Em dois anos, a miséria aumentou 22%. 28 milhões de brasileiros (o equivalente a população do Chile e Paraguai somadas) estão abaixo da linha da pobreza. Número de pessoas vivendo nas ruas explodiu. Apenas ações solidárias não bastarão…
# Publicado em português do Brasil
José Álvaro de Lima Cardoso* | Outras Palavras
A miséria e a fome voltaram a sacrificar e assombrar os brasileiros mais pobres. Além dos 612.000 mortos pela pandemia há uma tempestade perfeita nesse caos que coloca em risco também a segurança alimentar da população: inflação alta e concentrada em alimentos, desemprego e ausência de um auxílio emergencial com valores decentes.
De acordo com a FGV Social, quase 28 milhões de pessoas vivem abaixo da linha da pobreza no Brasil, de R$ 232 ao mês, segundo o critério da FGV. Em 2019, antes da pandemia de covid-19, eram pouco mais de 23 milhões de indivíduos nesta situação. Os 28 milhões de pobres representam mais do que as populações somadas de Chile e Paraguai e equivalem a cerca de 13,2% da nossa população. A miséria aumentou 22% somente nos últimos dois anos: foram 5 milhões de novos pobres no período. Antes do golpe, em função de um conjunto de ações integradas, o Brasil vinha melhorando a distribuição de renda e reduzindo a pobreza. O Brasil vinha sendo uma referência na América Latina e até no mundo, de êxito no combate à pobreza.
Uma parte dos brasileiros hoje, ante o aumento do preço do gás de cozinha e dos alimentos, não vêm nem conseguindo pagar o aluguel. Há famílias que vêm alternando o pagamento das contas básicas da casa. Para não faltar para a comida, o trabalhador num mês paga a luz, noutro a água, e no outro o aluguel. Inflação de alimentos e desemprego nas alturas pegam com muito mais força a população pobre do país. O problema é que todas as políticas do governo Bolsonaro conduzem ao aumento do número de pobres no país. Todas as políticas são contra o Trabalho e, portanto, contribuem para aumentar o número de pobres seja pelo desemprego, precarização, destruição de serviços públicos, redução do orçamento público destinado aos pobres, etc.
É sabido que o Estado sempre estará a serviço da classe dominante. Porém, a partir do golpe de 2016, os golpistas colocaram o Estado exclusivamente a serviço da burguesia. E da burguesia financeira, não é nem de outro segmento. Portanto, aquelas pequenas brechas, que permitiam o Estado financiar alguns gastos de interesse do povo, foram sendo extintas. Isto significou desde grandes medidas, como a Emenda Constitucional 95 (Emenda da morte), que congelou gastos primários por 20 anos, até o fim da política do subsídio do gás de cozinha praticada pela Petrobrás, em 2019, numa resolução do Conselho Nacional de Política Energética.
É chamativa a crueldade dos golpistas. Ao mesmo tempo em que negam ao pobre o acesso ao gás de cozinha, o presidente da Petrobrás, general Joaquim Silva e Luna ganha salário de R$ 260.400 mensais. Somente com o salário do presidente da Petrobrás, o governo poderia comprar todo mês 2.604 botijões de gás (13k a R$ 100,00) e disponibilizar a população pobre. Detalhe: Silva e Luna ainda recebe o salário de general da reserva no valor que chega a R$32,2 mil brutos mensais.
Claro, no esquema do petróleo, a remuneração do general, e de toda a direção da Petrobrás, é “dinheiro de cachaça”. O que está em jogo, com o golpe de 2016, é quem se beneficia da riqueza do pré-sal. E o pré-sal contém uma reserva de petróleo que, segundo os especialistas, pode chegar ao equivalente a “10 PIBs” brasileiro. O salário do general, portanto, é dinheiro trocado. Pensem no que representa em termos financeiros, por exemplo, a “MP da Shell”, que isenta de impostos as multinacionais de petróleo: segundo alguns cálculos, somente essa medida significará para o Brasil um prejuízo de um trilhão de reais em 20 anos. Na Petrobrás, essa é apenas uma medida, entre dezenas que desfalcam o Brasil.
Um sintoma chocante de elevação da pobreza é o aumento de pessoas em “situação de rua”. Antes da chegada do coronavírus, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) estimava 221 mil pessoas em situação de rua no país, sendo pouco mais de 24 mil apenas na capital paulista. Mas esse número está tão subestimado que a prefeitura de São Paulo prepara um novo levantamento. Segundo o coordenador da Pastoral do Povo, padre Júlio Lancellotti, o cenário piorou muito. De fato, quem anda pelas ruas nas cidades médias e grandes sabe que a população de rua explodiu em todas as cidades. As pessoas não têm emprego, não tem proteção social, e os governos estão destruindo serviços públicos em nome de uma suposta austeridade fiscal.
O Brasil tinha deixado o chamado
Mapa da Fome da ONU (Organização das Nações Unidas) em 2014 com o alcance do
programa Bolsa Família, grande crescimento do emprego formal, com um conjunto
de políticas integradas, como o Pronaf, que garantia financiamento para os
pequenos agricultores. Além de uma política robusta e consistente de
alimentação nas escolas que servia, há alguns anos, mais de 43 milhões de
refeições diárias para as crianças nas escolas públicas. Segundo estudo do
Ipea, baseado em dados de
O fato de que, em 10 anos (entre 2003 e 2013), o Brasil tenha saído do vergonhoso Mapa da Fome, revela como o problema é mesmo político. Bastou um governo mais socialdemocrata, mais preocupado com o povo, que, em dez anos foi reduzida substancialmente o problema da fome no país. Ou seja, a fome da população é, na melhor hipótese, um descaso de quem detém o poder político e econômico no país. Na pior hipótese (que não se deve descartar) é um projeto dos ricos e poderosos: manter uma parte da população sob o cruel açoite da fome, como medida de controle político da população.
É preciso dizer aqui que o problema da fome não será resolvido por ONGs, apesar do nosso total reconhecimento do esforço das mesmas. Ninguém pode ser contra a generosidade e a solidariedade, mas a solução do problema requer a atuação do Estado. Os golpistas, ao mesmo tempo em que mantém fortunas em paraísos fiscais (como Paulo Guedes e o presidente do Banco Central, pegos com a boca na botija com a operação Pandora Papers) desmontaram, justamente, as estruturas estatais montadas para combater a fome. O Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), por exemplo, foi desmontado pelo governo federal em 2018.
Ninguém pode ser contra a doação de alimentos, mesmo que fosse beneficiar apenas uma pessoa. Mas doação de alimentos não irá resolver o problema, como não resolveu no tempo de Fernando Henrique Cardoso. As pessoas precisam comer três vezes ao dia, não há doações que resolvam isso. O enfrentamento da fome deve ser feito com estratégia política a partir da força do Estado. Quem pode deve doar, mas não podemos substituir a ação política por doações. O problema da fome, aliás, não é falta de alimentos: a produção agrícola brasileira deve chegar a 290 milhões de toneladas na safra 2021/2022, um aumento de 14,7% em relação à safra anterior.
Gostou do texto? Contribua para manter e ampliar nosso jornalismo de profundidade: OUTROS QUINHENTOS
* Economista, doutor
Sem comentários:
Enviar um comentário