Mark Rutte, primeiro-ministro da Holanda, o preconceito sobre o sul da Europa - PG |
Quando o governo holandês pede reformas no sistema espanhol de pensões está a fazer um discurso dirigido aos seus eleitores. Reclama que reformemos o nosso sistema de pensões para ocultar que é o sistema holandês que está em profunda crise.
Juan Torres López*
Mais
uma vez, o governo holandês opõe-se às propostas que os países do sul defendem
para enfrentar a crise causada pela covid-19. Opôs-se a subscrever dívida
conjunta e agora defende que os recursos destinados aos diferentes países sejam
concedidos como créditos e não como ajudas ou subsídios.
Para
justificar a sua posição, os políticos holandeses insistem em que o seu país (e
outros "frugais" que defendem a mesma posição) cumpriram os deveres
fiscais, que reduziram a sua dívida, que foram prevenidas e laboriosas
"formigas", enquanto os países do sul, foram "cigarras" que
gastam demasiado, vivem acima das suas possibilidades e não fazem nada para
reduzir a dívida. Alguns, como o social-democrata Jeroen Dijsselbloem, chegaram
a dizer que a Itália ou a Espanha "gastam todo o dinheiro em bebidas e
mulheres e depois pedem ajuda".
É
um argumento muito difundido na Holanda, mas não só não corresponde à
realidade, como esconde os verdadeiros motivos que levam os seus líderes
políticos a defender esta posição em relação aos outros países europeus.
Não se pode dizer que o Estado espanhol gasta mais do que o holandês: no final de 2019, ambos gastavam 41,9% do seu respectivo PIB.
É
verdade que a percentagem da dívida pública espanhola em relação ao PIB é maior
que a da Holanda, mas não se pode dizer que o volume da dívida de Espanha é
desproporcionado. A população espanhola representa 10,5% do conjunto da UE
(União Europeia), 2,7 vezes mais que a holandesa, e a percentagem da dívida
pública espanhola em relação ao PIB da UE (10,9%) é 3 vezes maior que a da
Holanda. Talvez seja desejável ter menos dívida pública, mas não se pode dizer
que a dívida pública espanhola seja desmesurada e, acima de tudo, que essa
percentagem signifique que vivemos acima das nossas possibilidades.
Para saber quem vive assim, gastando o que não tem, não é suficiente ter em consideração a dívida pública: é preciso considerar também a dívida das famílias a dívida das empresas, ou seja, a dívida privada e a dívida total.
Ao
fazer isto, verifica-se que a dívida total da Holanda é de 242% do seu PIB (ou
298%, se se tiver em conta todas as fontes da dívida, de acordo com o Fundo
Monetário Internacional), em comparação com os 131% da de Espanha (195,21%,
segundo o FMI). A dívida das famílias holandesas é de 103% e a das famílias
espanholas, é de 57,4%; e a das empresas holandesas é de 140% do PIB, em
comparação com 73% da dívida das empresas espanholas.
Também
não é verdade que a Espanha gaste excessivamente em serviços públicos ou
pensões, infelizmente para nós. A despesa pública per capita é 8.000 euros
maior na Holanda, lá gasta-se quase 2,5 vezes mais euros por habitante em saúde
do que na Espanha e os holandeses têm pensões muito mais generosas que as
nossas (apesar dos problemas que mencionarei a seguir), o que permite que haja
um risco muito menor de pobreza entre os idosos do que no nosso país.
Os
holandeses dizem que os espanhóis são preguiçosos, mas trabalhamos em média
1.686 horas por ano, em comparação com 1.434 em média na Holanda.
Os
argumentos do governo holandês são falaciosos e falsos. Em termos de
comparação, são os holandeses que vivem acima das suas possibilidades, gerando
uma dívida privada que é a terceira maior do mundo (depois da Irlanda e de
Chipre), segundo os dados do Fundo Monetário Internacional.
A
Holanda é um país mais rico do que a Espanha (embora boa parte da sua riqueza
esteja em investimentos financeiros muito voláteis). Ninguém duvida. Tem
registos de dívida pública mais baixos do que a Espanha, mas isso não significa
que tenha a sua dívida controlada (mas sim que ela assenta diretamente nas
famílias e nas empresas), assim como o nível mais alto de dívida pública
espanhola não tem origem no desperdício ou na falta de vontade para eliminá-lo,
ainda que isso não signifique que em Espanha não tenha havido má gestão dos
gastos públicos.
E
se não se pode dizer de Espanha com fundamento o que o governo holandês está a
dizer, muito menos se pode acusar do mesmo a Itália que, como expliquei noutro
artigo, fez mais sacrifícios e reduziu as suas despesas em muito maior medida
do que a Holanda, nos últimos anos (Italia como ejemplo y como advertencia(link is external)).
A
razão de haver mais dívida pública em Espanha ou na Itália ou níveis mais altos
de desemprego não tem a ver com as razões demagógicas usadas pela direita que
governa a Holanda e outros países europeus, mas com o desenho do euro e com as
políticas europeias que impõem um desequilíbrio de que beneficiam esses países
do norte. E, entre outras coisas, com a atuação da Holanda como um paraíso
fiscal parasita dos outros países da União Europeia, como expliquei noutro artigo: Holanda, campeona mundial de la evasión fiscal, tiene por qué
callar(link is external)).
Quando
o governo holandês pede reformas no sistema espanhol de pensões ou no nosso
mercado de trabalho, na verdade está a fazer um discurso dirigido aos seus
eleitores. Reclama que reformemos o nosso sistema de pensões para ocultar que é
o sistema holandês que está em profunda crise.
O
seu sistema baseia-se em três pilares: uma pensão pública mínima, outra
procedente dos fundos de investimento administrados pelas empresas e um
terceiro resultante de poupança individual.
O
segundo pilar foi, até agora, fundamental e apresentou bons resultados, mas as
sucessivas crises financeiras e as baixas taxas de juros foram reduzindo a
rentabilidade desses fundos, de modo que a sua liquidez disponível para fazer
frente ao pagamento das pensões esteve e está abaixo dos mínimos. No ano
passado, foi dado como certo que em 2020 se teria de reduzir o valor das
pensões e a situação agravou-se com a crise da Covid-19: no final de 2019,
cerca de 70 fundos que afetavam mais de 12 milhões dos trabalhadores tinham
taxas de cobertura abaixo do mínimo e este ano, até agora, já se perderam cerca
de 80.000 milhões de euros.
Como
o sistema não tem cobertura suficiente para fazer frente ao pagamento das
pensões futuras, o governo teve que fazer uma proposta de reforma nas últimas
semanas que simplesmente significa dar um passo no vazio numa das questões mais
sensíveis para a população holandesa. No novo sistema que o governo propõe, o
valor das pensões que os holandeses receberão não se baseará nas taxas de
cobertura nem nas taxas de juros oficiais, mas dependerá ainda mais da
rentabilidade dos títulos financeiros e da evolução da Bolsa de Valores. Isto
é, reforça-se o fator que precisamente provocou a deterioração do sistema e que
leva a que tenha sido necessário alterá-lo.
Quando
o governo holandês insiste em reformar o sistema de pensões espanhol, o que
está a fazer é tentar dizer aos seus eleitores que está a reivindicar o seu
sistema para esconder a deterioração que este sofre devido à sua enorme
dependência de mercados financeiros cada vez mais instáveis.
Mas
a questão não termina aí. A singularidade do caso é que um dos investimentos
mais rentáveis feitos pelos fundos dos quais as pensões holandesas se alimentam
são os títulos estatais do sul da Europa. A realidade é que à Holanda
interessa-lhe que Itália ou Espanha estejam altamente endividadas e, se
possível, que esta dívida esteja sujeita a tensões que aumentem o seu prémio de
risco, de modo que os seus títulos de dívida sejam mais rentáveis. Para fechar
o círculo, basta impor-lhes condições que garantam que essa dívida se vá
pagando acima de tudo.
É
isto que está por trás das políticas de austeridade que a Holanda e outros
países com os mesmos interesses impuseram na anterior crise financeira com o
objetivo real, mas oculto, de realmente aumentar a dívida. Por mais paradoxal
que possa parecer, é isto que explica por que a Holanda se opõe à mutualização
europeia da dívida: a rentabilidade da dívida espanhola para aqueles que a
subscrevem (como os seus fundos de pensões) seria menor, porque os títulos seriam
emitidos com juros mais baixos e não haveria a especulação que os encarece.
O
governo holandês está interessado que a Espanha ou a Itália estejam cada vez
mais endividadas, assim como lhe interessa que o mesmo aconteça com as famílias
e as empresas holandesas, porque essa dívida é o que alimenta o lucro da sua
economia financiarizada e o que leva a que os fundos de pensões tenham liquidez
suficiente para que as suas pensões sejam efetivas, algo que está cada vez mais
em perigo.
A
sua posição perante a maioria dos governos europeus não é apenas um capricho
ideológico, nem corresponde a uma intenção sincera de melhorar a economia
europeia ou a dos países do sul da Europa. Não é verdade, como dizem os
políticos holandeses aos seus eleitores, que a Holanda está a pagar a dívida
dos países do sul da Europa. Ao contrário, eles impõem políticas que geram a
nossa dívida para pagar as suas pensões, cada dia mais dependentes da dívida
global e da especulação financeira.
A
economia da Holanda é um parasita perigoso que desestabiliza e põe em perigo a
Europa, embora o surpreendente não é que os holandeses se aproveitem disso, mas
que os outros países continuem a consentir.
Artigo
de Juan Torres López, publicado em blogs.publico.es(link is external) a 20 de julho de
2020. Tradução de Carlos Santos para esquerda.net
Nota: Artigo
corrigido às 10h58 de 3 de agosto de 2020, no montante da despesa pública per
capita em saúde ser maior na Holanda do que em Espanha.
*Catedrático de Economia Aplicada da Universidade de Málaga (Espanha). Conselho Científico de Attac-Espanha. A sua página web é: www.juantorreslopez.com
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