Joana Amaral Dias* | Diário de Notícias | opinião
Veremos se Medina e Manuel Salgado são ou não corruptos. Para já, uma coisa é certa: o sistema montado pelo Sr. Feliz e pelo Sr. Contente, com concentração de poder, zero transparência, primado dos interesses privados (e não públicos), adjudicações directas, criação de "vias rápidas da reabilitação", contratação em barda de arquitectos-estrela; regimes fiscais especiais, leis-alfaiate, acumulação de poderes nas "sociedades de reabilitação urbana", são cama fértil da corrupção. Cama prenha. Há anos que Lisboa está a saque e que a sua Câmara Municipal passou a colossal central de negócios, onde manda um edil-infante e um "Dono Disto Tudo", outro Salgado, o homem que mais tempo esteve no poder nos Paços do Concelho (primo de Ricardo), controlando o acesso a todas as encomendas.
Resultado? Uma cidade para ricos e turistas, postal ilustrado para inglês ver, enquanto o comum munícipe, tratado como cidadão de segunda, leva com as ruas porcas, gentrificadas, ruidosas. Eis o retrato não só da capital mas de todo o país, onde o poder desfila sem crítica e com uma oposição conivente ou dormente. Afinal, nesta cidade de apenas zona ribeirinha, casco histórico e eixo central, com forte concentração de terciário e habitação de luxo, Lisboa de boulevards e tascas gourmet, onde mora a resistência? Onde habita o desafio a esta antítese da pólis de construção colectiva, partilhada, vivida? Sumiu? Já não quer saber da especulação imobiliária? Onde estarão todos os "promotores lesados"? Onde andam os bem pensantes? Onde estão os técnicos de salvaguarda de imóveis de valor patrimonial? Está aí alguém? Poucos. E os poucos que ousam, como o Tribunal de Contas (que num relatório declarou que o preço de venda de 11 imóveis da Segurança Social à Câmara de Lisboa foi inferior em 3,5 milhões ao valor de mercado), são logo apodados de "mentecaptos" pelo PS ou de "incompetentes" pelo próprio Medina, os mesmos que enchem a boca com discursos sobre prestação de contas nos dias ímpares.
Não sabemos se a Operação Olissipus será conclusiva, mas que estes últimos anos cheiraram a infestação, lá isso cheiraram: o negócio da Torre de Picoas - onde subitamente o grupo Espírito Santo podia construir; o estranho caso dos terrenos de Entrecampos; a entrega em bandeja do espaço dos bombeiros ao Hospital da Luz (Grupo Espírito Santo); a misteriosa passagem da Quinta da Matinha (terrenos que eram da família Espírito Santo) para um fundo cujos verdadeiros proprietários são desconhecidos; uma disforme derrama hospitalar à beira-rio; demolições integrais ou parciais de edifícios fundamentais, como a moradia da Rua S. João da Mata, dos palacetes da Rua das Trinas e da Rua António Maria Cardoso, do Palácio de Rio Maior nas Portas de Santo Antão; destruições no Largo de S. Paulo; a delapidação da Garagem Liz; a recente moscambilha do quarteirão da Portugália; a obstinação na caríssima e complexa obra de prolongamento do metro do Rato até ao Cais do Sodré, etc.
Ainda que se deseje que a investigação faça o seu caminho, não exista operação judicial alguma que tenha sucesso quando a corrupção é o próprio sistema. Logo, ou a autarquia vem abaixo pelo voto e pelo voto se elege uma outra maneira de fazer cidade (quem?) ou daqui a uns anos assistiremos ao cortejo das virgens santas carpideiras a jurar que nada sabiam e que jamais viram. Outra vez?
* Psicóloga clínica. Escreve de acordo com a antiga ortografia
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