segunda-feira, 3 de agosto de 2020

O que esconde a posição da Holanda contra o sul da Europa

Mark Rutte, primeiro-ministro da Holanda, o preconceito sobre o sul da Europa - PG

Quando o governo holandês pede reformas no sistema espanhol de pensões está a fazer um discurso dirigido aos seus eleitores. Reclama que reformemos o nosso sistema de pensões para ocultar que é o sistema holandês que está em profunda crise.

Juan Torres López*

Mais uma vez, o governo holandês opõe-se às propostas que os países do sul defendem para enfrentar a crise causada pela covid-19. Opôs-se a subscrever dívida conjunta e agora defende que os recursos destinados aos diferentes países sejam concedidos como créditos e não como ajudas ou subsídios.

Para justificar a sua posição, os políticos holandeses insistem em que o seu país (e outros "frugais" que defendem a mesma posição) cumpriram os deveres fiscais, que reduziram a sua dívida, que foram prevenidas e laboriosas "formigas", enquanto os países do sul, foram "cigarras" que gastam demasiado, vivem acima das suas possibilidades e não fazem nada para reduzir a dívida. Alguns, como o social-democrata Jeroen Dijsselbloem, chegaram a dizer que a Itália ou a Espanha "gastam todo o dinheiro em bebidas e mulheres e depois pedem ajuda".

É um argumento muito difundido na Holanda, mas não só não corresponde à realidade, como esconde os verdadeiros motivos que levam os seus líderes políticos a defender esta posição em relação aos outros países europeus.

Não se pode dizer que o Estado espanhol gasta mais do que o holandês: no final de 2019, ambos gastavam 41,9% do seu respectivo PIB.

É verdade que a percentagem da dívida pública espanhola em relação ao PIB é maior que a da Holanda, mas não se pode dizer que o volume da dívida de Espanha é desproporcionado. A população espanhola representa 10,5% do conjunto da UE (União Europeia), 2,7 vezes mais que a holandesa, e a percentagem da dívida pública espanhola em relação ao PIB da UE (10,9%) é 3 vezes maior que a da Holanda. Talvez seja desejável ter menos dívida pública, mas não se pode dizer que a dívida pública espanhola seja desmesurada e, acima de tudo, que essa percentagem signifique que vivemos acima das nossas possibilidades.

Para saber quem vive assim, gastando o que não tem, não é suficiente ter em consideração a dívida pública: é preciso considerar também a dívida das famílias a dívida das empresas, ou seja, a dívida privada e a dívida total.

Ao fazer isto, verifica-se que a dívida total da Holanda é de 242% do seu PIB (ou 298%, se se tiver em conta todas as fontes da dívida, de acordo com o Fundo Monetário Internacional), em comparação com os 131% da de Espanha (195,21%, segundo o FMI). A dívida das famílias holandesas é de 103% e a das famílias espanholas, é de 57,4%; e a das empresas holandesas é de 140% do PIB, em comparação com 73% da dívida das empresas espanholas.

Também não é verdade que a Espanha gaste excessivamente em serviços públicos ou pensões, infelizmente para nós. A despesa pública per capita é 8.000 euros maior na Holanda, lá gasta-se quase 2,5 vezes mais euros por habitante em saúde do que na Espanha e os holandeses têm pensões muito mais generosas que as nossas (apesar dos problemas que mencionarei a seguir), o que permite que haja um risco muito menor de pobreza entre os idosos do que no nosso país.

Os holandeses dizem que os espanhóis são preguiçosos, mas trabalhamos em média 1.686 horas por ano, em comparação com 1.434 em média na Holanda.

Os argumentos do governo holandês são falaciosos e falsos. Em termos de comparação, são os holandeses que vivem acima das suas possibilidades, gerando uma dívida privada que é a terceira maior do mundo (depois da Irlanda e de Chipre), segundo os dados do Fundo Monetário Internacional.

A Holanda é um país mais rico do que a Espanha (embora boa parte da sua riqueza esteja em investimentos financeiros muito voláteis). Ninguém duvida. Tem registos de dívida pública mais baixos do que a Espanha, mas isso não significa que tenha a sua dívida controlada (mas sim que ela assenta diretamente nas famílias e nas empresas), assim como o nível mais alto de dívida pública espanhola não tem origem no desperdício ou na falta de vontade para eliminá-lo, ainda que isso não signifique que em Espanha não tenha havido má gestão dos gastos públicos.

E se não se pode dizer de Espanha com fundamento o que o governo holandês está a dizer, muito menos se pode acusar do mesmo a Itália que, como expliquei noutro artigo, fez mais sacrifícios e reduziu as suas despesas em muito maior medida do que a Holanda, nos últimos anos (Italia como ejemplo y como advertencia(link is external)).

A razão de haver mais dívida pública em Espanha ou na Itália ou níveis mais altos de desemprego não tem a ver com as razões demagógicas usadas pela direita que governa a Holanda e outros países europeus, mas com o desenho do euro e com as políticas europeias que impõem um desequilíbrio de que beneficiam esses países do norte. E, entre outras coisas, com a atuação da Holanda como um paraíso fiscal parasita dos outros países da União Europeia, como expliquei noutro artigo: Holanda, campeona mundial de la evasión fiscal, tiene por qué callar(link is external)).

Quando o governo holandês pede reformas no sistema espanhol de pensões ou no nosso mercado de trabalho, na verdade está a fazer um discurso dirigido aos seus eleitores. Reclama que reformemos o nosso sistema de pensões para ocultar que é o sistema holandês que está em profunda crise.

O seu sistema baseia-se em três pilares: uma pensão pública mínima, outra procedente dos fundos de investimento administrados pelas empresas e um terceiro resultante de poupança individual.

O segundo pilar foi, até agora, fundamental e apresentou bons resultados, mas as sucessivas crises financeiras e as baixas taxas de juros foram reduzindo a rentabilidade desses fundos, de modo que a sua liquidez disponível para fazer frente ao pagamento das pensões esteve e está abaixo dos mínimos. No ano passado, foi dado como certo que em 2020 se teria de reduzir o valor das pensões e a situação agravou-se com a crise da Covid-19: no final de 2019, cerca de 70 fundos que afetavam mais de 12 milhões dos trabalhadores tinham taxas de cobertura abaixo do mínimo e este ano, até agora, já se perderam cerca de 80.000 milhões de euros.

Como o sistema não tem cobertura suficiente para fazer frente ao pagamento das pensões futuras, o governo teve que fazer uma proposta de reforma nas últimas semanas que simplesmente significa dar um passo no vazio numa das questões mais sensíveis para a população holandesa. No novo sistema que o governo propõe, o valor das pensões que os holandeses receberão não se baseará nas taxas de cobertura nem nas taxas de juros oficiais, mas dependerá ainda mais da rentabilidade dos títulos financeiros e da evolução da Bolsa de Valores. Isto é, reforça-se o fator que precisamente provocou a deterioração do sistema e que leva a que tenha sido necessário alterá-lo.

Quando o governo holandês insiste em reformar o sistema de pensões espanhol, o que está a fazer é tentar dizer aos seus eleitores que está a reivindicar o seu sistema para esconder a deterioração que este sofre devido à sua enorme dependência de mercados financeiros cada vez mais instáveis.

Mas a questão não termina aí. A singularidade do caso é que um dos investimentos mais rentáveis feitos pelos fundos dos quais as pensões holandesas se alimentam são os títulos estatais do sul da Europa. A realidade é que à Holanda interessa-lhe que Itália ou Espanha estejam altamente endividadas e, se possível, que esta dívida esteja sujeita a tensões que aumentem o seu prémio de risco, de modo que os seus títulos de dívida sejam mais rentáveis. Para fechar o círculo, basta impor-lhes condições que garantam que essa dívida se vá pagando acima de tudo.

É isto que está por trás das políticas de austeridade que a Holanda e outros países com os mesmos interesses impuseram na anterior crise financeira com o objetivo real, mas oculto, de realmente aumentar a dívida. Por mais paradoxal que possa parecer, é isto que explica por que a Holanda se opõe à mutualização europeia da dívida: a rentabilidade da dívida espanhola para aqueles que a subscrevem (como os seus fundos de pensões) seria menor, porque os títulos seriam emitidos com juros mais baixos e não haveria a especulação que os encarece.

O governo holandês está interessado que a Espanha ou a Itália estejam cada vez mais endividadas, assim como lhe interessa que o mesmo aconteça com as famílias e as empresas holandesas, porque essa dívida é o que alimenta o lucro da sua economia financiarizada e o que leva a que os fundos de pensões tenham liquidez suficiente para que as suas pensões sejam efetivas, algo que está cada vez mais em perigo.

A sua posição perante a maioria dos governos europeus não é apenas um capricho ideológico, nem corresponde a uma intenção sincera de melhorar a economia europeia ou a dos países do sul da Europa. Não é verdade, como dizem os políticos holandeses aos seus eleitores, que a Holanda está a pagar a dívida dos países do sul da Europa. Ao contrário, eles impõem políticas que geram a nossa dívida para pagar as suas pensões, cada dia mais dependentes da dívida global e da especulação financeira.

A economia da Holanda é um parasita perigoso que desestabiliza e põe em perigo a Europa, embora o surpreendente não é que os holandeses se aproveitem disso, mas que os outros países continuem a consentir.

*Esquerda.net

Artigo de Juan Torres López, publicado em blogs.publico.es(link is external) a 20 de julho de 2020. Tradução de Carlos Santos para esquerda.net

Nota: Artigo corrigido às 10h58 de 3 de agosto de 2020, no montante da despesa pública per capita em saúde ser maior na Holanda do que em Espanha.

*Catedrático de Economia Aplicada da Universidade de Málaga (Espanha). Conselho Científico de Attac-Espanha. A sua página web é: www.juantorreslopez.com

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