terça-feira, 18 de agosto de 2020

Portugal | Diz-que-diz-e-não-diz

Paulo Baldaia | Jornal de Notícias | opinião

No diz-que-diz da política à portuguesa, há poucas coisas mais estranhas que políticos a desmentir que tivessem dito o que deveras disseram. Eles desmentem porque, na verdade deles, o contexto em que disseram o que disseram mostra que queriam dizer coisa diferente. Ou, pelo menos, que as pessoas pensassem de modo diferente sobre aquilo que efetivamente eles falaram. Não tenha receio de se perder neste diz-que-disse, porque o leitor, por certo, faz parte do grupo que há muito confirmou que Rui Rio disse efetivamente que poderia negociar com o Chega se o Chega ficasse mais moderado e Ana Mendes Godinho disse efetivamente que a dimensão dos surtos nos lares não é demasiado grande. Então, porque se perderam eles?

Em relação à disponibilidade de Rio para negociar com um Chega mais moderado, convém começar por dizer que o líder do PSD já disse várias vezes que com este Chega não conversava mas que a conversa seria outra, se o Chega mudasse de atitude. Sem tema para debate, a contestação à determinação de Rio surgiu agora como podia ter surgido na sequência de entrevistas anteriores, à TSF ou ao Porto Canal. Rio afirma-se ao Centro, mas joga à Direita, podendo até esquecer o extremismo de Ventura, porque essa parece ser a única forma de o PSD regressar ao poder. Comete dois erros ao admitir essa possibilidade. O primeiro erro é a ajuda que é dada à afirmação do Chega e que começa a aparecer de forma sustentada em todas as sondagens. Podendo ganhar um parceiro forte para chegar à maioria, também enfraquece o PSD ao afugentar o eleitorado moderado para o PS. O segundo erro é a perda de credibilidade que acarreta admitir abraçar um projeto que inclua um radical xenófobo e racista, por muito que na hora de chegar ao poder esse radical esteja disponível para vestir a pele do cordeiro.

Com a ministra da Solidariedade, o problema é mesmo a perceção que se constrói a partir dos gabinetes ministeriais. As coisas ganham uma tal dimensão que, aos governantes, tudo parece desresponsabilidade. Afinal, nenhum humano tem o dom da ubiquidade, a omnipresença é uma coisa para os deuses. Morreram 18 pessoas num lar em Reguengos com falta de assistência, mas Ana Mendes Godinho quer salientar que temos 3% do total dos lares e 0,5% das pessoas internadas em lares que estão afetadas pela doença! Trabalha-se com o Excel, reduz-se tudo à proporção e já não há problema nenhum. Se calhar é mesmo assim, para quem não conhece os mortos são só números, mas quem pensa e fala assim não pode ser titular de uma pasta que tem no nome "Solidariedade".

*Jornalista

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