quinta-feira, 22 de outubro de 2020

Portugal | Podemos confiar nos hospitais privados?

Pedro Tadeu | Diário de Notícias | opinião

Já se esqueceram que, logo em março, muitos hospitais privados começaram a cobrar aos utentes das consultas mais simples uma abusiva "taxa Covid" de 10 a 20 euros, que podia ir às centenas de euros no caso de uma cirurgia? E isto até para pagar equipamentos de proteção, banais e baratos, como máscaras e gel?

Já se esqueceram que vários hospitais privados decidiram suspender as convenções com o Estado, no período de março a abril, a até então fase mais difícil da pandemia do novo coronavírus, deixando de dar apoio ao Serviço Nacional de Saúde quando este mais precisava?

Já se esqueceram que, em setembro, foi notícia o facto dos hospitais privados recusarem fazer partos a grávidas com COVID, sem terem avisado disso as mães que, durante a fase de acompanhamento da gravidez, iam lá às consultas médicas?

Já se esqueceram que no mês passado a Entidade Reguladora da Saúde teve de emitir um comunicado, depois de receber várias queixas de utentes, a pedir aos hospitais privados que recusam doentes com COVID-19 para avisarem antecipadamente os utentes dessa decisão?

É totalmente verdadeira a acusação de pessoas de direita a pessoas da esquerda de estas defenderem o Serviço Nacional de Saúde por motivos ideológicos - o pensamento de que o acesso a tratamentos médicos deve ser gratuito e de qualidade idêntica para pobres e ricos condiciona a abordagem que qualquer pessoa verdadeiramente de esquerda faz a este problema. Por mim, que sou de esquerda, ainda bem que é assim.

Mas também é totalmente verdadeira a acusação inversa: a de que as pessoas de direita defendem por motivos ideológicos o favorecimento dos hospitais privados, mesmo quando muitos deles defraudam clamorosamente, recorrentemente e gananciosamente os seus clientes, o seu dever de responsabilidade social, a pureza da ética médica. É o que está a acontecer com a operação "salvem os hospitais privados" em curso.

O comunicado da semana passada assinado pelo bastonário e ex-bastonários da Ordem dos Médicos vai muito bem até ao parágrafo sete (a pressão sobre o Governo para que garanta um Serviço Nacional de Saúde superlativo deve, até, ser permanente, não limitada aos tempos de crise) mas, depois disso, atira-se ao alarmismo para acabar a defender que "os setores de saúde sociais e privados devem ser mais envolvidos no esforço covid e não-covid para que a capacidade instalada seja efetivamente usada em vez de desperdiçada".

Em primeiro lugar, tal afirmação, para ser eticamente irrepreensível, deveria ser acompanhada por uma declaração de interesses de cada um dos seis bastonários subscritores do texto sobre as suas ligações à medicina privada - e aparentemente (basta uma busca na Internet para o comprovar) todos têm essa ligação, desde o nível básico de dar consultas num hospital ou num consultório privado, até ao mais complexo de ter o seu nome como marca de uma rede de laboratórios.

Em segundo lugar, a afirmação dos bastonários ignora uma questão de fiabilidade, dado o comportamento desolador, largamente documentado, dos hospitais privados assim que começou a pandemia: poderemos confiar neles para nos ajudarem nesta segunda fase da doença?

Em terceiro lugar, há a conta do contribuinte: no final do dia sai mais barato ao Estado pagar a privados para prestarem serviço público ou a gastar dinheiro em reforço dos seus meios humanos e técnicos? Ao longo de décadas inúmeros relatórios do Tribunal de Contas põem largas dúvidas sobre a vantagem da relação Estado-privados na Saúde.

E vou ignorar neste artigo a questão da corrupção, seja a puramente criminal, seja a institucionalizada e aceite como "normal" e até "recomendável", que as várias vertentes do negócio da Saúde no século XXI comportam: desde os preços dos medicamentos impostos pelos grandes conglomerados da indústria farmacêutica até à promiscuidade do exercício profissional da medicina, simultaneamente, no setor público e privado.

Acho aliás bastante graça ao facto de o texto dos bastonários referir muito o SNS, limitando-se ao equívoco da sigla, sem nunca explicar se se refere ao Serviço Nacional de Saúde ou se utiliza a "novilíngua" que a direita inventou para privatizar, na mente das pessoas, a prestação pública de cuidados de saúde: Sistema Nacional de Saúde.

O texto dos bastonários serviu de pretexto para o Presidente da República dar uma finta ao governo e iniciar uma série de audiências ao atual e aos ex-bastonários da Ordem dos Médicos, a outros bastonários das áreas ligadas à saúde, a ex-ministros da saúde, a sindicatos, a confederações sindicais e patronais, à própria ministra da Saúde - e adivinho a conclusão do Presidente ir coincidir, quase na íntegra, com as teses dos bastonários.

Simultaneamente, no Parlamento, a esquerda tenta convencer o Governo a reforçar mais do que o previsto o investimento no Serviço Nacional de Saúde - e aqui está, palpita-me, o busílis da questão: com os novos fundos europeus que estão prometidos, o que se passa, de facto, não é uma guerra para melhorar o atendimento dos doentes, é a conquista para os privados da maior fatia possível desse bolo.

Obviamente que se for necessário usar os hospitais privados para salvar vidas a pessoas se deve fazê-lo, e já. Mas transformar isso num instrumento para voltar a enfraquecer o Serviço Nacional de Saúde - fazendo com que no pós-pandemia ele dependa mais da "ajuda" privada - não é aceitável. Por motivos ideológicos, sim, mas sobretudo, como se tem visto, porque não se pode confiar neles.

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