domingo, 20 de setembro de 2020

Portugal | Enxotado como cão com pulgas

Paulo Baldaia* | Diário de Notícias | opinião

O episódio do apoio do primeiro-ministro a um candidato à presidência do Benfica mostrou, uma vez mais, que os interesses dos homens do futebol prevalecem sobre o interesse geral. O mais importante acabou por ser a defesa de Luís Filipe Vieira. Já António Costa podia ser tratado como acabou por ser, enxotado como cão com pulgas. Não é de excluir (é até muito provável) que a expulsão dos políticos da comissão de honra tenha sido concertada, mas imaginar que o primeiro-ministro se deixou subalternizar deve deixar-nos ainda mais perplexos. Política e futebol são como água e azeite, não se misturam. Como a água, a política é mais densa e sempre que alguém insiste em misturá-los acontece que o futebol, como o azeite, fica por cima. A perversidade destas relações revela-se nisso mesmo, na pouca importância dos representantes do povo quando aceitam fazer parte do séquito.

As ligações de políticos no ativo a clubes de futebol não começou agora e não é um exclusivo de António Costa e do Benfica. Recentemente, por exemplo, vários autarcas entraram para o conselho superior do FCP e isso inibe-os (é suposto) de tomar decisões em que o clube tenha interesse. E, assim sendo, não estão a cumprir com eficácia a função para a qual foram eleitos. Tudo isto é verdade, mas não deveria servir para sossegar os espíritos dos cidadãos adeptos do clube de António Costa e Filipe Vieira. Tanto mais que este episódio tem uma gravidade acrescida.

Emprestar a honra a um cidadão que é dono de uma empresa com um calote de centenas de milhões de euros, a um banco a que todos os portugueses estão a emprestar dinheiro, não é coisa que um chefe de governo deva fazer, porque é suposto estar indignado com o que isso lhe leva de impostos pagos pelos contribuintes. Como se não bastasse, esse mesmo cidadão está a braços com vários casos na justiça, com a agravante de um deles dizer respeito a uma suspeita de corrupção num tribunal superior e outro ser de fraude fiscal qualificada. Leu bem, as empresas do cidadão de quem o primeiro-ministro se fez testemunha abonatória podem ter provocado um rombo nas finanças públicas. Até parece que o guarda do galinheiro se afeiçoou à raposa.

Não perceber este erro é especialmente surpreendente num político com a experiência de António Costa. A não ser que, como sugeriu a ministra da Justiça em entrevista ao Observador, nada disto tenha que ver com racionalidade. Pode ser um caso de paixão assolapada, com o cidadão António Costa transformado num tifoso, vítima de si próprio e de uma "contradição intima". Como se tivesse "uma filha fora do casamento", é a comparação que ocorre a Francisca Van Dunem. A outra explicação é mais prosaica e remete-nos para o interesse maior dos políticos-alquimistas que passam a vida tentar transformar o que quer que seja em votos. Nesta versão, António Costa não se teria apercebido de que os benefícios conseguidos pela dimensão do clube não superavam os estragos causados pela perceção generalizada de que o primeiro-ministro estava a subalternizar-se face a uma figura pouco recomendável.

Aliás, por perceber está igualmente a convicção que o primeiro-ministro tem da total inocência de Filipe Vieira em todos os processos em que está envolvido. Que é feito do despacho "à justiça o que é da justiça"? Não chega a presunção de inocência que é devida a toda a gente que não tenha sentenças transitadas em julgado. Ao encabeçar a comissão de honra, António Costa está a dizer-nos a todos que confia inteiramente na inocência do presidente do seu clube e, desta forma, pressiona a justiça para ilibar Filipe Vieira. Isto é grave, mas se não fosse assim, se não acreditasse na sua inocência, o caso seria ainda mais grave.

*Jornalista

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