terça-feira, 28 de dezembro de 2021

CHINA: O “PERIGO AMARELO”, REALMENTE?

Thierry Meyssan*

O Presidente Biden relembra-nos o «perigo amarelo»: a China roubaria as nossas patentes, promoveria a corrupção e destruiria o ambiente antes de nos vir impor pela força o seu regime totalitário. Felizmente os Estados Unidos e a OTAN protegeriam as democracia e a paz. Mas, então como explicar a aliança entre Pequim e Moscovo, a qual deveria sentir o mesmo medo ? Tal seria simplesmente uma « aliança de ditaduras ». Para todos os que viveram a Guerra Fria, esta narrativa soa a falso.

O projecto chinês de rotas da seda é um sucesso mundial. Apesar de todas as criticas expressas (corrupção das elites locais, endividamento dos países parceiros, atentados às leis ambientais), os países que nele participam experimentam um forte crescimento.

Como não se espantar que os programas de ajuda ao desenvolvimento dos Ocidentais desde a descolonização não o tenham conseguido ?

E sobretudo, como não se admirar que após ter, durante décadas, elogiado as vantagens para todos do livre comércio internacional, o Ocidente ataque este sucesso ?

As relações entre o Ocidente e a China no século XXI não são uma sucessão de qui-pro-quos, mas de equívocos unilaterais. Os Estados Unidos recusam entender o modo de pensar chinês e não cessam de projectar os seus próprios defeitos sobre Pequim.

FAZER CONCORRÊNCIA ÀS ROTAS DA SEDA

O Presidente Joe Biden, rompendo com a política de seu antecessor Donald Trump, anunciou que os Estados Unidos « iriam competir » com a China, provocando a gritaria em Pequim. Ele convenceu o G7 a lançar-se na batalha para manter o « avanço das democracias » sobre o sistema « totalitário » chinês. Obedecendo à injunção ( liminar-br), a União Europeia começa a aplicar o seu contraprojecto de «Porta Global» (Global Gateway). Amanhã, o Presidente Biden presidirá a uma cimeira (cúpula-br) mundial sobre a democracia com a participação de Taiwan (a antiga ditadura de Chiang Kai-shek) para dar um conteúdo ideológico a este confronto.

No nosso imaginário, a Guerra Fria opunha a URSS ateia ao Ocidente crente, ou ainda o comunismo ao capitalismo. Na realidade, tratava-se de impedir um bloco de cultura solidária de exercer influência económica no bloco controlado pelos Anglo-Saxónicos de cultura individualista. Desta vez, já não se tratará mais de pretender defender o direito de praticar uma religião e a livre iniciativa, mas de defender a democracia. Em última análise, trata-se sempre de caricaturar uma potência capaz de rivalizar economicamente com os Anglo-Saxões, ontem a URSS, hoje em dia a China.

A «ARMADILHA DE TUCÍDIDES»

Os Anglo-Saxónicos definem este momento político como a armadilha de Tucídides, em referência ao historiador da antiguidade que escreveu a história das guerras do Peloponeso. Em 2017, um célebre politólogo norte-americano, o Professor Graham Allison, explicou que « aquilo que tornou a guerra inevitável foi o crescimento do poder ateniense e o medo que isso provocava em Esparta ». De forma idêntica, o desenvolvimento da China põe em pânico o « Império Americano » que se prepara para a guerra [1]. Pouco importa que esse raciocínio ignore as diferenças culturais e aplique um conceito grego à China. Washington está convencida disto. Ela crê-se ameaçada por Pequim.

Se o Professor Alllison não tivesse sido um dos conselheiros de Caspar Weinberger no Pentágono, durante os anos 1980, e fosse mais culto, ele teria compreendido que os Chineses não raciocinam de modo algum como os Norte-Americanos. Ele teria ouvido Pequim a protestar contra qualquer projecto de concorrência e defendendo acordos « ganhador-ganhador ». Ele não teria interpretado esta fórmula no sentido anglo-saxónico, mas no sentido chinês, quer dizer, assegurando o sucesso de um sem lesar o outro,. Antigamente, quando o Imperador tomava uma decisão, ele só a podia mandar aplicar nas suas províncias se garantisse que havia nela algo de benéfico para todos. Como alguns dos seus decretos não tinham qualquer impacto nesta ou naquela província, ele devia criar algo que fosse do interesse delas. O Poder do Imperador só podia manter-se se ele não deixasse ninguém de fora, incluindo os mais pequenos.

Hoje em dia, sempre que Washington fala de « concorrência » com Pequim, a China responde que isso está fora de questão, que ela não está interessada em qualquer rivalidade, nem guerra, antes busca a harmonia entre todos através de relações ganhador-ganhador ( do inglês : “win-win”- ndT).

A «MANHA» CHINESA

Podia-se acreditar que os Ocidentais estão assustados pelo súbito desenvolvimento económico da China. O acordo concluído entre Deng Xiaoping e as multinacionais dos EUA beneficiaram de salários mais baixos e geraram um vasto movimento de deslocalização de fábricas (usinas-br) ocidentais para a China. As classes médias desaparecem no Ocidente enquanto se desenvolveram na China, e agora em quase toda a Ásia. A Comissão Europeia, que se alegrava, há vinte anos, com este fenómeno começou, em 2009, a criticar a organização da economia chinesa. Na realidade, estas críticas existiam antes, aquilo que mudou em 2009 é que elas passaram para a competência de Bruxelas, ao abrigo do Tratado de Lisboa. Segundo os casos, elas têm a ver com o roubo de patentes, o não cumprimento de normas ambientais ou ainda com o nacionalismo económico chinês.

A aquisição dos conhecimentos (“ know-how”) ocidentais é integralmente assumido por Pequim. As patentes são uma prática relativamente nova no mundo. Elas foram inventadas há dois séculos na Europa. Até aí, considerava-se que ninguém era proprietário de uma invenção; que essa devia aproveitar a todos. Os Chineses continuam a pensar assim. Não tendo qualquer intenção de roubar quem quer que seja, eles assinam acordos comerciais com transferência de tecnologia. Depois conservam-nas e desenvolvem-nas.

Em anos precedentes, os Ocidentais deslocalizavam as suas indústrias poluentes para a China. Agora ofendem-se por este país ter normas ambientais mais baixas do que as deles, mas nem por isso têm a intenção de repatriar as indústrias poluentes. O preconceito cultural atingiu um pico na recente COP26 de Glasgow. Os Ocidentais exigem descarbonizar a economia mundial, enquanto os Chineses entendem lutar contra a poluição. Pequim assinou, no entanto, uma declaração conjunta [2] com Washington para mostrar que não queria vexar os Estados Unidos. Esta garante que os dois países estão na mesma linha, sem clarificar seja o que for, e sem assumir o menor compromisso concreto. Nunca um diplomata chinês disse não a ninguém, aliás a palavra não existe na sua língua. De um ponto de vista chinês, esta declaração conjunta é um « Não » diplomático, do ponto de vista norte-americano, é a prova de que o mundo inteiro acredita na causa antropogénica do aquecimento do clima.

Quanto às acusações de nacionalismo económico, os Chineses nunca o esconderam: eles são nacionalistas e ainda não digeriram o colonialismo de que foram alvo. Se se converteram ao capitalismo no comércio internacional, permanecem nacionalistas quanto à sua produção.

Jamais houve nisto engano, ou sequer vontade de enganar, por parte dos Chineses; simplesmente a suficiência dos Estados Unidos e dos seus parceiros em crer que toda a gente raciocina como eles, em desprezar as discretas advertências que Pequim lhes dirigia.

O «IMPERIALISMO» CHINÊS

O preconceito mais importante diz respeito ao desenvolvimento militar da China. Em menos de uma dezena de anos, Pequim pôs-se a produzir em massa armas muito sofisticadas. O Exército do Povo, que no passado era acima de tudo uma mão de obra ao serviço da colectividade, é hoje em dia um corpo de elite. O serviço militar é obrigatório para todos, mas apenas os melhores entre os melhores podem vir a realizá-lo e a desfrutar das vantagens que ele confere. Há alguns anos, de um ponto de vista militar, a China só valia pelo número, hoje dispõe da primeira marinha do mundo e pode tornar cegos e surdos os Exércitos da OTAN ao pulverizar os seus satélites.

Mas a quê pode ela destinar esta orgia de homens e armas? A China investiu somas astronómicas para construir as Rotas da Seda no exterior. Ela tem de assegurar a segurança do seu pessoal e dos seus investimentos em países distantes. Além disso, tal como na Antiguidade e na Idade Média, ela terá que garantir de forma permanente a segurança nessas vias. As suas bases militares no estrangeiro visam apenas estes dois propósitos e de forma alguma em rivalizar com os Estados Unidos ou em invadir o planeta. Por exemplo, a sua base no Djibuti permitiu-lhe garantir o seu aprovisionamento marítimo face aos piratas somalis. A propósito, deve notar-se que Pequim e Moscovo conseguiram isso de forma rápida, enquanto a OTAN, que se havia atribuído a mesma missão, falhou totalmente [3].

Pequim entende nunca mais voltar a reviver o seu desmembramento por Tratados desiguais, que lhe valeram ser ocupada e saqueada por oito potências estrangeiras (Alemanha, Áustria-Hungria, Bélgica, Estados Unidos, França, Itália, Japão, Reino Unido e Rússia). É, pois, perfeitamente legítimo que ela se arme ao mesmo nível do que estas potências representam. Isso não quer dizer, em caso algum, que entenda agir como estas, mas, sim que pretende proteger-se delas.

Thierry Meyssan* |  Voltairenet.org | Tradução Alva

Notas:

[1] Destined for War: Can America and China Escape Thucydide’s Trap?, Graham T. Allison, Houghton Mifflin Harcourt (2017).

[2] “U.S.-China Joint GlasgowDeclaration on Enhancing Climate Action in the 2020s”, Voltaire Network, 10 November 2021.

[3] «Piratas, corsarios y filibusteros del siglo XXI», por Thierry Meyssan, Red Voltaire , 1ro de julio de 2010.

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