Fernando Correia [*]
A situação de excepcionalidade
criada pela pandemia veio dar oportunidade a que, indo para além das adequadas
medidas impostas pela ciência médica, pelo bom senso e pela salvaguarda da
saúde das pessoas, alguns tentassem – passando por cima de realidade tão óbvia
como as profundas desigualdades sociais expostas pela situação – avançar para
objectivos mais profundos e duradouros, promovendo o medo, o alarmismo, o
individualismo, o conformismo, a criminalização da luta, o ataque aos direitos
dos trabalhadores, as limitações às liberdades democráticas e
constitucionais. [1]
A integração dos grupos de comunicação social – através de
"noticias", "análises", "comentários", "conselhos",
"advertências", etc. – nessa campanha mais ou menos disfarçadamente
favorável ao confinamento político e ideológico, para hoje e para amanhã, se
possível para sempre, é um bom pretexto, se bem que outros nunca vão faltando,
para sistematizar algumas reflexões genéricas sobre os media e a sua
actual situação
A influência dos media
A ligação dos media à sociedade e às pessoas é profunda, quer através
do consumo directo quer, indirectamente, pelo contacto quotidiano com pessoas
que vêem televisão, ouvem rádio, ou frequentam as redes sociais. Essa ligação
ganha corpo através de diversos caminhos, que se interpenetram e complementam
em quatro planos fundamentais:
Informação: a selecção dos acontecimentos que são escolhidos para serem
notícia, e posteriormente a sua elaboração, hierarquização e apresentação são
submetidas a estes e não aqueles critérios, facilitando e oferecendo ao público
um determinado, e não outro, "retrato" da realidade e sua
interpretação;
Conhecimento: para a maioria do público os media funcionam como
o meio privilegiado ou mesmo único para a apreensão e a tomada de contacto com
as realidades que ultrapassam a sua experiência quotidiana;
Entretenimento: esta função dos media – género predominante nas
programações televisivas e radiofónicas, em publicações especializadas e no
próprio tratamento da informação, atenuando ou obscurecendo as funções
formativa e informativa, ao mesmo tempo que preenche quase em exclusivo as
horas de lazer de grande parte dos milhões de portugueses [2] ;
Ideologia: enquanto transmissores de determinados, e não outros, programas
de informação, conhecimento e entretenimento, os media, directa ou
indirectamente, são portadores de conteúdo ideológico, mesmo quando (ou
principalmente quando) veementemente se afirmam alheios a quaisquer tipos de
vinculações desse tipo. Como se ideologia – esse inconveniente e perigoso
vocábulo... – só houvesse uma: a da esquerda e mais nenhuma.
Significa isto que os media, por diversificadas formas e caminhos,
constroem uma determinada realidade, sendo nessa realidade fabricada
pelos media que as pessoas fundamentam, em grande parte, as suas
opiniões, atitudes e comportamentos. E se durante décadas as televisões
generalistas foram preponderantes nesta função, as chamadas redes sociais (não
confundir com Internet) vêm assumindo um papel cada vez maior – e muitas vezes
no pior sentido. [3]
Ao contrário do que possa parecer, a superficialidade e ligeireza da
generalidade das programações televisivas, por exemplo, revelam-se profundamente
políticas e profundamente ideológicas, devido à influência que
têm nos comportamentos, opiniões, valores, interesses e atitudes sociais,
profissionais, culturais e cívicas das pessoas.
É preciso desmistificar a ideia de que, por um lado, há uma informação de
classe (como no caso da imprensa operária, sindical ou partidária) que
explicitamente se afirma comprometida com os interesses dos trabalhadores, dos
explorados, dos excluídos, e por outro lado há outra informação, alheia e
"acima" dos interesses de classe, pretensamente objectiva, neutra,
descomprometida.
A grande diferença entre um e outro tipo de informação é que a primeira se
apresenta perante o público afirmando claramente quais os seus objectivos e as
causas que defende, enquanto a segunda esconde as suas opções por detrás de um
mais ou menos pomposo discurso sobre a isenção, o distanciamento, a
independência, os valores democráticos, etc.
Pode-se dizer que, em certa medida, toda a informação é de classe,
defende pontos de vista de classe, o que bem se compreende se tivermos em conta
a natureza dos media enquanto fenómeno social e a íntima e
incontornável ligação – seja ela directa ou indirecta, real ou potencial –
entre as temáticas dos órgãos de informação e a vida humana nas suas várias
dimensões. Não é outra, aliás, a conclusão a que chegam os sociólogos da comunicação
quando reconhecem a decisiva contribuição dos media dominantes, nas
sociedades capitalistas, para a formação do "consenso" em torno de
valores sociais como o conformismo e a defesa do statu quo.
Mas, nesta matéria, não podemos deixar de ter em conta outras opiniões menos
eruditas mas que, na prática, também contam – e muito.
Na análise da comunicação social um factor essencial tem que ser considerado logo à partida, revelando-se de significado decisivo para a compreensão do lugar dos media na sociedade: a questão da propriedade. O facto de em Portugal, tal como acontece nos países capitalistas em geral, todos os chamados media dominantes – dominam o mercado e dominam as opiniões, quer se trate de imprensa, rádio, televisão e online – pertencerem a grandes grupos económicos, define uma realidade que decisivamente condiciona as funções sociais dos media e os próprios contornos do panorama mediático nacional. [4]
Um elevado grau de concentração leva a que a informação, o conhecimento e o entretenimento mediáticos sejam dominados por um pequeno núcleo de pessoas e empresas representantes de um restrito e privilegiado grupo de grandes capitalistas, o que faz com que o poder dos media e tudo o que isso implica assuma uma ostensiva natureza de classe. Poder que se produz e reproduz com base em objectivos de natureza económica, mas também de natureza política e ideológica, claramente reflectidos em convicções e assumidos em frases que falam por si.
Citemos Paulo Fernandes, patrão do grupo Cofina e de outros importantes activos noutros domínios, [5] que recentemente esteve prestes a comprar o grupo Media Capital, depois de obtida a autorização da ERC (Entidade Reguladora para a Comunicação Social), apenas com o voto contra do vice-presidente daquela entidade, Mário Mesquita. Confessava Fernandes há uns anos: "Os media foram uma oportunidade que nos apareceu, é um sector bastante atraente porque exige muito menos investimento de reposição, (…) é possível crescer sem grandes investimentos. (…) A imprensa é muito rentável, escandalosamente rentável. (...) O negócio é francamente bom. Para quem vem de indústrias e de negócios com margens apertadas e onde é preciso estar sempre a controlar custos, este negócio é um autêntico doce." [6]
Sobre a compra do Correio da Manhã, em 2000, pelo equivalente a cerca de 50 milhões de euros, recorda ele: "Foi um excelente negócio, mesmo tendo em conta o preço que se pagou. Foi um preço alto, porque estávamos numa altura em que os preços estavam inflacionados, mas as melhorias que conseguimos obter na gestão superaram as nossas expectativas em relação à avaliação que tínhamos feito. (...)"
Diz ainda, sincero e claro, o proprietário do diário português de maior tiragem, com o dobro das vendas dos outros diários todos juntos: "Não estou nada de acordo com as visões de actores do mercado de que o Estado é que tem de intervir e limitar o número de intervenientes/operadores. Nós vivemos numa sociedade concorrencial, capitalista, que premeia os que são mais competitivos e mais capazes e os que são menos eficientes vão sair do mercado. (...) O mercado é que tem de encontrar a sua solução."
Sim, vivemos numa sociedade capitalista. Diz o patrão do maior grupo de comunicação social, sentem-no na pele os jornalistas. Apenas dois terços tem contrato de trabalho, dos quais 57% sem termo e 10,5% a termo certo; 64,7% dos contratos são de
Edição da informação e ideologia
A ligação entre o jornalismo e a sociedade assume um carácter de natureza estrutural, assente no tipo de propriedade dos media de maior influência e na sua natureza de classe. Concretiza-se todos os dias nos diversos meios de comunicação social através de uma agenda que, para além dos conteúdos julgados convenientes, adopta um certo tipo de linguagem e de filosofia informativas que, elas próprias, acabaram por se tornar dominantes, e que os avanços tecnológicos vieram potenciar.
Podemos considerar uma grande vitória do capitalismo, no plano da influência e do controlo ideológica através dos media, o ter conseguido e estar a conseguir que as formas de elaborar e editar a informação impostas pelas novas tecnologias arrastem consigo maneiras de encarar e pensar a realidade que servem os seus interesses políticos e ideológicos, ou seja, os seus interesses de classe.
A rapidez e a brevidade das notícias, a sua sucessão em catadupa, a importância dada às transmissões em directo, sem possibilidade do comentário distanciado e crítico, a ausência de contextualização dos factos, tudo isto são modelos de abordagem a que hoje todos nos habituamos. Sem que disso tenhamos clara consciência, levam-nos a ter da realidade uma visão superficial, alheia às causas profundas e às consequências a curto e longo prazo, uma visão sincopada que transforma, perversamente, a aparente abundância de informação numa real subinformação, que nos inunda em vagas sucessivas de factos mas nos faz perder a bóia das ideias.
A uma fragmentação, descontinuidade e superficialidade da informação correspondem, necessariamente, uma fragmentação, descontinuidade e superficialidade da apreensão do real e do conhecimento, com todas as consequências negativas e perigosas que tal situação acarreta para a consciência política e social das pessoas.
Grupos económicos (Principais activos)
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(1) Cf. Comunicado do CC do PCP de 16/5/20.
(2) Escusado será dizer que o entretenimento, em si próprio, está muito longe
de ser um mal, antes pelo contrário. O problema está quando, por exemplo nos
canais de televisão generalistas, ocupa um espaço manifestamente
desproporcionado em relação ao consagrado às artes, às letras, à cultura, à
cidadania, à educação em geral; ou quando o seu nível atinge graus de
mediocridade inaceitáveis.
(3) Por falar de redes sociais, não resisto a transcrever o mail que
há tempos um amigo me enviou – e que me perdoem os leitores porventura
seguidores das redes que as utilizem num sentido útil e positivo. Dizia:
"Finalmente aderi ao feissebuque...!!! Actualmente, estou a
tentar fazer amigos fora do Facebook… mas usando os mesmos princípios. Todos os
dias saio à rua e durante alguns metros acompanho as pessoas que passam e
explico-lhes o que comi, como me sinto, o que fiz ontem, o que vou fazer mais
tarde, o que vou comer esta noite e mais coisas. Entrego-lhes fotos da minha
mulher, dos meus filhos, do meu cão, minhas no jardim, na piscina, e fotos do
que fizemos no fim-de-semana. Também caminho atrás das pessoas, a curta
distância, ouço as suas conversas e depois aproximo-me e digo-lhes que
"gosto" do que ouvi, peço-lhes que a partir de agora sejamos amigos e
também faço algum comentário sobre o que ouvi. Mais tarde, partilho tudo quando
falo com outras pessoas. E funciona… Já tenho três pessoas que me seguem… São
dois polícias e um psiquiatra."
(4) Ver no final deste texto a lista dos actuais maiores grupos neste sector,
indicando-se os respectivos donos e principais órgãos.
(5) A Altri, conglomerado de Paulo Fernandes para os negócios da pasta de papel
e da energia (a partir de biomassa), é um dos dois gigantes nacionais do sector
– sendo o outro a Navigator. Segundo o Jornal de Negócios, "a Altri "registou em 2018 um resultado líquido de
194,5 milhões de euros, o que revela um crescimento de 102,5% face aos 96,1
milhões de lucros conseguidos no ano anterior " . Segundo o
relatório de 2018, publicado na CMVM , entre as empresas detidas pela
Altri encontram-se as produtoras de pasta de papel Celbi, Caima e Celtejo.
Esta, situada
(6) Cf. Elsa Costa e Silva, Os donos da notícia , Porto Editora,
2004, pp. 164-177.
Ver também:
Jornalismo
de merda
[*] Jornalista
O original encontra-se na revista O
Militante , Edição Nº 367 - Jul/Ago 2020
Este artigo encontra-se em https://resistir.info/
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