Daniel Oliveira* | TSF | opinião | com áudio
Daniel Oliveira critica os manifestantes que protestaram contra uma alegada "ditadura sanitária", considerando que os mesmos usam a palavra ditadura com o objetivo de "relativizar a palavra democracia".
No espaço de opinião que ocupa semanalmente na TSF, Daniel Oliveira afirma que estes manifestantes deviam entrar em contacto com pessoas que realmente tenham sofrido as consequências do regimes ditatoriais para perceberem o que é viver em ditadura.
"No seu quotidiano aceitam as ordens do patrão e não se metem com sindicatos e greves. Nos bairros mais pobres defendem que a polícia deve ter carta-branca para bater, disparar e prender sem lei. Contra a corrupção não reconhecem nenhum direito a nenhum arguido, nem sequer o direito a ser julgado antes de ser condenado. No Facebook entregam os mais ínfimos pormenores das suas vidas a multinacionais que os vigiam a cada gesto, mas se lhes pedem para pôr uma máscara, sentem-se ultrajados na sua liberdade. Não fazem ideia do que seja uma ditadura e deviam estar uma hora a falar com um iraniano, um cubano, um norte-coreano ou um saudita que tenha passado pelas prisões dos seus regimes para saberem do que falam. Ou com um português, um espanhol, um italiano ou um polaco que, no passado, tenha feito com perigo o que eles fazem agora em liberdade", sustenta.
O comentador sublinha ele próprio criticou "vários excessos, porque, se a lógica do confinamento intermitente se eterniza, morremos da cura e não da doença, porque temos de cuidar do dia que virá depois, da economia e da democracia, passando pela saúde mental das pessoas", mas sublinha que "para recusar os excessos é preciso defender alternativas... e eles são contra todas".
"São contra a máscara que só faz mal, contra os testes que são inúteis, contra o distanciamento social que lhes limita a liberdade. Portanto, são contra qualquer solução coletiva que nos proteja no nosso quotidiano. Resta a vacina, também são contra, porque é experimental, porque é a Big Pharma, porque sim, porque não, não interessa, porque mesmo antes de haver vacina já sabíamos que seriam contra", acrescenta.
O jornalista esclarece que não confunde "os que vão ponderando de forma crítica as medidas decididas pelos poderes públicos com valores fundamentais da nossa vida em comunidade com estas pessoas".
Por outro lado, considera que "estas [os manifestantes] ou são suicidas e nos querem levar com eles ou acreditam que o vírus é irrelevante. Dão mais importância a uns desmaios em Mafra do que a meio milhão de mortes no Brasil, seis vezes mais do que as mortes por homicídio em dois anos, um dos países mais perigosos do mundo, mais de meio milhão nos Estados Unidos, 130 mil mortos no Reino Unido, quase tantos como os que morrem anualmente com cancro naquele país. Imaginem o que diriam se alguém vos garantisse que o cancro é assim como uma gripe".
Daniel Oliveira recorda que 17 mil pessoas morreram em Portugal com Covid-19, isto é, "147 vezes mais do que as vítimas mortais dos incêndios de 2017, que deixaram o país em estado de choque, deixando de fora o efeito devastador que esta doença tem no Serviço Nacional de Saúde que - para evitar que os números de óbitos sejam maiores - desvia recursos para esta epidemia, piorando a saúde dos portugueses em todas as outras patologias".
Para Daniel Oliveira, as pessoas que se referem a uma ditadura sanitária "analisam os números ignorando todas as medidas de contenção que foram tomadas" e acrescente que, "como não podemos fazer história contrafactual, penduram-se nos efeitos da prevenção para contestar as medidas de prevenção".
"É exatamente este o comportamento dos antivacinas ainda antes desta pandemia, com base na segurança que os outros lhes dão que fizeram desaparecer doenças que matavam muita gente, explicam que as vacinas não são necessárias, porque ninguém morre daquelas doenças. Sentam-se no conforto que os outros lhes oferecem e recusam-se a participar nele. Sabem coisas que nós não sabemos, porque não são do rebanho, não engolem as patranhas que nos dizem os cientistas, médicos e agências de medicamentos, universidades, centros de investigação, estruturas onde trabalham milhares e milhares de peritos. Aprenderam a desconfiar de tudo e de todos, mas basta verem um gráfico no Twitter ou vídeo no YouTube feito não sabem por quem para a sua desconfiança metódica se transformar numa fé inabalável. O importante é que a pessoa que lhes fala não seja do sistema, ou seja, não saiba patavina sobre o assunto", explica.
Para Daniel Oliveira, "o tempo que vivemos é o da arrogância individual" já que "cada vez mais gente recusa-se a reconhecer a autoridade intelectual a quem a conquistou por direito".
"Nada sei sobre virologia, pneumologia ou epidemiologia e não me parece que uns meses a ver coisas na internet me desse algum conhecimento relevante. Num tempo em que tudo é instantâneo, o conhecimento continua a não o ser. Por isso, confio na ciência e nos instrumentos que ela própria tem para construir consensos científicos sempre provisórios e falíveis, porque a vantagem que a ciência tem em relação à fé é a possibilidade de se corrigir, sempre passível de ser manipulada e usada, claro está, mas menos do que vídeos virais no Twitter", sustenta.
Daniel Oliveira diz não aceitar "esta nova forma de ver a liberdade em que todos os sacrifícios pela comunidade são vistos como ditadura. Falhei e continuarei a falhar, como todos nós numa doença que dura há demasiado tempo para que isso não aconteça."
"Continuarei a discutir os limites do que podemos ou não podemos fazer em nome da nossa segurança, porque a democracia não foi suspensa, mas nunca deixarei de olhar para estes sinais assustadores de um tempo em que a mentira se espalha muito mais depressa do que verdade, a arrogância autodidata despreza a ciência e cada um acha que qualquer incómodo na sua vida em nome da comunidade é ditadura como um prenúncio de tempos terríveis. Tempos em que deixamos de conseguir gerir coletivamente as nossas vidas. Quem manipula as pessoas para que recusem tudo o que nos possa defender deste vírus aposta no caos. Basta ouvi-los. Defensores da liberdade absoluta para si mesmos estão na primeira linha do discurso securitário para minorias e bandidos. Eles são a ordem que virá depois do caos que alimentam e arrebanham com facilidade quem passa demasiado tempo nas redes sociais, julgando que está a aprender alguma coisa", remata.
*Texto adaptado por Sara Beatriz Monteiro
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