sexta-feira, 27 de novembro de 2020

Media, política, ideologia

Fernando Correia [*]

A situação de excepcionalidade criada pela pandemia veio dar oportunidade a que, indo para além das adequadas medidas impostas pela ciência médica, pelo bom senso e pela salvaguarda da saúde das pessoas, alguns tentassem – passando por cima de realidade tão óbvia como as profundas desigualdades sociais expostas pela situação – avançar para objectivos mais profundos e duradouros, promovendo o medo, o alarmismo, o individualismo, o conformismo, a criminalização da luta, o ataque aos direitos dos trabalhadores, as limitações às liberdades democráticas e constitucionais. [1]

A integração dos grupos de comunicação social – através de "noticias", "análises", "comentários", "conselhos", "advertências", etc. – nessa campanha mais ou menos disfarçadamente favorável ao confinamento político e ideológico, para hoje e para amanhã, se possível para sempre, é um bom pretexto, se bem que outros nunca vão faltando, para sistematizar algumas reflexões genéricas sobre os media e a sua actual situação

A influência dos media

A ligação dos media à sociedade e às pessoas é profunda, quer através do consumo directo quer, indirectamente, pelo contacto quotidiano com pessoas que vêem televisão, ouvem rádio, ou frequentam as redes sociais. Essa ligação ganha corpo através de diversos caminhos, que se interpenetram e complementam em quatro planos fundamentais:

Informação: a selecção dos acontecimentos que são escolhidos para serem notícia, e posteriormente a sua elaboração, hierarquização e apresentação são submetidas a estes e não aqueles critérios, facilitando e oferecendo ao público um determinado, e não outro, "retrato" da realidade e sua interpretação;

Conhecimento: para a maioria do público os media funcionam como o meio privilegiado ou mesmo único para a apreensão e a tomada de contacto com as realidades que ultrapassam a sua experiência quotidiana;

Entretenimento: esta função dos media – género predominante nas programações televisivas e radiofónicas, em publicações especializadas e no próprio tratamento da informação, atenuando ou obscurecendo as funções formativa e informativa, ao mesmo tempo que preenche quase em exclusivo as horas de lazer de grande parte dos milhões de portugueses [2] ;

Ideologia: enquanto transmissores de determinados, e não outros, programas de informação, conhecimento e entretenimento, os media, directa ou indirectamente, são portadores de conteúdo ideológico, mesmo quando (ou principalmente quando) veementemente se afirmam alheios a quaisquer tipos de vinculações desse tipo. Como se ideologia – esse inconveniente e perigoso vocábulo... – só houvesse uma: a da esquerda e mais nenhuma.

Significa isto que os media, por diversificadas formas e caminhos, constroem uma determinada realidade, sendo nessa realidade fabricada pelos media que as pessoas fundamentam, em grande parte, as suas opiniões, atitudes e comportamentos. E se durante décadas as televisões generalistas foram preponderantes nesta função, as chamadas redes sociais (não confundir com Internet) vêm assumindo um papel cada vez maior – e muitas vezes no pior sentido. [3]

Ao contrário do que possa parecer, a superficialidade e ligeireza da generalidade das programações televisivas, por exemplo, revelam-se profundamente políticas e profundamente ideológicas, devido à influência que têm nos comportamentos, opiniões, valores, interesses e atitudes sociais, profissionais, culturais e cívicas das pessoas.

É preciso desmistificar a ideia de que, por um lado, há uma informação de classe (como no caso da imprensa operária, sindical ou partidária) que explicitamente se afirma comprometida com os interesses dos trabalhadores, dos explorados, dos excluídos, e por outro lado há outra informação, alheia e "acima" dos interesses de classe, pretensamente objectiva, neutra, descomprometida.

A grande diferença entre um e outro tipo de informação é que a primeira se apresenta perante o público afirmando claramente quais os seus objectivos e as causas que defende, enquanto a segunda esconde as suas opções por detrás de um mais ou menos pomposo discurso sobre a isenção, o distanciamento, a independência, os valores democráticos, etc.

Pode-se dizer que, em certa medida, toda a informação é de classe, defende pontos de vista de classe, o que bem se compreende se tivermos em conta a natureza dos media enquanto fenómeno social e a íntima e incontornável ligação – seja ela directa ou indirecta, real ou potencial – entre as temáticas dos órgãos de informação e a vida humana nas suas várias dimensões. Não é outra, aliás, a conclusão a que chegam os sociólogos da comunicação quando reconhecem a decisiva contribuição dos media dominantes, nas sociedades capitalistas, para a formação do "consenso" em torno de valores sociais como o conformismo e a defesa do statu quo.

Mas, nesta matéria, não podemos deixar de ter em conta outras opiniões menos eruditas mas que, na prática, também contam – e muito.

"Vivemos numa sociedade capitalista"

Na análise da comunicação social um factor essencial tem que ser considerado logo à partida, revelando-se de significado decisivo para a compreensão do lugar dos media na sociedade: a questão da propriedade. O facto de em Portugal, tal como acontece nos países capitalistas em geral, todos os chamados media dominantes – dominam o mercado e dominam as opiniões, quer se trate de imprensa, rádio, televisão e online – pertencerem a grandes grupos económicos, define uma realidade que decisivamente condiciona as funções sociais dos media e os próprios contornos do panorama mediático nacional. [4]

Um elevado grau de concentração leva a que a informação, o conhecimento e o entretenimento mediáticos sejam dominados por um pequeno núcleo de pessoas e empresas representantes de um restrito e privilegiado grupo de grandes capitalistas, o que faz com que o poder dos media e tudo o que isso implica assuma uma ostensiva natureza de classe. Poder que se produz e reproduz com base em objectivos de natureza económica, mas também de natureza política e ideológica, claramente reflectidos em convicções e assumidos em frases que falam por si.

Citemos Paulo Fernandes, patrão do grupo Cofina e de outros importantes activos noutros domínios, [5] que recentemente esteve prestes a comprar o grupo Media Capital, depois de obtida a autorização da ERC (Entidade Reguladora para a Comunicação Social), apenas com o voto contra do vice-presidente daquela entidade, Mário Mesquita. Confessava Fernandes há uns anos: "Os media foram uma oportunidade que nos apareceu, é um sector bastante atraente porque exige muito menos investimento de reposição, (…) é possível crescer sem grandes investimentos. (…) A imprensa é muito rentável, escandalosamente rentável. (...) O negócio é francamente bom. Para quem vem de indústrias e de negócios com margens apertadas e onde é preciso estar sempre a controlar custos, este negócio é um autêntico doce." [6]

Sobre a compra do Correio da Manhã, em 2000, pelo equivalente a cerca de 50 milhões de euros, recorda ele: "Foi um excelente negócio, mesmo tendo em conta o preço que se pagou. Foi um preço alto, porque estávamos numa altura em que os preços estavam inflacionados, mas as melhorias que conseguimos obter na gestão superaram as nossas expectativas em relação à avaliação que tínhamos feito. (...)"

Diz ainda, sincero e claro, o proprietário do diário português de maior tiragem, com o dobro das vendas dos outros diários todos juntos: "Não estou nada de acordo com as visões de actores do mercado de que o Estado é que tem de intervir e limitar o número de intervenientes/operadores. Nós vivemos numa sociedade concorrencial, capitalista, que premeia os que são mais competitivos e mais capazes e os que são menos eficientes vão sair do mercado. (...) O mercado é que tem de encontrar a sua solução."

Sim, vivemos numa sociedade capitalista. Diz o patrão do maior grupo de comunicação social, sentem-no na pele os jornalistas. Apenas dois terços tem contrato de trabalho, dos quais 57% sem termo e 10,5% a termo certo; 64,7% dos contratos são de 35 a 40 horas semanais, sendo que, destes, 13,8% trabalha 51 a 60 horas e 9% mais de 60 horas. Dos 25,8% que, dentro da mesma empresa ou grupo económico, trabalham para mais de um órgão, mais de metade (66,8%) não recebem remuneração extra. 80% não têm progressão na carreira há mais de quatro anos, dos quais 28,4% há mais de uma década. 57,3% ganham menos de 1000 euros por mês, 11,6% menos de 500 e, desses, 7% menos de 300; simultaneamente, 19,4% recebem mais de 1500 euros mensais, sendo que, desses, 10,8% ganham até 2000 euros, 3,6% até 2500 e 5% um valor superior a 1500 euros. E é assim que dois terços já pensaram em abandonar a profissão, nomeadamente devido aos baixos rendimentos, à degradação da profissão e à precariedade contratual.

Edição da informação e ideologia

A ligação entre o jornalismo e a sociedade assume um carácter de natureza estrutural, assente no tipo de propriedade dos media de maior influência e na sua natureza de classe. Concretiza-se todos os dias nos diversos meios de comunicação social através de uma agenda que, para além dos conteúdos julgados convenientes, adopta um certo tipo de linguagem e de filosofia informativas que, elas próprias, acabaram por se tornar dominantes, e que os avanços tecnológicos vieram potenciar.

Podemos considerar uma grande vitória do capitalismo, no plano da influência e do controlo ideológica através dos media, o ter conseguido e estar a conseguir que as formas de elaborar e editar a informação impostas pelas novas tecnologias arrastem consigo maneiras de encarar e pensar a realidade que servem os seus interesses políticos e ideológicos, ou seja, os seus interesses de classe.

A rapidez e a brevidade das notícias, a sua sucessão em catadupa, a importância dada às transmissões em directo, sem possibilidade do comentário distanciado e crítico, a ausência de contextualização dos factos, tudo isto são modelos de abordagem a que hoje todos nos habituamos. Sem que disso tenhamos clara consciência, levam-nos a ter da realidade uma visão superficial, alheia às causas profundas e às consequências a curto e longo prazo, uma visão sincopada que transforma, perversamente, a aparente abundância de informação numa real subinformação, que nos inunda em vagas sucessivas de factos mas nos faz perder a bóia das ideias.

A uma fragmentação, descontinuidade e superficialidade da informação correspondem, necessariamente, uma fragmentação, descontinuidade e superficialidade da apreensão do real e do conhecimento, com todas as consequências negativas e perigosas que tal situação acarreta para a consciência política e social das pessoas.

Grupos económicos (Principais activos)


Cofina. Paulo Fernandes – Jornais e revistas: Correio da Manhã, Record, Jornal de Negócios, Destak, Destak Brasil, Metro, Sábado, Máxima, TV Guia, Semana Informática, Flash!, Vogue, GQ. Televisão: Correio da Manhã TV (CMTV).

Global Media Group. Kewin Ho – Jornais e revistas: Diário de Notícias, Jornal de Notícias, O Jogo, Diário de Notícias da Madeira, Açoriano Oriental, Volta ao Mundo, Evasões. Rádio: TSF.

Impala. Jacques Rodrigues – Revistas: Maria, Nova Gente, VIP, TV 7 Dias, Ana, Nova Cozinha, Soluções, Segredos de Cozinha.

Impresa. Francisco Pinto Balsemão – Televisão: SIC, SIC Notícias, SIC Radical, SIC Mulher, SIC K, SIC Internacional, SIC. Imprensa: Expresso, Caras.

Media Capital. Prisa, multinacional espanhola (dona de El País, As , Cadena Ser, etc.), com forte presença em países da América do Sul – Televisão: TVI, TVI 24, TVI Internacional, TVI Ficção. Rádio: Rádio Comercial, M80, Cidade FM, Vodafone FM, Smooth, Cotonete, dezenas de rádios regionais.

Trust in News. Luís Delgado – Exame, Exame Informática, Courrier Internacional, Activa, Caras, Caras Decoração, Telenovelas, TV Mais, Blitz, Jornal de Letras.

Notas

(1) Cf. Comunicado do CC do PCP de 16/5/20.
(2) Escusado será dizer que o entretenimento, em si próprio, está muito longe de ser um mal, antes pelo contrário. O problema está quando, por exemplo nos canais de televisão generalistas, ocupa um espaço manifestamente desproporcionado em relação ao consagrado às artes, às letras, à cultura, à cidadania, à educação em geral; ou quando o seu nível atinge graus de mediocridade inaceitáveis.
(3) Por falar de redes sociais, não resisto a transcrever o mail que há tempos um amigo me enviou – e que me perdoem os leitores porventura seguidores das redes que as utilizem num sentido útil e positivo. Dizia: "Finalmente aderi ao feissebuque...!!! Actualmente, estou a tentar fazer amigos fora do Facebook… mas usando os mesmos princípios. Todos os dias saio à rua e durante alguns metros acompanho as pessoas que passam e explico-lhes o que comi, como me sinto, o que fiz ontem, o que vou fazer mais tarde, o que vou comer esta noite e mais coisas. Entrego-lhes fotos da minha mulher, dos meus filhos, do meu cão, minhas no jardim, na piscina, e fotos do que fizemos no fim-de-semana. Também caminho atrás das pessoas, a curta distância, ouço as suas conversas e depois aproximo-me e digo-lhes que "gosto" do que ouvi, peço-lhes que a partir de agora sejamos amigos e também faço algum comentário sobre o que ouvi. Mais tarde, partilho tudo quando falo com outras pessoas. E funciona… Já tenho três pessoas que me seguem… São dois polícias e um psiquiatra."
(4) Ver no final deste texto a lista dos actuais maiores grupos neste sector, indicando-se os respectivos donos e principais órgãos.
(5) A Altri, conglomerado de Paulo Fernandes para os negócios da pasta de papel e da energia (a partir de biomassa), é um dos dois gigantes nacionais do sector – sendo o outro a Navigator. Segundo o Jornal de Negócios, "a Altri "registou em 2018 um resultado líquido de 194,5 milhões de euros, o que revela um crescimento de 102,5% face aos 96,1 milhões de lucros conseguidos no ano anterior " . Segundo o relatório de 2018, publicado na CMVM , entre as empresas detidas pela Altri encontram-se as produtoras de pasta de papel Celbi, Caima e Celtejo. Esta, situada em Vila Velha de Ródão, foi protagonista em 2018 de um dos mais sérios episódios de poluição ambiental no rio Tejo, o qual teve de ser resolvido a expensas da Agência Portuguesa do Ambiente (APA) e da Empresa Portuguesa das Águas Livres (EPAL), como na altura foi denunciado pela comissão de trabalhadores da EPAL .
(6) Cf. Elsa Costa e Silva, Os donos da notícia , Porto Editora, 2004, pp. 164-177.

Ver também:

  Jornalismo de merda

[*] Jornalista

O original encontra-se na revista O Militante , Edição Nº 367 - Jul/Ago 2020

Este artigo encontra-se em https://resistir.info/ 

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