dos países. Para isso, foram adotadas 100 ações
de aceleração dos ODS e uma declaração política na qual se apela a 10 anos de
compromisso e entrega totais, uma Década inteira de Ação 2020-2030.
Recordo
que a UE se comprometeu a implementar os 17 ODS, tanto nas suas políticas
internas como externas, incluindo o ODS 16.2. relativo à violência sobre as
crianças. É disso que dão conta as conclusões do Conselho dos Ministros da
Justiça, de 8 outubro 2019, ao referir o “empenhamento da UE e dos seus
Estados-membros em alcançar o objetivo de erradicar a exploração sexual de
crianças tal como estabelecido na Agenda 2030” .
Os
dados do primeiro relatório global conjunto de várias Agências das Nações
Unidas, como a OMS e UNICEF sobre a prevenção da violência contra crianças,
divulgado em junho deste ano, com uma abrangência de 155 países referem que
metade das crianças do mundo, entre os 2 e 17 anos, sofre todos os anos
violência física, sexual ou psicológica.
Quase
três quartos das crianças entre os 2 e os 4 anos (300 milhões) são regularmente
sujeitas a castigos físicos ou violência psicológica às mãos dos seus pais ou
cuidadores e um quarto das crianças com menos de 5 anos vive com uma mãe sujeita
a violência doméstica. No que toca à violência sexual, estima-se que em todo o
mundo, 120 milhões de meninas com menos de 20 anos já sofreram um qualquer
contacto sexual forçado. Na escola, um terço dos alunos entre os 11 e os 15
anos afirma ter sofrido uma forma de ‘bullying’.
O
relatório também refere que embora 88% dos países analisados tenham leis para
proteger as crianças, em mais de metade (47%) estão praticamente só no papel,
faltando dinheiro ou estruturas para as fazer aplicar. Ainda refere que 80% dos
países dispõe de planos e políticas nacionais para prevenir a violência sobre
crianças, mas só um quinto tem financiamento para as implementar ou metas
tangíveis: “a falta de fundos e de capacidade profissional são provavelmente os
fatores que contribuem para a aplicação lenta” desses programas, consideram as
agências das Nações Unidas.
Estes
dados não refletem ainda o aumento de número de casos em resultado da pandemia
da COVID-19. Não há memória de termos tido uma situação de crise semelhante,
mas temos dados suficientes que nos levam a concluir que os fatores
relacionados com o confinamento, isolamento social, o aumento dos níveis de
stress financeiro e diminuição das respostas sociais estão diretamente
relacionadas com o aumento de situações de abuso físico, psicológico e sexual
das crianças em casa, principalmente aquelas que já vivem em famílias violentas
ou disfuncionais. Também o encerramento das escolas que afetou 1,5 bilhão de
crianças em todo o mundo teve como resultado o aumento do uso de plataformas
on-line por crianças e adolescentes. A internet abriu muitas oportunidades para
o ensino, entretenimento e comunicação, entre outros, mas permitiu um aumento
de exposição ao cyberbullying e comportamento de risco online.
Aliás,
é desta triste realidade que a Agência Europeia para a Cooperação Policial
(EUROPOL) dá conta no relatório divulgado a 3 de abril de 2020. O abuso sexual
online de crianças na UE aumentou durante a pandemia da COVID-19. Entre 17 e 24
de março foi registado um aumento de 30% em alguns Estados-membros
da UE.
A
organização inglesa, Internet Watch Foundation (IWF), identifica a
UE, em 2019, como a região do globo com maior aumento de predadores sexuais
online, em cada 10 endereços de websites analisados com material de
abuso sexual de crianças, 9 são alojados no espaço europeu (89%), sendo que 71%
destes estão localizados na Holanda devido aos baixos custos de hospedagem,
seguido pelos Estados Unidos, com 9%, que devido à rapidez com que os gigantes
da tecnologia como o Facebook, removem esses conteúdos quando detetados.
Considero
que a abordagem da UE em relação à proteção dos direitos da criança tem
características próprias, diferente de outras Organizações Internacionais, como
Conselho da Europa e as Nações Unidas, assegurando, por isso, maior efetividade
na implementação dos diversos instrumentos, estratégias e mecanismos europeus
existentes de proteção das crianças.
Esta
abordagem levou à adoção, em 2011, da Diretiva (2011/92/UE) relativa à luta
contra o abuso sexual e a exploração sexual de crianças que contém disposições
que visam fornecer aos Estados-membros normas mínimas para a aplicação de
sanções e medidas para a prevenção dos abusos, combate à impunidade e à
proteção das crianças; e também a adoção da Diretiva (2011/36/UE) relativa à
prevenção e luta contra o tráfico de seres humanos e à proteção das vítimas,
que contém disposições pertinentes para as necessidades específicas das vítimas
infantis. Também nos planos mais político e estratégico são várias as
iniciativas adotadas pela UE, que não sendo juridicamente vinculativas, são
significativas.
Admito
que a UE é uma Organização suis generis por ter ao seu dispor também
um conjunto de mecanismos instrumentais - programas financeiros, critérios de
salvaguarda de Direitos Humanos na pré-adesão de um país, agências europeias,
que contribuem decisivamente para promover melhores níveis de proteção das
crianças. A Agências europeias, como a Unidade Europeia de Cooperação
Judiciária (EUROJUST) e a Agência Europeia para a Cooperação Policial (EUROPOL)
contribuem significativamente para a proteção das crianças, combatendo “as
ameaças” à segurança interna da UE, através da cooperação policial
transfronteiriça e transnacional entre Estados-membros ao identificar e julgar
os crimes internacionais, como o tráfico de crianças, abuso sexual e cibercrime.
No
entanto, na minha opinião, o progresso alcançado no espaço europeu tem sido
demasiado fragmentado e, por vezes, sem continuidade estratégica. Quando
observamos a situação nacional dos 27 Estados-membros o cenário não é
diferente, vemos que persistem desafios importantes à eficácia dos sistemas
nacionais de proteção da criança que colocam em causa o desenvolvimento de uma
abordagem holística da mesma.
O
pacote de iniciativas anunciado pela Comissão Europeia de reforço da proteção
dos direitos da criança nas políticas da UE é um sinal de compromisso e pode
ser decisivo para o cumprimento do ODS 16.2., caso haja também compromisso
político dos líderes europeus. No entanto, corre o sério risco de seguir uma
abordagem fragmentada como anteriormente, pela diversidade de áreas que
apresenta, tuteladas por 10 dos 27 Comissários europeus, abrangendo, por isso,
diversas direções-gerais e unidades, dificultando o exercício de coordenação
transversal e governação. O mesmo se passa ao nível dos estados-membros
naqueles casos em que estes não dispõem de uma estrutura governamental
coordenadora, como Portugal, onde os direitos da criança estão distribuídos por
sete Ministérios, com abordagens sectoriais específicas no que se refere ao
bem-estar e às políticas de proteção da criança.
Parece
haver uma clara aposta da atual Comissão num forte investimento europeu no
combate ao abuso sexual e exploração sexual de crianças para os próximos cinco
anos, através da maximização dos instrumentos, estratégias e mecanismos
europeus existentes.
Será
dada prioridade a uma melhor aplicação prática da legislação europeia. Neste
âmbito, temos a 1ª Estratégia Europeia sobre os Direitos das Vítimas
(2020-2024), aprovada no passado mês de junho, e que visa implementar a
Directiva (2012/29/UE) que estabelece as normas mínimas em relação aos
direitos, ao apoio e à proteção das vítimas da criminalidade, onde se inclui as
crianças vítimas de abuso sexual e exploração sexual.
Também,
no passado dia 24 de julho, foi lançada a 1ª Estratégia Europeia para uma luta
mais eficaz contra o abuso sexual de crianças e que tem como objetivo a
aplicação da diretiva (2011/93/UE) sobre este tema. Assistimos a uma aposta
numa luta mais eficaz contra o abuso sexual e exploração sexual de crianças,
tanto online como offline, independentemente do lugar onde se encontra a
criança e da sua nacionalidade, centrando-se na prevenção do abuso, reforço do
quadro normativo e apoio das crianças vítimas de abuso sexual, promovendo a
cooperação europeia e transnacional, assim como a cooperação entre os
fornecedores de serviços e fornecedores de alojamento na internet.
Estas
Estratégias são apenas duas de cinco iniciativas de carácter estratégico que
estão em preparação/negociação nas várias Instituições Europeias e que têm
impacto direito na proteção da criança, em geral, e no combate à violência
sobre as crianças, em específico.
Desde
logo, temos um pacote legislativo sobre os serviços digitais (“Digital Services
Act”) que abrange questões como as regras de segurança das plataformas
digitais, serviços e produtos. Acresce a este, a implementação das
recomendações resultantes da avaliação de dois anos de funcionamento do Regulamento
Geral de Proteção de Dados e a proposta de Regulamento sobre a
Privacidade (e.Privacy) relativa à proteção de dados pessoais nas
comunicações eletrónicas, cuja importância se reflete, tanto num caso como no
outro, na salvaguarda do acesso e conservação dos dados pelas autoridades
competentes de forma assegurar a eficácia da investigação e combate do crime de
abuso sexual de crianças online e offline. Por último, está em curso, a Estratégia
Europeia para os Direitos da Criança 2020/2024 que prevê uma abordagem
holística da proteção das crianças na UE, abrangendo áreas como a participação;
a violência e proteção; os direitos da criança no ambiente digital; bem-estar e
inclusão social; educação; lazer e cultura; justiça amiga das crianças; e mainstreaming e
coordenação.
Já
no plano instrumental/operacional são esperadas iniciativas em três domínios
concretos. A começar pela criação de um novo Centro Europeu para ajudar os
Estados-membros a investigar, prevenir e combater os abusos sexuais de crianças
e facilitar a partilha de informação, entre os Estados-membros. A par deste,
será dada prioridade ao reforço da cooperação entre as autoridades nacionais,
os fornecedores de serviços de acesso à Internet, a EUROPOL e a Interpol,
designadamente, através da criação de mecanismos de intercâmbio de informações
cifradas o que permitirá identificar e bloquear sítios com conteúdos de
exploração sexual de crianças. Também no plano da melhoria da aplicação da
legislação da UE, a Comissão prevê uma maior a ação junto dos Estados-membros
na implementação das Diretivas de 2011 e 2012 nas legislações nacionais.
Em
relação a este terceiro domínio, constatamos que 23 Estados-membros têm
processos de infração resultante de uma transposição incompleta da diretiva
relativa à luta contra o abuso sexual e exploração sexual de crianças.
Chegados
aqui, é possível, neste momento, compreender os motivos que levaram a UE e os
seus Estados-membros a assumirem o compromisso, em 2015, com o ODS 16.2, mas
também é possível perceber que não chegarão lá num horizonte de 2030, caso
prossigam com abordagens fragmentadas e ignorando os instrumentos e recursos
significativos de que a UE se foi dotando neste domínio, ao longo do tempo,
sobretudo através do Tratado de Lisboa e que podem e devem ser agora
maximizados.
A
ambição política da Comissão agora demonstrada não pode esbarrar com a
resistência dos Estados-membros de aprofundar uma nova cultura de cooperação e
partilha de responsabilidades e de confiança nesta área da proteção da criança,
em geral, e do combate à violência sobre as crianças, em específico. Passadas
três décadas da adoção da Convenção sobre os Direitos da Criança, o tempo urge
que os líderes europeus tomem uma ação conjunta arrojada, assumindo a
responsabilidade de “não deixar nenhuma criança para trás”, atribuindo, na
minha opinião, um mandato concreto à Comissão de dar início à elaboração de um Livro
Branco sobre a proteção da Criança na UE, com vista a propor um quadro
renovado de cooperação que teria dois objetivos principais: o reforço da
cooperação entre países da UE e uma melhor integração das políticas de proteção
da criança nas políticas setorais nacionais e europeias.
Que
seja Portugal e o primeiro-ministro português a tomar a iniciativa junto dos
seus parceiros europeus para que tal aconteça!
*Perita
em Direitos Humanos
e Direitos da Criança
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