terça-feira, 16 de novembro de 2021

Portugal | A maioria absoluta ou o país?

Mariana Mortágua* | Jornal de Notícias | opinião

Vale a pena lembrar o que disse António Costa na noite das eleições de 2019. Declarava o líder do PS que "os portugueses gostaram da geringonça", que queriam a continuação desta solução política e que era dever do Governo contribuir para essa estabilidade. António Costa tinha razão sobre estes compromissos. E esqueceu-os logo a seguir.

Ao rejeitar um acordo escrito com o Bloco, António Costa anunciou uma escolha: o país seria governado à vista, com acordos pontuais e convergências momentâneas. Esta escolha foi também uma revelação: o PS dispensava a esquerda na sua governação. O problema é que a essência da geringonça era precisamente a disponibilidade para entendimentos à esquerda em áreas cruciais para a vida do país.

Se em 2015 António Costa foi forçado pelas circunstâncias a um acordo com a esquerda, a partir de 2019 limitou-se a invocar a memória de uma solução passada para exigir a Bloco e PCP que aprovassem os orçamentos. Enquanto isso, o PS juntava-se à direita para chumbar as propostas destes dois partidos sobre o trabalho, os serviços públicos ou a política fiscal. Onde a esquerda queria compromissos estruturais, António Costa preferiu uma política de remendos.

A escolha de António Costa em 2019 só trouxe instabilidade ao país. As repetidas ameaças de crise política - fosse por causa da carreira dos professores, do IVA da eletricidade ou do pagamento ao Novo Banco sem a realização de uma auditoria - enviesaram o debate público e criaram divisões artificiais na sociedade. É essa necessidade de criar divergências artificiais que leva o PS a descredibilizar propostas justas e sensatas, por vezes com recurso a argumentos falsos. Veja-se o que aconteceu no debate sobre a eliminação do corte de sustentabilidade, ou seja, a dupla penalização para quem se reforma com mais de 60 anos de vida e 40 de descontos.

A falta de poder de compra resolve-se com salário, e não com Ivauchers; assim como a degradação do SNS se resolve com carreiras dignas, e não com a duplicação do pagamento a partir 500.ª hora extraordinária. Não se combate a direita com escolhas que a direita aprovaria, e que são incapazes de oferecer um horizonte de esperança à população. É no pântano que a direita, e sobretudo a extrema-direita, se movem. E, ao abrir a porta ao bloco central, António Costa apenas contribui para esse pântano. E tudo para quê? Para poder dizer ao país que a única resposta é uma maioria absoluta do PS? Mas o que ganhou o país com essa ideia que desde 2019 determina as escolhas do primeiro-ministro?

Perante uma direita sem qualquer perspetiva sobre o país (e até sem qualquer perspetiva sobre a direita), a quem só resta explorar as trevas do ódio social e surfar o legítimo descontentamento daqueles para quem o salário não chega ao fim do mês, a esquerda tem a gigantesca responsabilidade de apresentar soluções. O país já disse a António Costa que não deseja uma maioria absoluta do PS e que gostou da geringonça. Resta saber se desta vez o Partido Socialista quer finalmente começar a ouvir o país.

*Deputada do BE

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