terça-feira, 20 de abril de 2021

Portugal | O dilema da corrupção

João Melo* | Diário de Notícias | opinião

Na semana passada, escrevi aqui que a luta contra a corrupção não deve ser feita com recurso à barbárie (processos seletivos, politicamente motivados e mal investigados; provas ilegais ou meros indícios; fuga de informações e outros procedimentos). É que, como disse, apenas um passo separa o jacobinismo e o justicialismo do fascismo.

Ou seja: nos atuais sistemas democráticos, a repressão dos atos de corrupção deve obedecer estritamente ao que está disposto quer na constituição quer nas leis de cada país. É preciso fazer finca-pé nesse sentido e não ceder, em circunstância alguma, à tendência mais ou menos universal para os julgamentos mediáticos ou, no caso de figuras políticas, para o recurso ao chamado lawfare.

Evocando um velho poema mal atribuído a Brecht, que ninguém pense que isso só pode acontecer aos outros: amanhã pode suceder a cada um de nós e já não haverá ninguém para defender-nos.

Se as leis estão erradas ou são insuficientes, mudem-se as leis. Se os prazos são inadequados, alterem-se os prazos. Se os processos de corrupção são tendencialmente complexos, aprovem-se meios legais e técnicos de simplificá-los e aposte-se em recursos humanos mais qualificados para os apurar.

Uma nota, aqui, acerca das situações em que os arguidos não são levados a tribunal ou, se o forem, não sejam considerados culpados, por razões processuais ou técnicas. Para muitos, no embalo da atual onda jacobinista e justicialista que parece espalhar-se pelo mundo, isso significa que os mesmos "não são inocentes" ou que "não conseguiram provar a sua inocência". Errado. Mais do que errado, perigoso, pois pode estimular formas ilícitas de punição desses indivíduos, incluindo tentativas de justiça popular.

Juridicamente, diga-se, o que tem de ser provado é a culpa dos acusados. Nesse sentido, e uma vez os processos terminados, aqueles não têm mais de provar a sua inocência. Não faz sentido, pois, argumentar que os arguidos que não sejam acusados (às vezes depois de anos de investigação, o que ajuda a criar a onda justicialista em torno de tais processos) ou que não sejam sentenciados "não provaram a sua inocência".

A vida social, porém, não é apenas uma realidade jurídica. Também é, entre outras coisas, política. Assim, em democracia, cabe aos cidadãos punir politicamente (sobretudo pelo voto) aqueles que não se conseguirem livrar da suspeição de corrupção, justa ou injusta.

O ponto principal, entretanto, é outro. As sociedades capitalistas em que todos, com raríssimas exceções, vivemos enfrentam um dilema: a corrupção é, hoje, um dos mais poderosos argumentos para o crescimento da extrema-direita em todo o mundo. O que fazer, portanto?

Os factos demonstram que o discurso anticorrupção da extrema-direita é apenas da boca para fora, como se vê quando a mesma ou seus aparentados chegam ao poder (casos de Trump, Putin e Bolsonaro). Seja como for, o "sistema" tem de ir mais fundo no combate à corrupção e não limitar-se a fazer rolar umas cabeças de vez em quando, se não quiser ser capturado pela extrema-direita.

Para tal, precisa de cortar na própria carne, chegando necessariamente ao "primeiro milhão de dólares", isto é, a origem de todas as fortunas, que nem Rockefeller conseguia justificar. As forças liberais e democráticas, que neste momento sustentam o sistema capitalista, estarão dispostas a isso?

No caso de Portugal, estou curioso para saber qual será a posição do "centrão" em relação à proposta do PCP de tipificação do crime de "enriquecimento injustificado".

*Jornalista e escritor angolano, publicado em Portugal pela Caminho

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