José Soeiro | Expresso | opinião
Para Cristina Capela, uma das primeiras cuidadoras informais em Portugal a receber o novo subsídio de apoio (no seu caso, 328€ mensais, que se somam aos 110,41€ do subsídio por assistência a terceira pessoa), o Estatuto do Cuidador já fez toda a diferença. À jornalista Ana Cristina Pereira falou do “alívio muito grande” que sentiu quando lhe foi finalmente reconhecida esta sua condição – a ela, que cuida do filho com paralisia cerebral - depois de todas as lutas em que participou em 2017, 2018 e 2019.
“Essas pessoas, bem definidas pelo termo 'cuidadores', desempenham um papel essencial na sociedade atual, embora muitas vezes não recebam o reconhecimento ou a remuneração que merecem”. As palavras são de Francisco, o Papa, e foram proferidas há dois dias. Na mesma quarta-feira, a Associação Nacional de Cuidadores Informais explicava o quanto, durante o período da pandemia, os seus associados se têm sentido esquecidos. A centralidade dos cuidados ficou mais evidente que nunca, mas familiares e vizinhos que cuidam de idosos dependentes, de pessoas com deficiência ou de doentes crónicos não tiveram direito a nenhuma alteração estrutural da sua condição, antes sentindo um peso acrescido sem contrapartidas de apoio. Os profissionais de cuidados (da saúde, dos equipamentos sociais, da educação, da assistência pessoal, do apoio domiciliário), por seu turno, também não viram o reconhecimento social das suas funções traduzido em melhorias concretas da sua condição laboral.
O movimento dos cuidadores informais fez um percurso notável e emocionante em muito pouco tempo. Rompeu a invisibilidade e chamou a atenção para o trabalho não remunerado dos cuidados. Pôs em cima da mesa os constrangimentos à liberdade pessoal e à capacidade de escolha provocados pela ausência de uma rede pública de cuidados. Estabeleceu alianças, ocupou o espaço público e conseguiu que um Estatuto fosse aprovado. A lei que saiu do Parlamento foi o resultado dos compromissos possíveis entre uma visão mais familialista e uma abordagem mais assente nos direitos sociais, entre quem queria ir mais longe nas obrigações do Estado e na proteção laboral e quem queria limitar o alcance dessas transformações, entre quem queria reconhecer retroativamente os cuidados e quem achava que não se podem reparar injustiças passadas. Mas, com os avanços e as limitações que resultaram de uma relação de forças construída a pulso pelo movimento dos cuidadores, foi uma lei histórica. Talvez por isso não teve um único voto contra. Só que a sua concretização ficou em larga medida dependente de políticas públicas que cabe ao Governo realizar. E aqui é que a porca tem torcido o rabo.
Quando se preparava o Orçamento do Estado para 2019 e o Governo resistia à aprovação do Estatuto, António Costa brandia, em pleno debate quinzenal, um número artificialmente inflacionado de impacto financeiro desta lei, para tentar paralisar quem lutava pelo Estatuto: dizia o Primeiro-Ministro que ele custaria 800 milhões de euros por ano. No Orçamento para 2020, o Governo acabou por inscrever 38 milhões para o Estatuto, limitando a maior parte das suas dimensões, neste ano experimental, aos projetos-piloto. Mas por este andar, nem uma ínfima parte destes 38 milhões será gasta.
Até 31 de agosto, apenas 1340 cuidadores tinham apresentado requerimento para obter o Estatuto. Destes, só 74 tinham sido deferidos e não mais que 32 estavam naquele momento a receber o subsídio de apoio. Estes números, se comparados com as estimativas existentes, que apontam para um universo de cerca de 250 mil cuidadores e cuidadoras a tempo inteiro, e três vezes mais se considerarmos o universo de quem presta cuidados de modo parcial, são absolutamente irrisórios.
Para esta situação muito contribuirá alguma falta de informação e de contacto por parte dos serviços com os cuidadores. Por isso mesmo, foi hoje aprovada uma proposta, apresentada pelo Bloco e votada com apoio unânime, de uma campanha pública, que faça chegar a informação aos cuidadores e cuidadoras por vários meios: televisão, imprensa, através dos Censos Sénior da GNR e do envio de cartas aos 220 mil beneficiários do Complemento por Dependência e às 13 mil pessoas que recebem o subsídio por assistência a terceira pessoa, apelando a que se inscrevam como cuidadores. Já se fez, em 2016, uma iniciativa semelhante a propósito do Complemento Solidário para Idosos, com bons resultados.
Mas a discrepância entre o número real de cuidadores, o número dos que requereram o Estatuto e o número dos que estão a beneficiar do apoio não se explica apenas por falta de informação. Ela resulta de pelo menos mais quatro obstáculos que terão de ser combatidos. O primeiro é a burocracia e os documentos exigidos para a candidatura, que deveria ser simplificada e apoiada pelos serviços. O segundo resulta da escolha – que muitos contestaram, e bem – de, neste primeiro ano de aplicação, limitar a maior parte dos direitos inscritos na lei aos 30 concelhos escolhidos para os projetos-piloto, o que esvazia o Estatuto de direitos para os cuidadores que residam noutros sítios. O terceiro decorre do facto de haver normas que estão penduradas pela falta de vontade do Governo de cumprir aquilo a que o Parlamento o obrigou (com um prazo que terminava em janeiro), por exemplo na identificação das alterações necessárias à lei do trabalho, como regimes especiais de faltas e licenças. O último obstáculo tem a ver com o que, na lei, ainda não conseguimos ganhar. Trata-se, no fundo, do nosso caderno de encargos para o futuro: alargar o conceito de cuidador para além dos familiares, incluindo vizinhos; permitir o reconhecimento de mais do que um cuidador por pessoa dependente; reforçar as infraestruturas públicas de cuidados, o apoio domiciliário e a rede de cuidados continuados, alargar a condição de recursos do subsídio, reconhecer as carreiras contributivas. Não esquecemos nem desistimos.
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